Sobre o amor de transferência
Dentre as vicissitudes que podem
ocorrer no desenrolar de uma psicanálise, está a possibilidade do advento do
amor. Assim, o que afirmamos é que o
amor constitui ele mesmo uma das “facetas” que compõe o conceito de
transferência. Vimos no início desse
capítulo como a experiência de Breuer com Anna O. esteve o tempo todo sendo
atravessada pela insígnia do amor e acompanhamos como ali, o amor foi não só o
que sustentou o método de Breuer mas como também foi limite para o mesmo
Breuer, que, sem dispor de mecanismos teóricos para a compreensão e manejo do
amor, acabou por desistir de sua paciente.
Segundo analisou Freud posteriormente, o problema do amor retardou o
desenvolvimento da terapia analítica durante seu início.
Anos mais tarde, precisamente em
1914, Freud decide-se a dedicar um artigo que servirá exclusivamente para
articular os problemas trazidos pelo amor e o próprio manejo da transferência
nessas situações. “Observações Sobre o
Amor Transferencial”53 constitui-se num belo e importante artigo
onde Freud discute abertamente os entraves , dificuldades e peculiaridades
trazidos pelo amor em transferência.
Mais que isso, Freud mostra como o amor deve ser compreendido e
conduzido nos limites da prática analítica. Passaremos então a discutir
questões propostas por esse texto na expectativa de explorarmos mais essa
dimensão da transferência. Nosso
interesse será, mais uma vez, o de poder mostrar como a transferência ganha
novas articulações e entendimentos à medida que a obra freudiana avança.
A primeira advertência que Freud faz
aos analistas é a de apontar para o fato de que ao analista cabe posicionar-se
diante das exigências feitas pelo amor, em transferência, de forma distinta dos
leigos que não estariam pensando o problema desde a perspectiva analítica. O psicanalista tem que dar um direcionamento
especial ao amor. Não cabe a ele
estabelecer uma relação amorosa com a paciente e nem tampouco desistir do
tratamento (como fizera Breuer) por conta da situação amorosa. Deve , de
início, ter bem claro para si de que o amor é um acontecimento fadado a se
repetir numa série infindável e que o analista não se presta a ser um objeto
especial, único, sob o qual recairia a atenção da paciente. Encarar as coisas dessa forma, significa
entender que a experiência analítica não cria uma situação amorosa devido aos
prováveis encantos do analista mas que o amor é um possível destino para a
transferência na medida em que esta última, como já vimos, atualiza conflitos
que remontam a história libidinal do sujeito.
Assim, Freud adverte que o
analista deve ter bem controlada sua contratransferência e “reconhecer que o enamoramento da paciente é
induzido pela situação analítica não devendo ser atribuído aos encantos de sua
própria pessoa”54.
O que acontece quando, em análise,
um sujeito se apaixona pelo analista? Se
esse amor torna-se de caráter acentuado, o primeiro fato é que o sujeito “perde toda a compreensão do tratamento e
todo o interesse nele”55, não respondendo por nada senão o
amor. Os sintomas perdem a importância
diante da situação instaurada e podem , porventura, por mero efeito de
deslizamento de investimento, serem temporariamente extintos. “Trágica” situação para o analista que
esperaria ver o curso do tratamento seguir sem interrupção e que de repente se
vê diante de algo que se mostra detentor de uma força capaz de dominar todo o
interesse de quem se vê enamorado. Tal
fato aponta para o surgimento de uma situação ilusória onde o amor aparece
preenchendo um espaço que, de outra forma , como esperaria o analista, deveria
ser ocupado pela análise dos derivados do inconsciente.
O amor aparece aqui em sua dimensão
de resistência. Dirá mais uma vez Freud,
“tudo que interfere com a continuação do
tratamento pode constituir expressão da
resistência e dessa feita, “a irrupção de uma apaixonada exigência de amor é,
em grande parte , trabalho da resistência”56.
Quando algo do material inconsciente
parece querer aflorar, quando o analista se vê , através das associações
livres, seguindo o fio da meada, então aí mesmo é que se poderá ter a surpresa
de um evento capaz de desviar o curso natural do tratamento. A resistência é capaz, não de criar o amor,
mas de realçá-lo e instigá-lo de maneira
que “agora a resistência está
começando a utilizar seu amor [o da
paciente pelo analista], a fim de estorvar a continuação do tratamento, desviar
todo o seu interesse do trabalho e colocar o analista em posição canhestra”57.
Nesse ponto é interessante se
perguntar qual o lugar que deve ocupar o analista na tentativa de poder agir
analiticamente diante do amor que se mostra como resistência. Com Freud, aprendemos que o amor também deve
ser tornado material analítico. Do mesmo
modo que a resistência o é, na medida em
que tem de ser vencida, o amor deve ser tratado de maneira que o analista possa
vir a dar-lhe, futuramente, dimensões outras.
Assim, não cabe ao analista sugerir
que a paciente abandone ou reprima seus sentimentos em prol da necessidade de
se continuar o tratamento. Dessa forma,
o analista apenas trabalharia obturando algo que deve, de outra forma, vir a
ser analisado. Exigir a sublimação do
amor, dirá Freud, só pode ser entendido como uma atitude não analítica, pois
dessa maneira, o analista estaria trabalhando a favor do recalque e não de sua
elucidação.
