domingo, 22 de novembro de 2015

Transitoriedade e Transferência Cap.2, Parte 5

Transitoriedade e Transferência


No ano de 1901, Freud escreve seu "Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana”38. Esse cuidadoso trabalho ganhava sua importância na medida em que para Freud, tornava-se necessário explorar por todas as vias possíveis o sentido de sua descoberta: o inconsciente. Praticamente na mesma época em que publicava “A Interpretação dos Sonhos", Freud se dava ao trabalho de colher intermináveis relatos de experiências vividas por ele e por seus colaboradores, capaz de elucidar todo o sentido de sua hipótese, a saber, a que tinha no determinismo psíquico (moções inconscientes), a motivação para todos os atos que, até então pareciam não ter qualquer motivação senão a do equívoco por ele próprio.
“Esquecimento de nomes próprios“, “esquecimentos de palavras estrangeiras", “lapsos da fala", “lapsos de leitura", “atos falhos”, “atos sintomáticos" dentre outros, encontravam-se na categoria de serem , segundo Freud, pequenas psicopatologias, pequenos deslizes presentes no cotidiano de cada um, capazes de trazerem em seu bojo um mal estar na medida em que algo da ordem da intenção consciente se via falhado, dando lugar a uma estranheza ocasionada pela emergência de um material substituto.
Aquele que enunciava algo do qual absolutamente não esperava – pensemos numa troca de intenções - encontrava-se em maus lençóis, pois o mal estar era muito mais por algo que deixava-se captar no ar como uma intenção outra do que propriamente pelo falo de se ter equivocado impunemente.
 Nessa medida, a hipótese de Freud é de que a força de sustentação para todos esses atos aparentemente equivocados estaria sendo garantido pelo que fosse da ordem do desejo inconsciente. Os atos falhos seriam, dessa forma, derivados do inconsciente, ou seja, atos que foram deformados devido ao trabalho da censura de maneira a funcionarem como uma formação de compromisso entre o sistema inconsciente e o consciente. Dessa forma, as psicopatologias da vida cotidiana, não são atos desprovidos de intencionalidade ou sentido, mas ao contrário, representam, em um determinado plano, desejos inconscientes que foram inadmissíveis à consciência.
Assim, os atos falhos, os sonhos e os sintomas são todos maneiras pela qual o recalcado atualiza-se na consciência. Logo no primeiro capitulo, dedicado ao “esquecimento de nomes próprios”, Freud opera uma explicação que esclarece o processo pelo qual se dá o esquecimento do nome. Mais que isso , Freud faz alusão à existência de leis que garantem a escolha daquilo que se apresenta como equivoco: "Trata-se dos casos em que o nome não só é esquecido, como também erroneamente lembrado. Em nosso afã de recuperar o nome perdido, outros - nomes substitutos - nos vêm à consciência reconhecemos de imediato que são incorretos, mas eles insistem em retornar e impõem com grande persistência. O processo que deveria levar à reprodução do nome perdido foi, por assim dizer, deslocado, e por isso conduziu a um substituto incorreto. Minha hipótese é que esse deslocamento não esta entregue a uma escolha psíquica arbitrária, mas segue vias previsíveis que obedecem as leis"39.
Bem entendido, as leis a que faz menção Freud, são as leis que regem o sistema primário, a saber, a condensação e o deslocamento, e toda análise que se fizer das chamadas psicopatologias da vida cotidiana, levarão ao elucidamento de uma intenção inconsciente que se faz presente em qualquer situação.
O psiquismo, num franco processo de defesa, estaria sempre produzindo substitutos que dessem conta de, ao menos parcialmente, representar aquilo que se mostra ameaçador ao eu do sujeito. É preciso fazer notar que Freud sempre lança mão da ideia de deslocamento, para mostrar que esse é o mecanismo pelo qual se opera toda a capacidade defensiva do aparelho psíquico. É assim que Freud entende também os processos de esquecimento de certas intenções, que por serem muito ameaçadoras ao sistema consciente, acabam dando lugar ao esquecimento de outras intenções que menos ameaçadoras, ainda assim mantém vínculo com o material inconsciente: “De qualquer modo, depõe em favor da existência e do poder dessa tendência defensiva o fato de podemos atribuir a ela a origem de processos como os de nossos exemplos de esquecimento. Como vimos, muitas coisas são esquecidas por si mesmas; quando isso não é possível, a tendência defensiva desloca seu alvo e produz ao menos o esquecimento de alguma outra coisa, algo menos importante que tenha estabelecido um vínculo associativo com aquilo que é realmente chocante".40
