segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

A Posição de Freud: A Técnica Ativa como o Futuro da Prática Analítica Cap.3, Parte III

    Os progressos em nossa terapia, portanto, sem dúvida prosseguirão ao longo de outras linhas; antes de mais nada, ao longo daquela que Ferenczi, em seu artigo ‘Dificuldades Técnicas de Uma Análise de Histeria’(1919) , denominou recentemente ‘atividade’ por parte do analista”
       A citação acima, extraída da conferência “Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica”, proferida por Freud por ocasião do Quinto Congresso psicanalítico Internacional, aponta com precisão para a direção imprimida pelo texto freudiano pronunciado naquela ocasião: trata-se de dizer que a técnica analítica não se encontra acabada e por consequência disso novas perspectivas podem ser traçadas rumo ao estabelecimento de novas diretrizes e métodos no que tange ao psicanalisar.  Em outras palavras, a intenção freudiana é a de fazer com que os analistas se disponham a receber novas articulações teórico-clínicas que com toda a certeza farão com que a prática analítica seja repensada.
       A posição de Freud é bem clara: é preciso que se reveja o método analítico e que se caminhe no sentido de buscar uma prática cada vez mais eficaz para o trato de casos que, embora façam parte do chamado campo das neuroses de transferência, não se resumem à questão da histeria clássica.  Assim, é possível afirmar que a questão da prática analítica começava a problematizar em primeiro plano a própria transferência, seu papel de destaque na economia do tratamento e seu próprio manejo ao mesmo tempo em que o objetivo da terapia psicanalítica, sempre enfatizado por Freud  -  trazer “o material recalcado para a consciência” - , passava a ser pensado em função da própria imposição da transferência.
       Nessa perspectiva, podemos afirmar que Freud via na técnica ativa de Ferenczi, um campo promissor onde a psicanálise deveria pensar possibilidades de alargamento de sua própria prática.  Freud começa a postular a necessidade de uma atividade por parte do analista justamente naquelas situações onde a resistência não poderia ser vencida apenas com o trabalho de interpretação.  Tratava-se de pensar que caberia ao analista, em determinadas situações, dar um auxílio ao analisando em seu trabalho de vencer e elaborar a resistência, valendo-se da força proporcionada pela transferência de maneira a fazer com que os conflitos vivenciados pelo neurótico pudessem ser cada vez mais acirrados e incentivados de maneira que o trabalho analítico, que visa sempre uma solução de conflitos, tivesse seu poder de alcance cada vez mais ampliado.  Em outras palavras, a atividade seria um artifício técnico que, uma vez galvanizado pela transferência, levaria o sujeito a se haver de toda a forma com suas situações conflituais.  Nessa perspectiva, afirma Freud: “Acho que uma atividade dessa natureza, por parte do médico que analisa, é irrepreensível e inteiramente justificada”.
       Para Freud trata-se de uma nova técnica que traz em seu bojo a acentuação de um princípio: o tratamento analítico deve ser conduzido num estado de abstinência ou privação.  Freud alerta bem para o sentido do que seja a privação.  Não se trata de um impedimento de qualquer satisfação ou mesmo da satisfação sexual.  Trata-se em última instância do impedimento de uma satisfação que tenha ligação direta com a morbidez de determinados sintomas.  Ao analista caberá impedir a satisfação substituta provocada pelo desperdício de libido empregada na manutenção dos atos sintomáticos.  Isto para que o tratamento não tenha sua força desviada para fins inúteis.  Por mais sinistro que possa parecer, Freud alerta que o motor de cura para o tratamento é o próprio sofrimento neurótico.  Assim, para que se tenha um desenrolar satisfatório em termos de análise, é preciso que o tratamento disponha a seu favor de um quantum de energia pulsional ótimo capaz de motivar o analisando a produzir suas associações livres de maneira frutífera.  “Cruel como possa parecer, devemos cuidar para que o sofrimento do paciente, em um grau de um modo ou de outro efetivo, não acabe prematuramente.  Se, devido ao fato de que os sintomas foram afastados e perderam o seu valor, seu sofrimento se atenua, devemos restabelecê-lo alhures, sob a forma de alguma privação apreciável; de outro modo, corremos o perigo de jamais conseguir senão melhoras insignificantes e transitórias”.
       Assim a técnica ativa, movida pelo princípio da abstinência e da frustração, evitaria com que o paciente desperdiçasse sua energia pulsional em situações que não contribuíssem para um desfecho desejado em análise.  A técnica ativa, bem entendido, viria em auxílio ao tratamento para torná-lo mais completo e mais eficaz, de maneira que seus resultados fossem além de uma simples modificação dos sintomas.  “É tarefa do analista detectar esses caminhos divergentes e exigir-lhe, toda vez , que os abandone, por mais inofensiva que possa ser , em si, a atividade que conduz à satisfação”.
       Aqui, a transferência se apresenta como o campo pertinente para a intervenção do analista.  Segundo Freud, é comum os analisandos se valerem de suas relações transferenciais para nelas ancorarem seu desejo de forma a se alienarem na própria situação transferencial.  É possível que a transferência sirva de campo satisfatório para que o paciente a utilize como satisfação substutiva.  O exemplo  aqui é o caso da paciente de Ferenczi que valia-se da situação amorosa de transferência para esquivar-se de suas questões mais conflitantes em termos de sua sexualidade.  Assim, Freud é levado a afirmar que “em todas as situações como estas, a atividade por parte do médico deve assumir a forma enérgica de oposição a satisfações substitutivas prematuras” . Portanto, não cabe ao analista satisfazer as expectativas e demandas de seus analisandos, devendo manter a situação analítica em suspenso no que diz respeito aos ganhos de prazeres possíveis.  O analista deve negar ao paciente a satisfação de seus desejos e deixar que a angústia que advenha dessa situação seja capaz de levar ela própria o sujeito ao encontro de sua via desejante.  Dessa forma, Freud alerta, a atividade implica em afirmar que a análise não é um mero processo de ajuda e que não se destina a transmitir regras e ideais ao analisando.  Diferente, a análise é um processo de singularização onde o sujeito deve ter de se haver com sua própria angústia e a partir de então acessar de maneira menos neurótica, sua via desejante.
       Por fim  Freud enfatiza o valor da técnica ativa em duas direções: trata-se, de como já afirmamos, de pensar a psicanálise além dos limites da histeria de conversão.  Freud afirma que tanto na fobia quanto na neurose obsessiva cabe a atividade do analista na tentativa de  provocar mudanças mais efetivas nas estruturas em questão.  No caso das fobias graves, Freud afirma que a técnica clássica deve de fato ser suplantada dando lugar a atividade na medida em que essa última é o único recurso capaz de fazer com que o sujeito esteja em condições de enfrentar sua própria angústia.  Com os agorafóbicos, cabe ao analista induzi-los ativamente a enfrentarem seus temores de forma a poderem trazer material fundamental para o seguimento do curso da análise.  Só a atividade seria capaz de evitar a situação paralisante na qual se encontram tais pacientes.
       No caso dos obsessivos graves, a atividade realiza um corte na satisfação que esses pacientes obtêm no próprio ato de falar.  É fundamental que o analista interceda sobre a própria compulsão à associar desses analisandos de maneira que eles sejam efetivamente tocados pelo que dizem.  “Nos casos graves de atos obsessivos, uma atitude de espera passiva parece ainda menos indicada. Na verdade, de um modo geral, esses casos tendem a um processo ‘assintótico’ de recuperação, a um protraimento interminável do tratamento. A sua análise corre sempre o perigo de trazer muita coisa à tona e não modificar nada. Julgo existirem poucas dúvidas de que a técnica correta, aqui, só pode constituir em esperar até que o tratamento em si se torne uma compulsão, e então, com essa contracompulsão, suprimir forçosamente a compulsão da doença”.
       Como podemos constatar, em 1919, Freud de fato deu todo o seu apoio à ideia da atividade.  Esta fazia, pois, parte do projeto de alargamento da técnica analítica e passava a ser a esperança para casos graves onde predominava a estagnação. Ao colocar a atividade como a técnica própria ao porvir da psicanálise, Freud deu todos os indícios de que era em Ferenczi que deveria se depositar as expectativas de desenvolvimento da própria técnica analítica.


