Transferência e
Sugestão
Ferenczi dedica toda a segunda
parte de seu “Transferência e Introjeção” para tentar elucidar a função que tem
a transferência nos processos sugestivos e hipnóticos. Notadamente entusiasmado
com as descobertas analíticas e encontrando-se na condição de disseminador da
própria teoria analítica, Ferenczi se mostra interessado em realizar uma
leitura psicanalítica de processos hipnóticos e sugestivos.
Nessa perspectiva, justifica-se toda a eficácia de uma sugestão ou
mesmo de uma hipnose a partir da explicação que afirma não ser o hipnotizador
ou sugestionador aquele que detém o poder de provocar as alterações psíquicas
no paciente, mas ao contrário, todos os efeitos advindos de uma hipnose seriam
unicamente causados devido à suscetibilidade de quem se submete ao processo.
Dessa forma, não é aos poderes e vontade do hipnotizador que se deve
dar os créditos de uma eventual cura do paciente, mas, como Ferenczi o
descobre, toda a eficácia está na capacidade introjetiva de cada sujeito que se
dispõe a ser hipnotizado. Ao propor
isto, Ferenczi acredita que o psiquismo é ele próprio o único responsável por
se deixar interessar pelo mundo externo e com isso o único capaz de permitir
que o curso das associações psíquicas possam ser alteradas.
Dessa forma, parece muito mais justo postular que se trata sempre nos
processos sugestivos e hipnóticos de uma força "auto-sugestiva" ou
mesmo “auto-hipnótica”:
“Segundo essa nova concepção, são
as forças psíquicas inconscientes do médium que representam o elemento ativo,
ao passo que o papel do hipnotizador, que se julgava ser onipotente, reduz-se
ao do objeto que o médium aparentemente impotente utiliza ou rejeita, segundo
as necessidades do momento”.54
Para Ferenczi, para que o sujeito se deixasse hipnotizar seria preciso
que ele pudesse adotar uma posição inconsciente que lhe deixasse em condições
de estabelecer vínculos transferenciais com o hipnotizador de maneira que esse
último encarnasse papéis importantes de figuras que estabeleceram determinadas
relações com o sujeito ao longo da constituição de sua história libidinal.
Ferenczi destaca duas possibilidades de conduta por relação ao lugar
que assume o hipnotizador nessa situação: 1) O hipnotizador assume uma postura de
intimidação utilizando-se de sua imponência física, agindo com severidade e
assertividade. 2) O hipnotizador assume uma postura meiga, utilizando-se de
palavras ditas em tom suave e apaziguador, de forma que uma certa calmaria e
monotonia exerçam influência sobre o sujeito a ser hipnotizado.
Para Ferenczi, as duas maneiras de sugestionamento seriam eficazes
porque fariam com que o sujeito fosse capturado por situações que o fizessem
remontar seu passado infantil. Dessa forma, a primeira situação o faria viver
laços transferenciais ligados à suas imagos paternas que provavelmente lhe
traduziram sempre sensações de assertividade e onipotência. Tratar-se-ia aqui,
segundo Ferenczi, dos efeitos de uma “hipnose
paterna”. Em contrapartida, a segunda situação remeteria o sujeito a interessar-se
pelos elos afetivos que constituíram suas relações com a figura da mãe
acalentadora e confortadora que teve em sua infância. A hipnose ou sugestão
funcionariam aí, graças à ativação de complexos infantis ligados a uma certa “hipnose materna”.
“Não atribuo grande importância a
uma distinção rigorosa entre hipnose paterna e materna, porque ocorre muitas
vezes que pai e mãe trocam de papéis. Quero somente mostrar como a situação
produzida pela hipnose é adequada para evocar, consciente ou inconsciente, a
infância no espírito do médium, e para despertar nele essas lembranças ligadas
à época da obediência infantil, tão vivas em todo ser humano.”55
Segundo Ferenczi, toda a possibilidade de sugestão a que se submete um
sujeito estará garantida de acordo com uma das formas que se lhe apresentará
como dominante em sua constituição. Essa afirmação baseia-se na ideia que o
sujeito, de acordo com suas vivências infantis, foi mais libidinalmente
atrelado ou às relações ou maternas. Para Ferenczi, ao comentar as hipnoses
paternas e maternas em “Adestramento de um Cavalo Selvagem” 56, “É a história dos quatro primeiros anos, em
particular a maneira como se constrói a relação com os pais, o que determinou
se um indivíduo ficará toda a sua vida receptivo a uma, à outra ou às duas
formas de influência”57.
De qualquer forma, Ferenczi acredita que o que decidirá no
funcionamento do próprio processo hipnótico é a capacidade que terá o sujeito
de ser tocado por um de seus complexos parentais infantis. Como está
interessado em dar à comunidade psicanalítica as boas novas acerca da
transferência, Ferenczi conclui dizendo que, em última instância, o que opera
nos processos sugestivos e hipnóticos é sempre uma transferência do passo
recalcado para a situação atual.
“Segundo a nova concepção, a
sugestão e a hipnose correspondem à criação artificial de condições onde a
tendência universal (geralmente recalcada) para a obediência cega e a confiança
incondicional, sobrevivência do amor e do ódio infantil-erótico pelos pais, é
transferida do complexo parental para a pessoa do hipnotizador ou sugestionador”58.
No ano de 1912, ao escrever “Sugestão e psicanálise”59, Ferenczi tem
para si uma tarefa a realizar que lhe parece muito clara e pertinente: trata-se
de escrever algo que pudesse de uma vez por todas esclarecer as diferenças
entre psicanálise e sugestão e que operasse como um justo divisor de águas.