Se para Freud, ao longo de todo o trabalho em questão, trata-se de mostrar como o pensamento corrente consciente é assaltado frequentemente por atos que lhe imprimem uma situação notadamente equivocada, ou seja, denunciar a existência de atos e intenções falhas que trazem em si a realização de desejos inconscientes, para Ferenczi, em “Sintomas Transitórios no Decorrer de uma Psicanálise”41, também o interesse é falar de atos sintomáticos que interrompem a cadeia normal dos pensamentos, mas com notável diferença: Ferenczi dá ênfase aos atos que irrompem na situação de análise e que trazem a mesma sensação de surpresa e a mesma possibilidade de interpretação oferecida pelos atos falhos trabalhados por Freud.
Para Ferenczi, é como se fosse possível identificar os atos sintomáticos da vida cotidiana, dentro da própria situação de análise. “É frequente ver nos pacientes histéricos o trabalho analítico ser bruscamente interrompido pelo surgimento inopinado de um sintoma sensorial ou motor”42. O que se deve fazer notar aqui são principalmente dois aspectos: 1) os sintomas de que fala Ferenczi são sintomas que surgem por ocorrência da própria análise e, portanto são criações do próprio processo analítico. Da mesma forma que o analista os vê sendo criados como efeito da análise, ele os vê sendo desfeitos a partir de intervenções analíticas.  Por terem esse caráter de serem passageiros, isto é, aparecem e desaparecem durante o próprio processo de análise, Ferenczi dá a eles o valor de serem “transitórios”. 2) Os sintomas “transitórios" diferente dos atos falhos, não pertencem exclusivamente ao universo da linguagem verbal significante (chiste, esquecimento e trocas de nomes), mas têm uma incidência que Ferenczi classifica de orgânica, ainda que para Ferenczi, “se tentarmos descobrir sua significação, constataremos que o sintoma orgânico é a expressão simbólica do mundo afetivo ou intelectual inconsciente".43
Renato Mezan, ao comentar a função transferencial dos sintomas “transitórios” chega a realizar uma comparação destes com os atos sintomáticos trabalhados por Freud em “Psicopatologia da Vida Cotidiana" para mostrar como para Ferenczi, os sintomas “transitórios” têm um valor de criação atual provocada e viabilizada pela transferência. Freud, ao contrário, veria nos atos sintomáticos, a existência de uma verdade que remontaria a todo o passado recalcado. Diz Mezan:
“Enquanto Freud via os atos sintomáticos como produções do inconsciente determinadas pela história pregressa do paciente, Ferenczi vai além e se interroga sobre o papel causativo que a própria situação analítica, galvanizada pela transferência, poderia ter sobre tais manifestações”.44
O próprio Ferenczi alerta de que não se trata da mesma questão que trata Freud acerca dos atos sintomáticos. Isto porque Freud é capaz de construir, através da análise desses atos, verdadeiras histórias bem articuladas e complexas capazes de remeterem a vários níveis de significações junto à história do sujeito. Para Ferenczi, diferente, a única significação que estaria em jogo seria a significação transferencial. Os sintomas “transitórios" não remontariam ao passado mas ao presente da sessão, ao atual trazido pelo movimento analítico que trabalha incidindo por sobre a massa de afetos do sujeito.
Nessa perspectiva, escreve Ferenczi:
Essas conversões passageiras também se observam no plano motor, se bem que mais raramente. Não estou pensando aqui nos atos sintomáticos na acepção de Freud em Psicopatologia da Vida Cotidiana' , que são atividades complexas, bem coordenadas, mas nos espasmos musculares isolados, às vezes dolorosos, ou então nas falhas musculares que lembram as paralisias”. 45
Os sintomas transitórios são criações da transferência. Se pegarmos um dos exemplos de Ferenczi ao longo de seu artigo, teremos a chance de perceber claramente que o sintoma se forma a partir de uma resposta que se dá (em forma de sintoma) à uma intervenção do analista. Uma paciente vive em análise uma de suas fantasias recalcadas infantis declarando-se amorosamente ao analista. Situação franca de amor de transferência que naturalmente mobiliza o analista a tentar instaurar associações que não levem à concretização de qualquer ato de amor. A recusa do analista em oferecer-se como objeto de amor faz com que a paciente responda com a formação de um sintoma transitório. Sua língua ganha uma espécie de anestesia e sua próxima declaração é afirmar a seguinte impressão: "É como se minha língua tivesse sido escaldada.”47 Para Ferenczi, o que se deu foi que a partir de uma situação onde a transferência veiculou o surgimento de fantasias infantis eróticas e o analista pôde negar-se a realiza-las, a língua serviu de ponte possível para representar toda a decepção da paciente e vergonha imbuídas de uma intensa carga afetiva que não tinha como ser vivida de outra maneira.
A compreensão de Ferenczi é a de que o sintoma transitório surge para aplacar um certo excesso afetivo que aflorou provocado pela própria vivência proporcionada na atualidade da transferência.  “A escolha da língua como lugar do aparecimento do sintoma também estava aqui sobredeterminado por diversos fatores, cuja análise me deu acesso às camadas profundas dos complexos inconscientes”.47