Sándor Ferenczi e Sigmund Freud


terça-feira, 22 de dezembro de 2015

A Atividade: Intervenções sob os ‘Atos Sintomáticos’ Cap.3, Parte II

Em 1919, Ferenczi escreve o artigo ‘Dificuldades Técnicas de uma Análise de Histeria”.  Esse artigo pode ser considerado o primeiro de uma série de seis escritos destinados a problematizar o que o próprio Ferenczi designou por “Técnica Ativa”.  Constituirá nossa tarefa ao longo desse capítulo, discutir de maneira bastante minuciosa, o desenvolvimento relativo ao período da técnica ativa na obra de Ferenczi, preocupando-nos sempre em estabelecer as relações entre este período e a concepção que Ferenczi passa a ter do conceito de transferência.  Nossa ideia, é que , a partir da especificidade trazida pela técnica ativa, a concepção da transferência passa a tomar rumos completamente inéditos e a  oferecer uma compreensão do psicanalisar completamente diferente do que se realizava até então.
  Por hora, atenhamo-nos às preocupações iniciais de Ferenczi no texto em questão.  Trata-se de um caso onde a análise não vinha conseguindo se desenrolar de maneira satisfatória.  Isso quer dizer que os sintomas da paciente, uma mulher com uma questão notadamente histérica, não cediam ao tratamento e tudo o que o analista podia verificar como efeito de análise era a manutenção de uma relação de transferência onde o amor imperava e gerava uma espécie de “boa vontade” por parte da paciente em compreender sua situação sintomática e empreender seu trabalho associativo.
 Vimos no capítulo 1, mais especificamente no que diz respeito ao componente da transferência entendido como “amor de transferência”, que todo movimento de demanda e estabelecimento de amor por parte do analisando na relação com o analista é concebido por Freud como sendo da ordem da resistência.  Isto porquê o amor de transferência impede que emerja, em análise, a enunciação do desejo do sujeito e por conseguinte, a remissão dos sintomas se vê  aprisionada sem poder ser alcançada.  Na situação de amor, a associação livre não se torna tão livre assim, ela se vê, na verdade, em função de produzir significações exclusivamente ligadas à problemática do amor.
   Assim, para Ferenczi, toda a dificuldade trazida pelo amor de transferência estava no fato de que o tratamento se encontrava em estado de estagnação onde o analista se via na função inócua de tentar levar a paciente a produzir associações que levassem adiante o tratamento.  Nesse sentido , Ferenczi relata que “As sessões passavam-se em declarações e juras de amor apaixonadas da parte dela e, da minha, em vãos esforços para fazê-la entender a natureza transferencial dos seus sentimentos e reconduzí-la aos objetos reais mas inconscientes de seus afetos.”
  A situação tinha levado Ferenczi a recorrer a uma medida não tão usual :  ele resolveu fixar um prazo para o término do tratamento, na expectativa de fazer com que , pressionada, durante o período que lhe restasse de tratamento, a paciente pudesse produzir associações até então inéditas.  Podemos dizer que a atitude de Ferenczi de fixar o prazo, constituiu em si mesma uma tentativa ativa de intervenção onde o analista apostava no cerco à resistência  apressando o curso das associações livres de forma a levar a paciente a dizer o que até então não tinha sido possível dizer. (nota dizendo da experiência de Freud com o homem dos lobos).
 A tentativa, nesse caso, foi em vão.  A paciente não livrou-se de seu amor de transferência e acabou por deixar o tratamento, ao fim do prazo marcado, sem ter solucionado suas dificuldades.  Tempos depois ela retorna pedindo a Ferenczi uma nova chance e é de pronto atendida.  Nova interrupção , dessa vez por fatores externos, fazem com que a paciente  abandone o tratamento sem que esse possa ter sido terminado.
Com a insistência de seus sintomas, uma terceira tentativa com Ferenczi.  Dessa vez, ainda enredada em situações amorosas junto ao analista, a paciente deixa escapar que tinha compulsivas sensações eróticas genitais com uma certa continuidade.  Tal declaração, possibilitada pela própria condição transferencial, sugere à Ferenczi que a paciente poderia estar obtendo satisfações masturbatórias intensas e frequentes.  Masturbações essas que, sem que a paciente pudesse se dar conta, com certeza estariam tomando conta de grande parte dos investimentos libidinais da paciente.
 Ferenczi decide intervir nesse circuito masturbatório.  Ele decide proibir a paciente de se masturbar alegando que ela obtinha uma satisfação libidinal intensa com esse hábito e que isso por si só impedia o advento de associações que pudessem desencadear um andamento satisfatório ao tratamento.  Para Ferenczi, o hábito masturbatório , ou masturbação de forma larvar, era uma maneira de a paciente descarregar suas moções pulsionais de maneira tal que o material associativo perdia seu vigor e importância para o tratamento.  Era como se o circuito pulsional dispensasse o acesso à palavra e se satisfizesse sob a  forma de uma permanente descarga que incidisse exclusivamente sobre o corpo (área genital) da paciente.
  Segundo Ferenczi, dessa maneira a paciente obtinha uma satisfação auto-erótica em elevado grau de intensidade.  O efeito advindo da interdição foi revolucionário.  A paciente que não podia produzir nada senão suas declarações amorosas ao analista, passou a fantasiar num ritmo frenético, sendo capaz de restabelecer ligações importantes pertinentes ao seu universo infantil e com isso passou a ser capaz se reconstituir o que Frenczi chamou de situações traumáticas de sua vida.  A análise , nesse ponto, tinha seu curso retomado , uma vez que as associações livres voltaram a circular , efetivamente, de maneira mais livre.
O que se depreende desta intervenção é que Ferenczi obteve, ao proibir o ato masturbatório, um aumento da tensão libidinal, que, uma vez impossibilitada de se descarregar através da motilidade, teve que se oferecer enquanto material psíquico capaz de ser capturado por novas representações que passaram a investí-lo.  Bem entendido, a proibição ordenada pelo analista teve o surpreendente efeito de fazer com que a paciente obtivesse recursos para voltar a associar livremente.
O próximo passo foi proibir a paciente de se masturbar durante sua vida cotidiana.  Ela deveria prestar a atenção em todos os pequenos movimentos de satisfação que obtinha ao longo de diversas partes de seu corpo.  Ferenczi teoriza em torno da noção de “atos sintomáticos”.  Esses atos, já descritos por Freud como formações do inconsciente em  “A Psicopatologia da Vida Cotidiana”, ganham aqui o caráter de serem atos equivalentes ao que Frenczi chama de onanismo.  Os atos sintomáticos são , nessa perspectiva, formações do inconsciente que não passam pela via da palavra.  Eles são uma forma infantil (auto-erótica) da pulsão se organizar de maneira que o resultado seja uma atitude tal qual a masturbação, onde o prazer fique restrito a uma espécie de satisfação puramente corporal.  Para Ferenczi, os atos sintomáticos representavam pontos isolados e diversos onde o sujeito adquire uma quantidade de prazer considerável e que têm por característica o fato de não se articularem com o resto do circuito libidinal.  Atos sintomáticos seriam, bem entendido, satisfações independentes que impediriam a libido de se fazer presente no campo pertinente às associações livres.  Eis aí a explicação para a estagnação própria ao tratamento: a paciente em questão não falava porque apresentava em abundância , a ocorrência de atos sintomáticos que, por suas vezes, dispendiam uma quantidade muito grande de libido em si mesmos.  Assim, vejamos como Ferenczi teoriza essa questão: “Nesse caso, a libido estava privada de um modo tão total de toda e qualquer outra possibilidade de descarga que ela podia aumentar até atingir um verdadeiro orgasmo ao nível dessas partes do corpo que, por sua natureza, estão longe de ser zonas erógenas preponderantes”.