Seguindo aqui os passos do mestre Freud, que da mesma maneira preocupou-se nos
primeiros anos da psicanálise em estabelecer uma distinção entre a psicanálise
e qualquer outro método terapêutico, Ferenczi acaba por escrever um artigo que
tenta absolver a psicanálise de qualquer relação com a sugestão. Neste momento,
para Ferenczi, psicanálise e sugestão são práticas que estão completamente
dissociadas.
Ao definir o que faz com que a sugestão opere, Ferenczi aponta para o
caráter de imposição que se estabelece a partir da figura do sugestionador
sobre o sugestionado. A sugestão seria definida pela introdução voluntária de
sensações do sugestionador para o sugestionado, sem que essa palavra pudesse
vir a ser questionada fazendo com que tudo devesse ser imposto e aceito sem
qualquer espírito crítico.
Os métodos para tal são os mesmos apontados por Ferenczi em outros
escritos. Trata-se aqui da autoridade e intimidação (hipnose paterna) e da
insinuação com atitude benevolente e carinhosa (hipnose materna). Para
Ferenczi, toda a crítica ao processo sugestivo cairá sob a acusação de que aí
não se permite que o outro possa por em circulação seus afetos de uma maneira
mais livre. O sugestionado é impedido de sentir e obrigado a abandonar qualquer
atitude subjetiva. Além disso, a sugestão é limitada e seus efeitos só durarão
até o momento em que durar a autoridade do sugestionador.
Ao comentar a força do sintoma neurótico, Ferenczi fala de sua
capacibilidade de indestrutibilidade, apontando aí o fracasso da sugestão e
afirmando, em favor da psicanálise que “só
o que plenamente vivenciado e compreendido pode perder sua força, sua
intensidade afetiva. A compreensão completa é seguida de um escalonamento
associativo de tensão afetiva.60
Nessa perspectiva, a análise se distanciaria da prática sugestiva na
medida em que seus interesses seriam os de levar o sujeito a uma verdadeira
elaboração de suas vivências afetivas de maneira que suas críticas,
descontentamentos e decepções pudessem ter um lugar tanto quanto suas
aspirações e desejos. O método sugestivo, segundo Ferenczi, só seria capaz de
suportar uma transferência chamada “positiva”e que colocasse o analista como
superior, investido de autoridade moral. Já o processo analítico, ao dizer “fale
o que lhe acometer o espírito, seja lá o que for”, levaria necessariamente o
sujeito a confrontar-se com seus afetos negativos em relação ao analista.
“Pode-se imaginar um terreno mais
desfavorável à sugestão do que uma relação em que o parceiro ameaçado de
sugestão tem o direito e mesmo dever de rebaixar, ridicularizar, humilhar seu
médico por todos os meios?(...) E que o analista, se conhece o seu ofício, não
se defende, espera calmamente que o paciente descubra por si mesmo que essas
acusações infundadas ou excessivas correspondem à transferência para o analista
da agressividade que sente em relação a outras pessoas, muito mais importantes
para ele”.61
Na tentativa de esclarecer as diferenças entre psicanálise e sugestão,
mostrando sempre que a psicanálise é um método onde o sujeito tem uma
participação mais ativa, menos limitada às ordens e desejos de um senhor da
verdade, Ferenczi acaba por dizer que a psicanálise nada tem de sugestão e que
o psicanalista deve mesmo se cuidar o tempo todo para em hipótese alguma agir
por sugestão. Nesse sentido, para Ferenczi, a psicanálise é uma luta constante
contra a sugestão na medida em que para se obter resultados realmente eficazes,
é preciso que a verdade emerja da boca do sujeito, devendo ele passar assim
pela difícil tarefa se ser analisado. Dessa forma, só a psicanálise se
mostraria como o caminho possível para a verdade na medida em que se revelaria
um processo em que não se utilizaria da imposição, da autoridade excessiva ou
mesmo do apelo ao amor totêmico, mas, procuraria levar o sujeito a uma profunda
dissecção psíquica de si mesmo.
Assim conclui Ferenczi sobre a sugestão e psicanálise:
“Duas filosofias se chocam
atualmente no leito do neurótico, elas se defrontam desde longa data, não só em
patologia mais também no domínio social. Uma delas pretende derrotar os males
rechaçando-os, disfarçando-os, recalcando-os, age pela estimulação da compaixão
e pela manutenção do culto à autoridade. A outra pelo contrário combate a ‘mentira
vital’ onde quer que ela se encontre, não abusa do peso da autoridade, e seu
objetivo final consiste em fazer penetrar a luz da consciência humana até as
instâncias mais escondidas dos motivos de ação, sem recuar diante das tomadas
de consciência dolorosas, desagradáveis ou repugnantes, ela desvenda as
verdadeira fontes dos males”.62
Nos ateremos aqui no que diz respeito aos comentário de Ferenczi acerca
da distinção entre psicanálise e sugestão, apenas frisando que, assim como
Freud no início, Ferenczi, em seus primeiros escritos, também tinha uma
preocupação bastante ciosa em distinguir a psicanálise de qualquer método
sugestivo. Para Ferenczi, tentamos mostrar, o que mais falava teoricamente em
termos de uma diferenciação radical entre ambos os métodos era justamente a função
que a transferência estabelecia em cada um deles. O lugar do analista até
então, era incompatível com qualquer possibilidade de inserção autoritária que
viesse a decidir sobre qualquer conteúdo presente em análise. No próximo capítulo,
estaremos estudando de maneira cuidadosa o estatuto da transferência no que
reconhecemos como “período da técnica ativa”. Na ocasião, teremos a chance de
ver como Ferenczi será obrigado a repensar a inserção da sugestão dentro da
prática analítica.
Sándor Ferenczi |
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