Num outro exemplo, Ferenczi traz à tona situações de transferência que provocam no paciente o desejo de agredir o analista.  Como isso lhe é inviável, a solução que surge é o advento de um sintoma transitório capaz de simbolizar algo que ele gostaria de realizar. Assim Ferenczi diz que o paciente apresenta sensações de dores em algumas partes de seu corpo, parte essas, onde, na verdade, gostaria de atingir o próprio analista. "Tinha a intenção de me agredir; a sensação de um golpe na cabeça representava o desejo de espancar, uma dor no coração revelava a ideia de apunhalar".48
Com a perspectiva dos sintomas "transitórios”, Ferenczi torna-se paulatinamente um analista que se interessa por aquilo que está além do conteúdo das associações livres. Diferente dos demais analistas de sua época, Ferenczi se interessa pelas formações simbólicas que o corpo expressa no período relativo às sessões de análise. Nesse sentido, podemos dizer que Ferenczi não ficava exclusivamente na expectativa do que deveria vir a ser dito pelo discurso do paciente, mas que entendia como mensagens dirigidas à ele as formações sintomáticas transitórias que se valiam de expressões corporais para se manifestarem. Assim, Ferenczi escutava também as dores de dente de seus pacientes (esperando que trouxessem associações além da queixa real), escutava as dores de cabeça que os acometiam durante as sessões e se interessava com bastante intensidade pelas expressões de cada paciente seu ao longo das sessões. Um exemplo típico disso se encontra testemunhado num artigo minúsculo de Ferenczi dedicado a fazer uma observação sobre a maneira de alguns pacientes deitarem-se no divã. O artigo, denominado "Um Sintoma Transitório: a Posição do Paciente Durante o Tratamento”49 revela que para Ferenczi, a escuta analítica deveria funcionar além dos limites do dito. Transcreveremos o artigo na íntegra: “Em dois casos, pacientes masculinos denunciaram suas fantasias homossexuais passivas da seguinte maneira: durante a sessão, em vez de serem estendidos de costas ou de lado, puseram-se bruscamente de barriga pra baixo”.50
Renato Mezan faz uso da ideia de auto-simbólico para explicar o advento desses sintomas “transitórios". Para o autor, toda a vez que a situação de análise provoca um excesso de excitação, o sujeito se defende auto-simbolicamente, criando sintomas ligados a seu próprio corpo capaz de simbolizarem o conflito vivido em transferência. Ao explicar o advento dos sintomas transitórios ele diz: “O que ocorreu foi, segundo Ferenczi uma simbolização hic e nunc, cujo sentido envolve fantasias inconscientes ativadas pela análise e de um do ou de outro absorvidas pela transferência”.51
Segundo Ferenczi, o surgimento desses sintomas “transitórios" se daria como uma espécie de um último recurso contra certas tomadas de consciência propiciadas pelo trabalho de análise. Quanto mais à análise caminhasse para a elucidação de complexos inconscientes, quanto mais a transferência pudesse atualizar conflitos afetivos até então recalcados, mais se verificaria o surgimento desses sintomas "transitórios” que tinham como característica evitar o advento da palavra “rechaçando a tensão afetiva para a esfera sensorial.”52
O que nos parece fundamental de ser observado é que esses sintomas transitórios apontam para a fina percepção de Ferenczi de que a experiência de transferência é , em última instância , uma experiência capaz de ser criativa. Os sintomas “transitórios” atestam para o potencial da transferência de criar sintomas capazes de se oferecerem como rico material para a intervenção do analista. Para Ferenczi, quando um sintoma “transitório" surgia, era sinal de que a transferência havia tomado as rédeas do processo analítico e de que portanto aquele sintoma ali criado deveria ser uma mensagem endereçada diretamente ao analista, que, com a possibilidade de um ato interpretativo poderia rapidamente reverter o sintoma em construções capazes de funcionarem analiticamente.
Assim, a certeza trazida pelos sintomas “transitórios" é a certeza de que o analista está no caminho certo. Mais que isso, é a certeza de que a análise sendo capaz de criar chances de articulação para a fala do sujeito. Um sintoma “transitório" se faz erguer porque ele é a última tentativa do psiquismo de se defender de algo que não pode ser dito. Tentativa de defesa esse que com certeza fracassará, pois é o sucesso da transferência que está em jogo. Se todo sinto “transitório” é efeito de análise e produzido enquanto mensagem para o analista, isto significa que dependerá do próprio manejo da transferência, fazer com que o que é “transitório” possa dar lugar a algo que tenha efeito interpretativo capaz de trazer introjeções capazes de serem efetivas para o sujeito no sentido de sua cura analítica.