 O entendimento de Ferenczi era o de que  toda a sexualidade dessa paciente estava dissipada, isto é, fragmentada, na incidência de todos os atos sintomáticos que ela era capaz de produzir.  A posição de Ferenczi  ao proibir tais atos sintomáticos era a de esperar que as satisfações parciais das pulsões pudessem ser renunciadas em proveito do advento de uma prática discursiva acerca desse próprio corpo. A expectativa de Ferenczi era a de que houvesse um “repatriamento”, isto é, uma realocação da libido que deveria migrar da condição de ato sintomático para a condição de fala articulada com a história inconsciente da paciente.
  Para Ferenczi, a partir da experiência com a situação analítica acima relatada, trata-se de afirmar que fica estabelecida uma nova regra analítica. Trata-se de dizer que ao analista cabe escutar , quando do estancamento do material analítico, aquilo que se organiza em termos de satisfação substitutiva da libido ou satisfação masturbatória.  A nova regra, a que prevê que o analista intervenha sob o próprio ato sintomático, isto é, interfira além do que é dito pelas associações livres , faz com que o analista pressuponha que há algo do sujeito que se formula , em análise, além do que é dito pela via da palavra.  Trata-se aqui de intervir no próprio corpo, sob a forma de proibição daquilo que se verifica como puro escoamento da libido não ligada.  O analista, a partir da nova regra, vai além de sua posição  de espera do material recalcado, para impedir que a libido descarregue-se sob a forma direta na motilidade.  Isto porque para Ferenczi , “Essas atividades [atos sintomáticos] , que se poderia supor inofensivas, são , com efeito,  suscetíveis de tornar-se o refúgio da libido despojada pela análise de seus investimentos e, nos casos extremos, podem substituir toda a vida sexual do sujeito
 Para Ferenczi, trata-se de ir além do campo da própria associação livre.  Onde o paciente não associa,  onde ele goza de satisfação puramente masturbatória, alí reside uma resistência que não é a mesma resistência ordenada pelo campo da fala.  Trata-se de algo que resiste enquanto pura repetição da pulsão inarticulada com o campo da representação. Essa ideia, a de repetição como resistência, desenvolveremos mais adiante ao longo desas capítulo.  Por hora nos interessa afirmar que Ferenczi inaugura aqui uma nova modalidade de intervenção para o analista.  Uma intervenção que deve pressupor que o analista não deve conceber sua prática resumida ao campo do discursivo.  Não, ao contrário , ele deve se indagar justamente o porquê do não advento desse próprio discurso e procurar intervir onde algo se faz enquanto libido não ligada.  O analista , assim, deverá incluir no campo do analisável aquilo que não se faz enquanto psíquico para na forma de ato, provocar um refluxo do que é apenas um ato sintomático, para o campo da fala.
Esses últimos[ atos sintomáticos] podem ser considerados patológicos e necessitam de uma elucidação analítica.  Esta,  porém, só é possível, como vimos, desde que se faça cessar, pelo menos provisoriamente, a própria prática [masturbatória] , de modo que a excitação que ela mobiliza seja orientada para vias puramente psíquicas e finalmente abra um caminho até o sistema consciente”.
 Assim Ferenczi inaugura um novo lugar para a posição do analista. Trata-se de dizer que em determinadas situações, o analista   abandona a sua posição passiva, isto é de mero espectador de um inconsciente, para, de outra forma, obrigar que a pulsão se inscreva no registro do psíquico. Aqui, o analista é ativo e da sua atividade depende todo o sucesso de uma análise.  Podemos dizer que, diferente do que previu Freud ao longo de toda a sua primeira tópica, ao analista cabe não ficar restrito ao campo da interpretação para, em ato, promover   o advento do próprio inconsciente.  Vejamos como escreve a esse respeito, o próprio Ferenczi: “Neste caso, fui levado a abandonar o papel passivo que o analista desempenha habitualmente no tratamento, quando se limita a escutar e interpretar as associações do paciente, e ajudei a paciente a ultrapassar os pontos mortos do trabalho analítico intervindo ativamente em seus mecanismos psíquicos”.
 Joel Birman em “Desatar com Atos” consegue ser preciso ao comentar a questão da introdução do ato analítico  a partir da obra de Ferenczi.  Para o autor, Ferenczi rompe com o lugar passivo destinado ao analista até então, para propor uma modalidade de intervenção onde o analista se posiciona além da questão do ‘escutar \falar”.  Nessa perspectiva, para o autor, Ferenczi é pioneiro ao experimentar um lugar de intervenção que se encontra além da prática interpretativa: “(...) a imagem da atividade do psicanalista seria contraposta à imagem instituída de sua passividade no espaço analítico, que constituía, então , a sua representação dominante no processo de análise.  Nesta , a figura do analista escuta de maneira benevolente oi discurso do analisando e somente intervém no processo mediante interpretações.  Porém, na prática da atividade o analista deveria ocupar também uma outra posição, realizando atos face ao analisando, não permanecendo, portanto, no eixo do escutar\falar”.
  Segundo o próprio Ferenczi, é a Freud que se deve a iniciativa da técnica ativa. Isto porque ele teria, no trato de severas histerias de angústia, levado os pacientes a enfrentarem suas situações de medo, indo estes ao encontro de suas próprias angústias.  No bojo desse mecanismo ativo, está o pensamento que entende ser necessário levar , em análise, o deslizamento e por conseguinte o desligamento do afeto de suas cadeias fóbicas para liberá-lo e realocá-lo.  Dessa forma, vemos Ferenczi anunciar que o princípio da técnica ativa é, em última instância, um trabalho que eleva o afeto à condição de agenciador do psiquismo.  Pois é o afeto que deve ser liberado e assim ser responsável pelo reposicionamento das representações.  É o próprio Ferenczi quem diz:: “Espera-se assim que as valências no princípio não saturadas desses afetos que passaram a flutuar livremente atraiam, de forma prioritária, as representações que lhes são qualitativamente adequadas e historicamente correspondentes
O trabalho a que visa Ferenczi, dessa forma é um trabalho que remete ao próprio por em jogo do movimento introjetivo.  Vimos ao longo do capítulo 2, como para Ferenczi o que está em causa na introjeção é justamente a capacidade dos afetos flutuantes de se reportarem as representações e a partir de então realizarem as ligações psíquicas pertinentes.  Assim , barrar o movimento do ato sintomático, é fazer com que o psiquismo suporte um aumento energético afetivo  que será capaz de chamar as representações recalcadas para o plano da própria simbolização.  Dessa forma, para Ferenczi, o analista deve  “barrar as vias inconscientes de escoamento à excitação psíquica para obrigá-la, graças ao ‘aumento de pressão’ da energia assim obtido, a vencer a resistência oposta pela censura e a estabelecer um ‘investimento instável’ por meio dos sistemas psíquicos superiores”.
 Aqui, mais uma vez recorremos ao pensamento de Joel Birman par situar com clareza o movimento a que visa o ato ferencziano:  em última instância, o que está em jogo é a tentativa de levar  a energia pulsional a inscrever-se na ordem do psíquico: “(...) Face a um ato colocado em cena pelo analisando se contrapõe um ato do analista, seja para interditar a descarga do circuito pulsional, seja para provocar o paciente para ordenar o cenário fantasmático e proibir a posteriori a descarga do circuito pulsional.  Após este percurso é possível retomar as associações livres e a elaboração simbólica, pois, agora, a energia pulsional se desloca para o registro da representação”.