Não caberia, também, ao analista, tomar uma
atitude intermediária de maneira a retribuir parcialmente o amor demandado pelo
sujeito. Freud condena aqui, a atitude
de tentar, dessa forma, “orientar o relacionamento para canais mais
calmos e elevá-lo a um nível mais alto”58. O tratamento analítico, segundo Freud , exige
uma posição sincera do analista , algo concebido como uma postura ética que não
deve sustentar nenhuma inverdade no que tange aos sentimentos do próprio
analista por relação a seus pacientes.
Dessa forma, não cabe ao analista forjar nenhuma situação para agradar o
paciente , do tipo corresponder num certo nível ao enamoramento. Não, dirá Freud, o analista deve controlar
toda e qualquer contratransferência e manter-se neutro na direção do
tratamento. Isto quer dizer que a neutralidade
deve funcionar como recurso técnico obrigatório para que o amor seja derrotado
enquanto resistência.
Freud é bem claro quanto à sua
posição: o analista não deve responder à demanda de amor feita pelos
analisandos. Não deve pois cair nesse
engodo e o melhor a fazer é conduzir o tratamento em “abstinência”. A regra da abstinência prevê que , em o
analista não saciando os desejos postos pelos analisandos, o tratamento poderá
dessa forma, contar com a força do investimento , que , em estando presente e
urgindo por uma locação, possa dessa forma vir a ter destinos substitutos mais
adequados.
Agindo sobre a regra de abstinência
e frustrando a demanda de amor do paciente, o analista estaria evitando assim
com que houvessem atuações. Ou seja, o
que se evita é que se concretize por via da ação,(“repetir na vida real”), algo
que deve ter, segundo Freud, o destino de ser “lembrado, reproduzido como material psíquico e mantido dentro da esfera
dos eventos psíquicos”59 .(215) É dessa forma , ou seja, através
de um trabalho de elaboração em torno do amor, que a análise terá chances de
tornar a vida libidinal do sujeito, não mais patológica mas capaz de
organizar-se de forma mais satisfatória.
Acompanhemos Freud quando ele, com
precisão estabelece o lugar do analista no manejo do amor de transferência:
“É,
portanto tão desastroso para a análise que o anseio da paciente por amor seja
satisfeito, quanto que seja suprimido. O
caminho que o analista deve seguir não é nenhum destes; é um caminho para o
qual não existe modelo na vida real. Ele
tem de tomar cuidado para não afastar-se do amor transferencial, repeli-lo ou
torná-lo desagradável para a paciente; mas deve , de modo igualmente resoluto,
recusar-lhe qualquer retribuição. Deve
manter um firme domínio do amor transferencial, mas tratá-lo como algo irreal,
como uma situação que se deve atravessar no tratamento e remontar suas origens
inconscientes e que pode ajudar a trazer tudo
que se acha profundamente oculto na vida erótica da paciente para sua
consciência e portanto, para debaixo de seu controle.”60(216)
O que Freud quer postular é que ,
mais uma vez, aquilo que é resistência, deve se fazer lembrança. O analista não deve deixar de provocar,
através do manejo da própria força investida no processo amoroso, a emergência
do material recalcado. Se aqui, o amor
de transferência aparece na condição de uma repetição, portanto tendo o
estatuto de algo que se apresenta enquanto genuíno, pois descende de outras
relações amorosas vividas no passado, ele deve, portanto, ser esclarecido
analiticamente de forma que se possa ”desvendar a escolha objetal infantil do
paciente e as fantasias tecidas ao redor dela”61.
Concluindo, podemos constatar que
para Freud, o amor, como já vimos anteriormente, é sempre uma questão de escolha libidinal baseada em “clichês
estereotipados” que marcaram , desde um passado remoto, a forma de o sujeito
investir seus objetos. Trata-se de
afirmar em última instância, que, a questão do amor, seja ele transferencial ou
não, remete sempre a um entendimento desse amor como fazendo parte do movimento
de repetição no qual o sujeito se vê inserido.
O analista sob o qua recaem investimentos amorosos, é portanto, tão
somente mais um objeto que serviu ao circuito libidinal do sujeito em questão.
Um objeto, não obstante, privilegiado, pois a ele cabe , dessa vez,
renunciar ao pedido de amor e instaurar o processo analítico.
A transferência , em sua dimensão de
“amor de transferência”, faz confirmar mais uma vez que , para Freud, a
transferência, apesar de ser o caminho sob o qual se dará a cura, é também,
antes de tudo, o lugar onde se faz representar a resistência. Mais uma vez vemos Freud utilizar-se da
dificuldade para torná-la a solução.
Aqui também, o amor de transferência deve ser reconhecido como forte
obstáculo ao tratamento, mas ao mesmo tempo, a proposta de Freud é que se o analista souber manejá-lo, e ele o
deve saber, encontrar-se-á então diante da possibilidade de ter o material
inconsciente disponível para o desenrolar do processo analítico.
SIGMUND FREUD |