 Do ponto de vista metapsicológico, trata-se de afirmar que a intervenção ativa , ao atuar sobre as quantidades de energia não investidas, privilegia uma intervenção notadamente econômica.  Tal fato, em nível do próprio teorizar freudiano acerca de sua segunda tópica, acompanha o privilégio que esta tópica da à questões como a primazia do fator econômico no entendimento do aparelho psíquico e a  formulação da pulsão de morte como uma pulsão que se manifesta a partir da força e insistência da compulsão à repetição.  Em breve estaremos tratando de perto estas questões.

Sándor Ferenczi


domingo, 13 de dezembro de 2015

A TRANSFERÊNCIA NO PERÍODO DA TÉCNICA ATIVA

A Regra Fundamental da Psicanálise:  A Associação Livre  Cap.3, Parte I


           Ao empreender-se um exame da técnica psicanalítica ao longo de toda a primeira tópica na obra de Freud, será possível depreender que toda a concepção do que constituía o psicanalisar girava em função da ideia acerca do que Freud achou por bem denominar por “método de associação livre”.  A associação livre tornou-se, por assim dizer, a “regra fundamental“ da psicanálise, o meio pelo qual seria viável ao analista poder escutar a lógica inconsciente advinda da fala do analisando.
            A associação livre estabeleceu-se enquanto método psicanalítico na medida em que, pouco a pouco, Freud passava a renunciar ao método catártico de Breuer e a sugerir que seus pacientes deviam comunicar seus pensamentos de maneira fluente e sem críticas.  É o próprio Freud que comenta a respeito  quando afirma em 1904, em seu “O método psicanalítico de Freud”, que “Freud encontrou esse substituto[para o método catártico] - um substituto bem satisfatório - nas ‘associações’ de seus pacientes, isto é , nos pensamentos involuntários (no mais das vezes considerados como elementos perturbadores e via de regra postos de lado) que com tanta freqûencia irrompem através da continuidade de uma narrativa consecutiva”.  Para Freud, Bem entendido, o inconsciente poderia ser deduzido e conhecido, através de situações trazidas pelo próprio exercício de fala de cada paciente.  O interesse , assim, é observar o aparecimento de lacunas, falhas e interrupções discursivas que apontariam para uma verdade além da ordenação consciente.
            No bojo desse processo, a teoria do recalque.  As amnésias, os atos falhos e o próprio histórico dos sintomas seriam a prova de que algo foi previamente recalcado , isto é, posto para fora da consciência, e que o próprio movimento desejante do inconsciente seria responsável por esse retorno específico do recalcado.  O material recalcado chegaria à consciência tão logo a força da resistência fosse superada pelo trabalho de investigação analítica: “O fator de resistência tornou-se uma das pedras angulares de sua teoria.  As idéias que são normalmente afastadas por toda espécie de escusas - como as mencionadas acima - são por ele consideradas como derivativos das manifestações psíquicas recalcadas (pensamentos e impulsos), deformadas pela resistência contra sua produção”.
            Nesse pensamento, quanto maior fosse a resistência , maior seria a distorção.  O analista seria uma espécie de investigador e elucidador de um inconsciente que estaria sempre pronto e formalizado através de representações que , uma vez recalcadas, buscariam através dos mecanismos de condensação e deslocamento, se fazerem presentes na consciência.  Caberia ao analista decifrar e deduzir o inconsciente através das pistas deixadas nas lacunas da fala do paciente. Caberia ao analista preencher essas lacunas com intervenções explicativas e elucidativas onde a interpretação passaria a funcionar como o mais poderoso instrumento de trabalho.  Vejamos como Freud define, ele próprio, a função da interpretação junto às associações livres do paciente: “Freud desenvolveu, sobre tal base, uma arte de interpretação cuja tarefa, é, por assim dizer, extrair o metal puro dos pensamentos recalcados do minério das idéias não intencionais.  Esse trabalho de interpretação aplica-se não somente às idéias do paciente como também aos seus sonhos, que desvendam a abordagem mais direta a um conhecimento do inconsciente, às suas ações não intencionais e também às sem objetivo (atos sintomáticos) e aos erros grosseiros que pratica na vida cotidiana (lapsos de linguagem, erros palmares e assim por diante)”. 
            Assim, a tarefa do tratamento analítico é chegar a um desvendamento do inconsciente através da interpretação que deveria funcionar sempre na direção de vencer as resistências presentes na própria fala do paciente.  Tornar o inconsciente consciente, isto é, decifrá-lo, tornaria o neurótico não mais neurótico.
            Quando pronuncia a “Terceira Lição” das “Cinco Lições de Psicanálise”, em 1909, Freud enfatiza ainda mais sua posição por relação ao trabalho de vencimento das resistências insistindo que ao paciente caberia a única e crucial tarefa de dizer tudo que lhe viesse à cabeça.  A associação livre é encarada como uma regra e o cumprimento dela fará com que se tenha garantido o acesso ao inconsciente: “Para evitá-la[a resistência] põe-se previamente o doente a par do que pode ocorrer, pedindo-lhe que renuncie a qualquer crítica; sem nenhuma seleção deverá expor tudo que lhe vier ao pensamento, mesmo que lhe pareça errôneo, despropositado ou absurdo e, especialmente, se lhe for desagradável a vinda dessas idéias à mente.  Pela observância dessa regra garantimo-nos o material que nos conduz ao roteiro do complexo recalcado”.  É justamente o material que parecerá soar como despropositado ou inutilizável que servirá de meio para que o analista desmonte a resistência e faça surgir sentido capaz de tamponar a errância dos sintomas.
            Em 1912, no artigo “a Dinâmica da Transferência”, Freud utiliza-se pela primeira vez da expressão “regra fundamental” para especificar a única tarefa que cabe ao analisando.  Na ocasião, interessado em mostrar como a transferência pode fazer com que o paciente não cumpra à risca essa regra, Freud parece apontar mais uma vez para o caráter inequívoco que tem a associação livre na prática analítica: ela é a rede (de representações) onde os peixes (material inconsciente) devem cair a fim de garantirem o trabalho do pescador(analista).
            A associação livre tem sua eficácia por que serve de campo possível para o inconsciente se fazer em movimento.  Quando escreve o texto “O Recalque”, Freud mostra que  acreditar na associação livre é acreditar que o inconsciente sempre irá se manifestar.  Estabelecer o cumprimento da regra fundamental seria, por assim dizer, estabelecer o próprio movimento do inconsciente em análise.  Pode-se dizer que a associação livre permite dar continuidade ao movimento inconsciente.  Caberá ao analista saber reconhecer as representações apropriadas para uma intervenção e nelas reconhecer, mesmo que distorcidamente, as representações recalcadas: “Ao executarmos a técnica da psicanálise, continuamos exigindo que o paciente produza, de tal forma, derivados do recalcado, que em consequência de sua distância no tempo, ou de sua distorção, eles possam passar pela censura do consciente.  Na realidade, as associações que exigimos que o paciente faça sem sofrer a influência de qualquer ideia intencional consciente ou de qualquer crítica, e a partir das quais reconstituímos uma tradução consciente do representante recalcado - essas associações nada mais são do que derivados remotos e distorcidos desse tipo
            Finalmente, nesse breve estudo sobre a função da associação livre na primeira tópica freudiana, nos cabe apontar para o caráter inequívoco da regra fundamental da psicanálise.  Ela se funda na medida em que se entende que o inconsciente está sempre pronto e acabado , realizando sua função de representar-se na consciência.  Assim, porque há um recalque e um retorno do recalcado, é possível que o analista se coloque no lugar de interpretar os derivados do inconsciente que sempre surgirão como prova de que, efetivamente, o sistema inconsciente se fará sempre presente, espontânea e inexoravelmente na consciência.  Nessa perspectiva, a função do analista é manter-se em suspenso, na espera, aguardando que o material a ser trabalhado faça-se presente e possível de ser traduzido de forma a aliviar os sintomas neuróticos.
            Todo esse saber da primeira tópica é validado a partir da concepção determinista que Freud tem do aparelho psíquico.  Isso implica dizer que todo acontecimento psíquico é determinado por um outro que o motivou.  Na perspectiva do determinismo psíquico, todas as representações não cessam de se reportarem umas às outras e de se sobredeterminarem num processo contínuo e inscrito nas lógicas próprias à representação onde o modelo de inconsciente oferecido por Freud em “O Inconsciente” parece ser o representante maior acerca de sua  concepção  sobre o psiquismo.  O inconsciente, o recalque e o destino das representações,  foram na primeira tópica de Freud, os ícones pelo qual toda ideia de um aparelho psíquico coerente e estruturado pôde estabelecer-se.  Aqui, valemo-nos do pensamento de Joel Birman em “Psicanálise, uma Estilística da Existência”:  ” O que aparece claramente neste modelo teórico é assim a pretensão de fundar uma ciência do determinismo psíquico, cuja base seria o conceito de inconsciente.  Tendo sido considerado o conceito fundamental da psicanálise, a experiência analítica foi encarada como uma prática clínica visando  à revelação do inconsciente: para ultrapassar os seus conflitos psíquicos, o indivíduo deveria dominar as suas representações inconscientes de maneira a torná-las conscientes, isto é , ele deveria reconhecê-las.
            O postulado do determinismo psíquico do inconsciente constitui o arcabouço de todo sistema teórico.  E é pelo reconhecimento desta base que o sujeito poderia conquistar a sua liberdade psíquica, por estratégias acionadas pelo eu e pela consciência para conhecer o inconsciente.  Tornar consciente o inconsciente, tal era o aforisma fundamental de toda construção freudiana inicial.
             Inserida na mesma perspectiva determinista de saber, corolária da regra fundamental, a “atenção flutuante”, seria a posição que Freud entendia que deveria ser ocupada pelo analista em seu processo de deciframento do inconsciente.  A “atenção flutuante” diria respeito a uma situação em que o analista deveria abandonar toda sua escuta crítica consciente e deixar guiar-se por sua lógica inconsciente na tentativa de poder se ver surpreendido por efeitos de escuta que incidissem sobre o inconsciente de seu paciente.  Assim, o analista não deveria julgar criticamente  o que ouve mas deveria se colocar como um órgão receptor capaz de acolher o inconsciente transmissor do paciente.  Dessa maneira, segundo Freud escreve em ”Recomendações aos Médicos que Exercem a Psicanálise”, “o inconsciente do médico é capaz, a partir dos derivados do inconsciente que lhe são comunicados, de reconstruir esse inconsciente que determinou as associações livres do paciente
             Por esse caminho percebe-se claramente que Freud conta com sua hipótese determinista para orientar o próprio lugar do analista.  Ele deve manter-se junto às associações do paciente pois alí reside tudo o que se pode esperar de uma análise, ou seja, tudo que diga respeito às formações do inconsciente.  Assim, “Associação Livre” e “Atenção Flutuante” são posições que fundam o lugar do analista numa certa posição passiva  onde ele fica à espera de um inconsciente que virá, cedo ou tarde, manifestar-se  e possibilitar que o processo analítico desenvolva-se satisfatoriamente.


quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Transferência e Sugestão Cap.2, Parte 6

Transferência e Sugestão

Ferenczi dedica toda a segunda parte de seu “Transferência e Introjeção” para tentar elucidar a função que tem a transferência nos processos sugestivos e hipnóticos. Notadamente entusiasmado com as descobertas analíticas e encontrando-se na condição de disseminador da própria teoria analítica, Ferenczi se mostra interessado em realizar uma leitura psicanalítica de processos hipnóticos e sugestivos.
Nessa perspectiva, justifica-se toda a eficácia de uma sugestão ou mesmo de uma hipnose a partir da explicação que afirma não ser o hipnotizador ou sugestionador aquele que detém o poder de provocar as alterações psíquicas no paciente, mas ao contrário, todos os efeitos advindos de uma hipnose seriam unicamente causados devido à suscetibilidade de quem se submete ao processo.
Dessa forma, não é aos poderes e vontade do hipnotizador que se deve dar os créditos de uma eventual cura do paciente, mas, como Ferenczi o descobre, toda a eficácia está na capacidade introjetiva de cada sujeito que se dispõe a ser hipnotizado.  Ao propor isto, Ferenczi acredita que o psiquismo é ele próprio o único responsável por se deixar interessar pelo mundo externo e com isso o único capaz de permitir que o curso das associações psíquicas possam ser alteradas.
Dessa forma, parece muito mais justo postular que se trata sempre nos processos sugestivos e hipnóticos de uma força "auto-sugestiva" ou mesmo “auto-hipnótica”:
“Segundo essa nova concepção, são as forças psíquicas inconscientes do médium que representam o elemento ativo, ao passo que o papel do hipnotizador, que se julgava ser onipotente, reduz-se ao do objeto que o médium aparentemente impotente utiliza ou rejeita, segundo as necessidades do momento”.54
Para Ferenczi, para que o sujeito se deixasse hipnotizar seria preciso que ele pudesse adotar uma posição inconsciente que lhe deixasse em condições de estabelecer vínculos transferenciais com o hipnotizador de maneira que esse último encarnasse papéis importantes de figuras que estabeleceram determinadas relações com o sujeito ao longo da constituição de sua história libidinal.
Ferenczi destaca duas possibilidades de conduta por relação ao lugar que assume o hipnotizador nessa situação: 1) O hipnotizador assume uma postura de intimidação utilizando-se de sua imponência física, agindo com severidade e assertividade. 2) O hipnotizador assume uma postura meiga, utilizando-se de palavras ditas em tom suave e apaziguador, de forma que uma certa calmaria e monotonia exerçam influência sobre o sujeito a ser hipnotizado.
Para Ferenczi, as duas maneiras de sugestionamento seriam eficazes porque fariam com que o sujeito fosse capturado por situações que o fizessem remontar seu passado infantil. Dessa forma, a primeira situação o faria viver laços transferenciais ligados à suas imagos paternas que provavelmente lhe traduziram sempre sensações de assertividade e onipotência. Tratar-se-ia aqui, segundo Ferenczi, dos efeitos de uma “hipnose paterna”. Em contrapartida, a segunda situação remeteria o sujeito a interessar-se pelos elos afetivos que constituíram suas relações com a figura da mãe acalentadora e confortadora que teve em sua infância. A hipnose ou sugestão funcionariam aí, graças à ativação de complexos infantis ligados a uma certa “hipnose materna”.
“Não atribuo grande importância a uma distinção rigorosa entre hipnose paterna e materna, porque ocorre muitas vezes que pai e mãe trocam de papéis. Quero somente mostrar como a situação produzida pela hipnose é adequada para evocar, consciente ou inconsciente, a infância no espírito do médium, e para despertar nele essas lembranças ligadas à época da obediência infantil, tão vivas em todo ser humano.”55
Segundo Ferenczi, toda a possibilidade de sugestão a que se submete um sujeito estará garantida de acordo com uma das formas que se lhe apresentará como dominante em sua constituição. Essa afirmação baseia-se na ideia que o sujeito, de acordo com suas vivências infantis, foi mais libidinalmente atrelado ou às relações ou maternas. Para Ferenczi, ao comentar as hipnoses paternas e maternas em “Adestramento de um Cavalo Selvagem” 56, “É a história dos quatro primeiros anos, em particular a maneira como se constrói a relação com os pais, o que determinou se um indivíduo ficará toda a sua vida receptivo a uma, à outra ou às duas formas de influência”57.
De qualquer forma, Ferenczi acredita que o que decidirá no funcionamento do próprio processo hipnótico é a capacidade que terá o sujeito de ser tocado por um de seus complexos parentais infantis. Como está interessado em dar à comunidade psicanalítica as boas novas acerca da transferência, Ferenczi conclui dizendo que, em última instância, o que opera nos processos sugestivos e hipnóticos é sempre uma transferência do passo recalcado para a situação atual.
“Segundo a nova concepção, a sugestão e a hipnose correspondem à criação artificial de condições onde a tendência universal (geralmente recalcada) para a obediência cega e a confiança incondicional, sobrevivência do amor e do ódio infantil-erótico pelos pais, é transferida do complexo parental para a pessoa do hipnotizador ou sugestionador”58.
No ano de 1912, ao escrever “Sugestão e psicanálise”59, Ferenczi tem para si uma tarefa a realizar que lhe parece muito clara e pertinente: trata-se de escrever algo que pudesse de uma vez por todas esclarecer as diferenças entre psicanálise e sugestão e que operasse como um justo divisor de águas. Seguindo aqui os passos do mestre Freud, que da mesma maneira preocupou-se nos primeiros anos da psicanálise em estabelecer uma distinção entre a psicanálise e qualquer outro método terapêutico, Ferenczi acaba por escrever um artigo que tenta absolver a psicanálise de qualquer relação com a sugestão. Neste momento, para Ferenczi, psicanálise e sugestão são práticas que estão completamente dissociadas.
Ao definir o que faz com que a sugestão opere, Ferenczi aponta para o caráter de imposição que se estabelece a partir da figura do sugestionador sobre o sugestionado. A sugestão seria definida pela introdução voluntária de sensações do sugestionador para o sugestionado, sem que essa palavra pudesse vir a ser questionada fazendo com que tudo devesse ser imposto e aceito sem qualquer espírito crítico.
Os métodos para tal são os mesmos apontados por Ferenczi em outros escritos. Trata-se aqui da autoridade e intimidação (hipnose paterna) e da insinuação com atitude benevolente e carinhosa (hipnose materna). Para Ferenczi, toda a crítica ao processo sugestivo cairá sob a acusação de que aí não se permite que o outro possa por em circulação seus afetos de uma maneira mais livre. O sugestionado é impedido de sentir e obrigado a abandonar qualquer atitude subjetiva. Além disso, a sugestão é limitada e seus efeitos só durarão até o momento em que durar a autoridade do sugestionador.
Ao comentar a força do sintoma neurótico, Ferenczi fala de sua capacibilidade de indestrutibilidade, apontando aí o fracasso da sugestão e afirmando, em favor da psicanálise que “só o que plenamente vivenciado e compreendido pode perder sua força, sua intensidade afetiva. A compreensão completa é seguida de um escalonamento associativo de tensão afetiva.60
Nessa perspectiva, a análise se distanciaria da prática sugestiva na medida em que seus interesses seriam os de levar o sujeito a uma verdadeira elaboração de suas vivências afetivas de maneira que suas críticas, descontentamentos e decepções pudessem ter um lugar tanto quanto suas aspirações e desejos. O método sugestivo, segundo Ferenczi, só seria capaz de suportar uma transferência chamada “positiva”e que colocasse o analista como superior, investido de autoridade moral. Já o processo analítico, ao dizer “fale o que lhe acometer o espírito, seja lá o que for”, levaria necessariamente o sujeito a confrontar-se com seus afetos negativos em relação ao analista.
“Pode-se imaginar um terreno mais desfavorável à sugestão do que uma relação em que o parceiro ameaçado de sugestão tem o direito e mesmo dever de rebaixar, ridicularizar, humilhar seu médico por todos os meios?(...) E que o analista, se conhece o seu ofício, não se defende, espera calmamente que o paciente descubra por si mesmo que essas acusações infundadas ou excessivas correspondem à transferência para o analista da agressividade que sente em relação a outras pessoas, muito mais importantes para ele”.61
Na tentativa de esclarecer as diferenças entre psicanálise e sugestão, mostrando sempre que a psicanálise é um método onde o sujeito tem uma participação mais ativa, menos limitada às ordens e desejos de um senhor da verdade, Ferenczi acaba por dizer que a psicanálise nada tem de sugestão e que o psicanalista deve mesmo se cuidar o tempo todo para em hipótese alguma agir por sugestão. Nesse sentido, para Ferenczi, a psicanálise é uma luta constante contra a sugestão na medida em que para se obter resultados realmente eficazes, é preciso que a verdade emerja da boca do sujeito, devendo ele passar assim pela difícil tarefa se ser analisado. Dessa forma, só a psicanálise se mostraria como o caminho possível para a verdade na medida em que se revelaria um processo em que não se utilizaria da imposição, da autoridade excessiva ou mesmo do apelo ao amor totêmico, mas, procuraria levar o sujeito a uma profunda dissecção psíquica de si mesmo.
Assim conclui Ferenczi sobre a sugestão e psicanálise:
“Duas filosofias se chocam atualmente no leito do neurótico, elas se defrontam desde longa data, não só em patologia mais também no domínio social. Uma delas pretende derrotar os males rechaçando-os, disfarçando-os, recalcando-os, age pela estimulação da compaixão e pela manutenção do culto à autoridade. A outra pelo contrário combate a ‘mentira vital’ onde quer que ela se encontre, não abusa do peso da autoridade, e seu objetivo final consiste em fazer penetrar a luz da consciência humana até as instâncias mais escondidas dos motivos de ação, sem recuar diante das tomadas de consciência dolorosas, desagradáveis ou repugnantes, ela desvenda as verdadeira fontes dos males”.62
Nos ateremos aqui no que diz respeito aos comentário de Ferenczi acerca da distinção entre psicanálise e sugestão, apenas frisando que, assim como Freud no início, Ferenczi, em seus primeiros escritos, também tinha uma preocupação bastante ciosa em distinguir a psicanálise de qualquer método sugestivo. Para Ferenczi, tentamos mostrar, o que mais falava teoricamente em termos de uma diferenciação radical entre ambos os métodos era justamente a função que a transferência estabelecia em cada um deles. O lugar do analista até então, era incompatível com qualquer possibilidade de inserção autoritária que viesse a decidir sobre qualquer conteúdo presente em análise. No próximo capítulo, estaremos estudando de maneira cuidadosa o estatuto da transferência no que reconhecemos como “período da técnica ativa”. Na ocasião, teremos a chance de ver como Ferenczi será obrigado a repensar a inserção da sugestão dentro da prática analítica.




Sándor Ferenczi


domingo, 22 de novembro de 2015

Transitoriedade e Transferência Cap.2, Parte 5

Transitoriedade e Transferência


No ano de 1901, Freud escreve seu "Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana”38. Esse cuidadoso trabalho ganhava sua importância na medida em que para Freud, tornava-se necessário explorar por todas as vias possíveis o sentido de sua descoberta: o inconsciente. Praticamente na mesma época em que publicava “A Interpretação dos Sonhos", Freud se dava ao trabalho de colher intermináveis relatos de experiências vividas por ele e por seus colaboradores, capaz de elucidar todo o sentido de sua hipótese, a saber, a que tinha no determinismo psíquico (moções inconscientes), a motivação para todos os atos que, até então pareciam não ter qualquer motivação senão a do equívoco por ele próprio.
“Esquecimento de nomes próprios“, “esquecimentos de palavras estrangeiras", “lapsos da fala", “lapsos de leitura", “atos falhos”, “atos sintomáticos" dentre outros, encontravam-se na categoria de serem , segundo Freud, pequenas psicopatologias, pequenos deslizes presentes no cotidiano de cada um, capazes de trazerem em seu bojo um mal estar na medida em que algo da ordem da intenção consciente se via falhado, dando lugar a uma estranheza ocasionada pela emergência de um material substituto.
Aquele que enunciava algo do qual absolutamente não esperava – pensemos numa troca de intenções - encontrava-se em maus lençóis, pois o mal estar era muito mais por algo que deixava-se captar no ar como uma intenção outra do que propriamente pelo falo de se ter equivocado impunemente.
 Nessa medida, a hipótese de Freud é de que a força de sustentação para todos esses atos aparentemente equivocados estaria sendo garantido pelo que fosse da ordem do desejo inconsciente. Os atos falhos seriam, dessa forma, derivados do inconsciente, ou seja, atos que foram deformados devido ao trabalho da censura de maneira a funcionarem como uma formação de compromisso entre o sistema inconsciente e o consciente. Dessa forma, as psicopatologias da vida cotidiana, não são atos desprovidos de intencionalidade ou sentido, mas ao contrário, representam, em um determinado plano, desejos inconscientes que foram inadmissíveis à consciência.
Assim, os atos falhos, os sonhos e os sintomas são todos maneiras pela qual o recalcado atualiza-se na consciência. Logo no primeiro capitulo, dedicado ao “esquecimento de nomes próprios”, Freud opera uma explicação que esclarece o processo pelo qual se dá o esquecimento do nome. Mais que isso , Freud faz alusão à existência de leis que garantem a escolha daquilo que se apresenta como equivoco: "Trata-se dos casos em que o nome não só é esquecido, como também erroneamente lembrado. Em nosso afã de recuperar o nome perdido, outros - nomes substitutos - nos vêm à consciência reconhecemos de imediato que são incorretos, mas eles insistem em retornar e impõem com grande persistência. O processo que deveria levar à reprodução do nome perdido foi, por assim dizer, deslocado, e por isso conduziu a um substituto incorreto. Minha hipótese é que esse deslocamento não esta entregue a uma escolha psíquica arbitrária, mas segue vias previsíveis que obedecem as leis"39.
Bem entendido, as leis a que faz menção Freud, são as leis que regem o sistema primário, a saber, a condensação e o deslocamento, e toda análise que se fizer das chamadas psicopatologias da vida cotidiana, levarão ao elucidamento de uma intenção inconsciente que se faz presente em qualquer situação.
O psiquismo, num franco processo de defesa, estaria sempre produzindo substitutos que dessem conta de, ao menos parcialmente, representar aquilo que se mostra ameaçador ao eu do sujeito. É preciso fazer notar que Freud sempre lança mão da ideia de deslocamento, para mostrar que esse é o mecanismo pelo qual se opera toda a capacidade defensiva do aparelho psíquico. É assim que Freud entende também os processos de esquecimento de certas intenções, que por serem muito ameaçadoras ao sistema consciente, acabam dando lugar ao esquecimento de outras intenções que menos ameaçadoras, ainda assim mantém vínculo com o material inconsciente: “De qualquer modo, depõe em favor da existência e do poder dessa tendência defensiva o fato de podemos atribuir a ela a origem de processos como os de nossos exemplos de esquecimento. Como vimos, muitas coisas são esquecidas por si mesmas; quando isso não é possível, a tendência defensiva desloca seu alvo e produz ao menos o esquecimento de alguma outra coisa, algo menos importante que tenha estabelecido um vínculo associativo com aquilo que é realmente chocante".40
Se para Freud, ao longo de todo o trabalho em questão, trata-se de mostrar como o pensamento corrente consciente é assaltado frequentemente por atos que lhe imprimem uma situação notadamente equivocada, ou seja, denunciar a existência de atos e intenções falhas que trazem em si a realização de desejos inconscientes, para Ferenczi, em “Sintomas Transitórios no Decorrer de uma Psicanálise”41, também o interesse é falar de atos sintomáticos que interrompem a cadeia normal dos pensamentos, mas com notável diferença: Ferenczi dá ênfase aos atos que irrompem na situação de análise e que trazem a mesma sensação de surpresa e a mesma possibilidade de interpretação oferecida pelos atos falhos trabalhados por Freud.
Para Ferenczi, é como se fosse possível identificar os atos sintomáticos da vida cotidiana, dentro da própria situação de análise. “É frequente ver nos pacientes histéricos o trabalho analítico ser bruscamente interrompido pelo surgimento inopinado de um sintoma sensorial ou motor”42. O que se deve fazer notar aqui são principalmente dois aspectos: 1) os sintomas de que fala Ferenczi são sintomas que surgem por ocorrência da própria análise e, portanto são criações do próprio processo analítico. Da mesma forma que o analista os vê sendo criados como efeito da análise, ele os vê sendo desfeitos a partir de intervenções analíticas.  Por terem esse caráter de serem passageiros, isto é, aparecem e desaparecem durante o próprio processo de análise, Ferenczi dá a eles o valor de serem “transitórios”. 2) Os sintomas “transitórios" diferente dos atos falhos, não pertencem exclusivamente ao universo da linguagem verbal significante (chiste, esquecimento e trocas de nomes), mas têm uma incidência que Ferenczi classifica de orgânica, ainda que para Ferenczi, “se tentarmos descobrir sua significação, constataremos que o sintoma orgânico é a expressão simbólica do mundo afetivo ou intelectual inconsciente".43
Renato Mezan, ao comentar a função transferencial dos sintomas “transitórios” chega a realizar uma comparação destes com os atos sintomáticos trabalhados por Freud em “Psicopatologia da Vida Cotidiana" para mostrar como para Ferenczi, os sintomas “transitórios” têm um valor de criação atual provocada e viabilizada pela transferência. Freud, ao contrário, veria nos atos sintomáticos, a existência de uma verdade que remontaria a todo o passado recalcado. Diz Mezan:
“Enquanto Freud via os atos sintomáticos como produções do inconsciente determinadas pela história pregressa do paciente, Ferenczi vai além e se interroga sobre o papel causativo que a própria situação analítica, galvanizada pela transferência, poderia ter sobre tais manifestações”.44
O próprio Ferenczi alerta de que não se trata da mesma questão que trata Freud acerca dos atos sintomáticos. Isto porque Freud é capaz de construir, através da análise desses atos, verdadeiras histórias bem articuladas e complexas capazes de remeterem a vários níveis de significações junto à história do sujeito. Para Ferenczi, diferente, a única significação que estaria em jogo seria a significação transferencial. Os sintomas “transitórios" não remontariam ao passado mas ao presente da sessão, ao atual trazido pelo movimento analítico que trabalha incidindo por sobre a massa de afetos do sujeito.
Nessa perspectiva, escreve Ferenczi:
Essas conversões passageiras também se observam no plano motor, se bem que mais raramente. Não estou pensando aqui nos atos sintomáticos na acepção de Freud em Psicopatologia da Vida Cotidiana' , que são atividades complexas, bem coordenadas, mas nos espasmos musculares isolados, às vezes dolorosos, ou então nas falhas musculares que lembram as paralisias”. 45
Os sintomas transitórios são criações da transferência. Se pegarmos um dos exemplos de Ferenczi ao longo de seu artigo, teremos a chance de perceber claramente que o sintoma se forma a partir de uma resposta que se dá (em forma de sintoma) à uma intervenção do analista. Uma paciente vive em análise uma de suas fantasias recalcadas infantis declarando-se amorosamente ao analista. Situação franca de amor de transferência que naturalmente mobiliza o analista a tentar instaurar associações que não levem à concretização de qualquer ato de amor. A recusa do analista em oferecer-se como objeto de amor faz com que a paciente responda com a formação de um sintoma transitório. Sua língua ganha uma espécie de anestesia e sua próxima declaração é afirmar a seguinte impressão: "É como se minha língua tivesse sido escaldada.”47 Para Ferenczi, o que se deu foi que a partir de uma situação onde a transferência veiculou o surgimento de fantasias infantis eróticas e o analista pôde negar-se a realiza-las, a língua serviu de ponte possível para representar toda a decepção da paciente e vergonha imbuídas de uma intensa carga afetiva que não tinha como ser vivida de outra maneira.
A compreensão de Ferenczi é a de que o sintoma transitório surge para aplacar um certo excesso afetivo que aflorou provocado pela própria vivência proporcionada na atualidade da transferência.  “A escolha da língua como lugar do aparecimento do sintoma também estava aqui sobredeterminado por diversos fatores, cuja análise me deu acesso às camadas profundas dos complexos inconscientes”.47
Num outro exemplo, Ferenczi traz à tona situações de transferência que provocam no paciente o desejo de agredir o analista.  Como isso lhe é inviável, a solução que surge é o advento de um sintoma transitório capaz de simbolizar algo que ele gostaria de realizar. Assim Ferenczi diz que o paciente apresenta sensações de dores em algumas partes de seu corpo, parte essas, onde, na verdade, gostaria de atingir o próprio analista. "Tinha a intenção de me agredir; a sensação de um golpe na cabeça representava o desejo de espancar, uma dor no coração revelava a ideia de apunhalar".48
Com a perspectiva dos sintomas "transitórios”, Ferenczi torna-se paulatinamente um analista que se interessa por aquilo que está além do conteúdo das associações livres. Diferente dos demais analistas de sua época, Ferenczi se interessa pelas formações simbólicas que o corpo expressa no período relativo às sessões de análise. Nesse sentido, podemos dizer que Ferenczi não ficava exclusivamente na expectativa do que deveria vir a ser dito pelo discurso do paciente, mas que entendia como mensagens dirigidas à ele as formações sintomáticas transitórias que se valiam de expressões corporais para se manifestarem. Assim, Ferenczi escutava também as dores de dente de seus pacientes (esperando que trouxessem associações além da queixa real), escutava as dores de cabeça que os acometiam durante as sessões e se interessava com bastante intensidade pelas expressões de cada paciente seu ao longo das sessões. Um exemplo típico disso se encontra testemunhado num artigo minúsculo de Ferenczi dedicado a fazer uma observação sobre a maneira de alguns pacientes deitarem-se no divã. O artigo, denominado "Um Sintoma Transitório: a Posição do Paciente Durante o Tratamento”49 revela que para Ferenczi, a escuta analítica deveria funcionar além dos limites do dito. Transcreveremos o artigo na íntegra: “Em dois casos, pacientes masculinos denunciaram suas fantasias homossexuais passivas da seguinte maneira: durante a sessão, em vez de serem estendidos de costas ou de lado, puseram-se bruscamente de barriga pra baixo”.50
Renato Mezan faz uso da ideia de auto-simbólico para explicar o advento desses sintomas “transitórios". Para o autor, toda a vez que a situação de análise provoca um excesso de excitação, o sujeito se defende auto-simbolicamente, criando sintomas ligados a seu próprio corpo capaz de simbolizarem o conflito vivido em transferência. Ao explicar o advento dos sintomas transitórios ele diz: “O que ocorreu foi, segundo Ferenczi uma simbolização hic e nunc, cujo sentido envolve fantasias inconscientes ativadas pela análise e de um do ou de outro absorvidas pela transferência”.51
Segundo Ferenczi, o surgimento desses sintomas “transitórios" se daria como uma espécie de um último recurso contra certas tomadas de consciência propiciadas pelo trabalho de análise. Quanto mais à análise caminhasse para a elucidação de complexos inconscientes, quanto mais a transferência pudesse atualizar conflitos afetivos até então recalcados, mais se verificaria o surgimento desses sintomas "transitórios” que tinham como característica evitar o advento da palavra “rechaçando a tensão afetiva para a esfera sensorial.”52
O que nos parece fundamental de ser observado é que esses sintomas transitórios apontam para a fina percepção de Ferenczi de que a experiência de transferência é , em última instância , uma experiência capaz de ser criativa. Os sintomas “transitórios” atestam para o potencial da transferência de criar sintomas capazes de se oferecerem como rico material para a intervenção do analista. Para Ferenczi, quando um sintoma “transitório" surgia, era sinal de que a transferência havia tomado as rédeas do processo analítico e de que portanto aquele sintoma ali criado deveria ser uma mensagem endereçada diretamente ao analista, que, com a possibilidade de um ato interpretativo poderia rapidamente reverter o sintoma em construções capazes de funcionarem analiticamente.
Assim, a certeza trazida pelos sintomas “transitórios" é a certeza de que o analista está no caminho certo. Mais que isso, é a certeza de que a análise sendo capaz de criar chances de articulação para a fala do sujeito. Um sintoma “transitório" se faz erguer porque ele é a última tentativa do psiquismo de se defender de algo que não pode ser dito. Tentativa de defesa esse que com certeza fracassará, pois é o sucesso da transferência que está em jogo. Se todo sinto “transitório” é efeito de análise e produzido enquanto mensagem para o analista, isto significa que dependerá do próprio manejo da transferência, fazer com que o que é “transitório” possa dar lugar a algo que tenha efeito interpretativo capaz de trazer introjeções capazes de serem efetivas para o sujeito no sentido de sua cura analítica.

Por fim, vejamos o que conclui o próprio Ferenczi acerca da função os sintomas transitórios: “Das observações de formação de sintomas transitórios aqui agrupadas, proponho-me a extrair a seguinte hipótese: tanto nas grandes neuroses como nessas neuroses em ‘miniatura’, o sintoma só aparece se o psiquismo tiver ameaçado, por uma causa exterior ou interior, pelo perigo do estabelecimento de um vínculo associativo entre os fragmentos dos complexos recalcados e a consciência, ou seja, de uma tomada de consciência que perturbaria o equilíbrio assegurado por um recalcamento anterior.”53


Sándor Ferenczi 


segunda-feira, 9 de novembro de 2015

A introjeção e a aquisição do sentido de realidade Cap.2, Parte 4

A introjeção e a aquisição do sentido de realidade


Em 1913 Ferenczi escreve um importante artigo denominado “O Desenvolvimento do Sentido de Realidade e Seus Estágios”18, destinado a oferecer um modelo teórico capaz de explicitar o processo de formação e aquisição do sentido de realidade para o eu do sujeito. Trata-se de um pensamento que reconhece diferentes estágios de sustentação e percepção da realidade onde o sujeito estabelece diferentes níveis de relação com o mundo externo. Esses estágios, em número de quatro, indicariam fases de desenvolvimento onde a criança passaria paulatinamente por um processo que a capacitaria, no final, a mediatizar com a realidade de maneira que se pudesse distinguir com clareza o que é de domínio de um “eu" e o que pertence ao "mundo externo”. Nosso interesse em trazer à tona esse artigo é o de poder destacar o papel fundamental que adquire a introjeção na aquisição do sentido de realidade.

O primeiro estágio diz respeito à época em que a criança não possuía nenhuma diferenciação para com o mundo externo. Trata-se de um período onde , segundo Ferenczi, apesar da condição de se achar na barriga da mãe, portanto ainda como um feto, o pequeno ser já apresenta algo de psíquico. O psíquico em questão diz respeito a uma fase de pura onipotência onde o feto não precisa nem sequer desejar. Tudo lhe é suprido, tudo lhe é satisfatório e nada lhe falta. Pelo fato de tudo ser resolvido sem qualquer necessidade de interferência do feto, Ferenczi identifica ai a predominância de uma posição de onipotência da criança. “Pois o que é onipotência? É a impressão de se ter tudo o que se quer e de não ter mais nada a deseja"19. Segundo Ferenczi trata-se de fato de uma fase onde predomina a “megalomania da criança” e onde se pode dizer que se vive no “período da onipotência incondicional".

Posteriormente, na condição de recém-nascido, algo começa a faltar. Não se habita mais num meio onde tudo parece pacificado e completo. Ter que respirar e se alimentar fazem com que o bebê passe a sentir minimamente algo relativo à ordem da necessidade. Por mais que os adultos lhe acolham com todo tipo de proteção, o mundo intra-uterino está para sempre perdido e é preciso lutar para ter de volta a paz perdida. Aparece então a oportunidade do surgimento do primeiro desejo da criança que não será outro senão o de retornar para a situação primeira. Esse desejo poderá se realizar, ainda que parcialmente, através da experiência de satisfação alucinatória que servirá, ainda que como recurso meramente psíquico, para saciar o desamparo instaurado. “Não tendo, por certo, nenhuma noção do encadeamento real de causas e efeitos, nem da existência e atividade das pessoas que cuidam dela, a criança é levada a sentir-se na posse de uma força mágica, que é capaz de concretizar todos os seus desejos mediante a simples representação de sua satisfação.”20 Esse período é denominado por Ferenczi de "Período da onipotência alucinatória mágica".

Em seguida, o que se verifica é que essa onipotência alucinatória não será mais suficiente para que o pequeno infans consiga dar conta do excesso de exigências que lhe fazem suas pulsões. A criança passará a lançar mão de um novo recurso: produzir sinais que serão capazes de , minimamente, representar algo do que se espera obter. Alucinar única e exclusivamente já não basta mais. É preciso que se possa lançar mão de gestos, que se assemelharão aos gestos de um mágico e que servirão, através da intervenção de um adulto, para apaziguar o desprazer que até então predominava. Assim escreve Ferenczi: “Os desejos, que assumem formas cada vez mais especificas à proporção do desenvolvimento, exigem sinais especializados correspondentes. Tais são eles, em primeiro lugar: a imitação com a boca dos movimentos de sucção quando o bebê deseja ser alimentado, e as manifestações características, com ajuda da voz e de contrações abdominais quando deseja ser trocado. (...) Resulta daí uma verdadeira linguagem gestual." A esse período, notadamente marcado pela entrada da necessidade do uso de gestos para o inicio de uma troca mais efetiva com o mundo externo, Ferenczi dá o nome de "período da onipotência com a ajuda de gestos mágicos".21

Até aqui todos os três estágios mencionados por Ferenczi têm em comum o fato de se apresentarem como períodos onde, de uma forma ou de outra, predomina a onipotência. Onipotência "incondicional", “alucinatória” ou mesmo de "gestos mágicos”. Aqui, de qualquer forma o que se verifica é que o eu do sujeito ainda não se vê obrigado a distinguir-se do mundo externo. Trata-se, portanto, para Ferenczi de dizer que toda a fase de onipotência esta vinculada à predominância de experiências introjetivas.

O fato de que em seguida, a criança é levada a projetar, isto é, é “obrigada a distinguir do seu ego, como constituindo o mundo externo, certas coisas malignas que resistem à sua vontade, ou seja, a separar os conteúdos psíquicos subjetivos (sentimentos) dos conteúdos objetivos (impressões sensoriais)"22 , não quer dizer que a criança deixe de realizar introjeções. Não, ao contrário, uma vez instaurada, a introjeção se fará impor como um mecanismo capaz de estabelecer o próprio universo simbólico do sujeito ao fazer com que ele invista os objetos do mundo externo a partir de sua própria forma auto-erótica de investimento.

É preciso aqui, mais uma vez, evocar a definição do conceito de introjeção a fim de que se possa ter claro o seu papel na própria constituição linguagem na vida de cada sujeito e, por conseguinte da própria instauração do sentido de realidade. Em 1911, Ferenczi escreve um artigo destinado a elucidar ainda mais o conceito de introjeção. Em “O conceito de introjeção”23 ele chega a reafirmar que “descrevi a introjeção como a extensão ao mundo externo do interesse, auto-erótico na origem, pela introdução dos objetos exteriores na esfera do ego”24 Ou seja, o que se depreende daí é que as trocas que o eu estabelece com o mundo externo, a partir de um determinado momento, têm como característica o fato de obedecerem a uma lógica própria ao modelo de satisfação pulsional vigente até então, a saber, o modelo auto-erótico.

Nessa perspectiva, Ferenczi dirá que o homem só será capaz de amar a si mesmo, ou seja, que o modelo de amor é sempre um modelo auto-erótico onde "amar a outrem equivale a integrar esse outrem no próprio ego”25. O que está em jogo a partir dessa apreensão da introjeção é a formação do próprio universo simbólico do sujeito. Para Ferenczi, por conta do modelo da introjeção, o mundo simbólico e, por conseguinte, a constituição da linguagem é eminentemente, antes de tudo, um mundo auto-simbólico. Vejamos como Ferenczi define baseado em sua concepção de introjeção, o próprio estabelecimento das relações simbólicas:

“Assim se estabelecem essas relações profundas, persistentes a vida inteira entre o corpo humano e o mundo dos objetos, a que chamamos relações simbólicas. Nesse estágio, a criança só vê no mundo reproduções de sua corporalidade e, por outro lado, aprende a figurar por meio de seu corpo toda adversidade do mundo externo. Essa aptidão para a figuração simbólica representa um aperfeiçoamento importante da linguagem gestual; ela permite à criança assinalar não só os desejos que envolvem diretamente seu corpo, mas exprimir também desejos que se relacionam com a modificação do mundo externo, doravante reconhecido como tal”.26

A linguagem gestual é, portanto paulatinamente substituída pela linguagem verbal. Essa última se constituirá a partir do momento em que a criança tiver habilidade para reproduzir sons e ruídos produzidos pelo mundo externo e puder lançar mão das palavras em detrimento dos gestos mágicos. Como Ferenczi sugere, a aquisição da palavra é a mais alta realização do aparelho psíquico concretizando sua completa adaptação junto ao mundo externo e ao sentido de realidade. A criança nesse momento se fará entrar no “período dos pensamentos e palavras mágicas”.

Nos interessará nesse momento, aprofundarmos um pouco mais a relação entre a introjeção e a noção ferencziana de auto-simbólico. Em “Ontogênese dos símbolos"27 Ferenczi apresenta toda a lógica que sustenta seu pensamento acerca do que venha a ser um símbolo. Para ele, para que se tome a noção de símbolo a partir de um sentido psicanalítico, não basta que dois termos possam ser comparados entre si , ou que apresentem relações de semelhanças capazes de interligá-los. Não, para Ferenczi, para que haja símbolo é necessário que uma marca esteja em relação à outra associada por razões que estejam sustentadas em uma lógica proveniente dos afetos de cada sujeito. O símbolo dessa forma implica numa singularidade absoluta onde cada sujeito será capaz de formular seu universo simbólico de acordo com suas experiências afetivas, que , em última instância, como já pudemos acompanhar através da definição do conceito de introjeção, seguirão a lógica do modelo pulsional auto-erótico de amor. “A experiência psicanalítica ensina-nos de fato, que a principal condição para que surja um verdadeiro símbolo não é a natureza intelectual, mas afetiva, embora a intervenção de uma insuficiência intelectual seja igualmente necessária à sua formação”.28

O processo introjetivo é por assim dizer o responsável por toda capacidade singular de simbolização do universo. O sujeito só será capaz de simbolizar aquilo de que é capaz de introjetar. Há, nas palavras de Ferenczi, uma verdadeira “sexualização do universo". A criança será capaz de conhecer os objetos do mundo externo através de experiências que afetivamente, a remetam a si própria. Só se fará símbolo aquilo que puder ser identificado às próprias funções prazerosas reconhecidas na fase auto-erótica. Acompanhemos Ferenczi nesse raciocínio: “Nesse estágio, os menininhos designam naturalmente todo objeto oblongo pela denominação infantil de seu órgão sexual, e veem em toda abertura um ânus ou uma boca, em todo líquido, urina e em todas as substâncias moles, materiais fecais. Um bebê de um ano e meio, quando lhe mostraram pela primeira vez o Danúbio, exclamou: quanto cuspe!”.29

Nessa perspectiva de simbolização através da introjeção, o que se verifica é que o sujeito exerce uma função ativa na constituição do objeto. Aqui, o sujeito não encontra os objetos prontos, mas os fabrica de acordo com sua lógica afetiva. Na verdade, a capacidade auto-simbólica trazida pela introjeção é o que vai fazer com que cada sujeito fabrique seu próprio mundo simbólico e com ele estabeleça suas relações de troca. Ao comentar exatamente a questão do objeto no processo de introjeção , Renato Mezan, no artigo “Do auto-erotismo ao objeto: a simbolização segundo Ferenczi”30, aponta para o fato de que o objeto não é nem encontrado e nem investido exclusivamente , mas, de outra forma, ele é formatado de acordo com o processo introjetivo. Vejamos:
O curioso aqui é que o objeto não aparece como fonte destas sensações e sentimentos, mas como alvo deles. Poder-se-ia pensar que o objeto é propriamente constituído por cristalizações e polarizações desses afetos sobre um determinado suporte, empiricamente dado. Creio que esta consequência é de fundamental importância, porque faz do objeto um elemento propriamente psíquico, cuja relação com aquilo no qual se incrusta (o suporte) é determinada pelo sujeito segundo uma lógica essencialmente afetiva”.31

Dessa forma, o que se consideraria como objetos seriam na verdade os próprios movimentos afetivos que se valeriam das representações do mundo externo para dar forma e conteúdo ao psiquismo de cada sujeito. Nessa perspectiva, insiste Mezan: “O objeto ferencziano é uma trança ou bloco de afetos, que pulsa e age sobre o psiquismo”. 32

Na mesma direção, temos o pensamento de Teresa Pinheiro, que , em “Ferenczi - do grito à palavra”33, mostra como de fato, a introjeção é por assim dizer, o próprio movimento do psiquismo, capaz de regular todas as suas atividades e de oferecer um modelo coerente para operações que se complexificam tais como o fantasiar, o representar e o identificar. Nessa perspectiva, a autora segue a linha de raciocínio que indica ser a introjeção o mecanismo pelo qual o psiquismo é capaz de produzir sentido. Assim vejamos sua afirmação:

“Ferenczi é incisivo: diz que unicamente através da introjeção é que um sentido torna-se passível de ser apropriado. Dito de outra maneira, é a introjeção que, pela inclusão do objeto, começa a povoar de representações o aparato psíquico. Nesse caso, no entanto, o objeto nada mais é que o suporte daquilo a que visa a introjeção, ou seja, a apropriação das representações das quais o objeto é portador”. 34

Para Teresa Pinheiro a hipótese que dá toda a consistência para se entender a introjeção como mecanismo principal na ordenação do psiquismo é a de que se trata aí exatamente de por em funcionamento o próprio aparato da linguagem. Desde a primeira introjeção, possibilitadora da inscrição do diferencial prazer-desprazer, pode-se falar em ordenamento do aparelho psíquico em termos da instauração do próprio campo da sexualidade. Para autora, nesse sentido, a introjeção têm a característica de ser ela própria uma qualidade da pulsão e se torna a responsável pelo próprio processo de continuísmo do aparelho psíquico, garantindo, para sempre, desde seu advento, a própria noção de subjetividade. Acompanhamos novamente:

“Em Ferenczi, o objetivo da introjeção refere-se, sobretudo à subjetividade; trata-se de trazer para a esfera psíquica os sentimentos do objeto, este funcionando apenas como suporte das representações já investidas que traz consigo. Essas representações carregadas de sentido possibilitam ao aparelho psíquico apropriar-se do que Ihe falta: sentido”.35

Para Maria Torok, no artigo “Maladie du Deuil et Fantasme du Cadavre Exquis”,36 a questão da introjeção não diria respeito propriamente à inclusão do objeto na esfera do eu como se poderia pensar mais comumente. Haveria para, uma certa sofistificação metapsicológica no processo introjetivo que indicaria que o que é introjetado, na realidade é o conjunto das pulsões e de suas vicissitudes, num processo onde se verificaria sempre um enriquecimento do eu através da aquisição do que até então se encontrava na condição de libido inconsciente ou recalcada.

“A introjeção, segundo Ferenczi, reserva ao objeto – e ao analista por conseguinte – um papel de mediador sobre o inconsciente. Operando num vai-e-vem “entre o narcísico e o objetal”, entre o auto e o hetero-erotismo, ela transforma as incitações pulsionais em desejos e fantasmas de desejo e, assim, os torna aptos a receber um nome e um direito de cidadania e a se manifestar no jogo objetal”.37

Ao indicar que a introjeção reserva ao analista o lugar de mediador entre as pulsões e seu próprio desejo – já que a introjeção é quem viabiliza o estabelecimento do circuito pulsão-objeto, ou se quisermos, o circuito pulsão-linguagem, Torok aproxima também, ferenczianamente, nós acreditamos, o conceito de introjeção da própria noção de transferência. Voltamos dessa forma ao inicio de nossas considerações acerca da transferência nos primeiros artigos de Ferenczi e, portanto retomamos a ideia de que o analista deve ser mesmo esse catalisador - ou mediador, como quer a autora francesa -, capaz de garantir o curso de existência e afirmação do desejo inconsciente. Levar o analisando a realizar seu percurso de introjeções, ou seja, permitir com que ele reordene suas coordenadas simbólicas de acordo com a lógica da sua própria existência afetiva, é portanto dar à transferência o lugar de veículo para que se estabeleçam satisfatoriamente as relações entre os dois pólos extremos onde se situam as pulsões numa extremidade e as representações de objeto na outra extremidade.

Sándor Ferenczi