Por fim, vejamos o que conclui o próprio Ferenczi acerca da função os sintomas transitórios: “Das observações de formação de sintomas transitórios aqui agrupadas, proponho-me a extrair a seguinte hipótese: tanto nas grandes neuroses como nessas neuroses em ‘miniatura’, o sintoma só aparece se o psiquismo tiver ameaçado, por uma causa exterior ou interior, pelo perigo do estabelecimento de um vínculo associativo entre os fragmentos dos complexos recalcados e a consciência, ou seja, de uma tomada de consciência que perturbaria o equilíbrio assegurado por um recalcamento anterior.”53


Sándor Ferenczi 


segunda-feira, 9 de novembro de 2015

A introjeção e a aquisição do sentido de realidade Cap.2, Parte 4

A introjeção e a aquisição do sentido de realidade


Em 1913 Ferenczi escreve um importante artigo denominado “O Desenvolvimento do Sentido de Realidade e Seus Estágios”18, destinado a oferecer um modelo teórico capaz de explicitar o processo de formação e aquisição do sentido de realidade para o eu do sujeito. Trata-se de um pensamento que reconhece diferentes estágios de sustentação e percepção da realidade onde o sujeito estabelece diferentes níveis de relação com o mundo externo. Esses estágios, em número de quatro, indicariam fases de desenvolvimento onde a criança passaria paulatinamente por um processo que a capacitaria, no final, a mediatizar com a realidade de maneira que se pudesse distinguir com clareza o que é de domínio de um “eu" e o que pertence ao "mundo externo”. Nosso interesse em trazer à tona esse artigo é o de poder destacar o papel fundamental que adquire a introjeção na aquisição do sentido de realidade.

O primeiro estágio diz respeito à época em que a criança não possuía nenhuma diferenciação para com o mundo externo. Trata-se de um período onde , segundo Ferenczi, apesar da condição de se achar na barriga da mãe, portanto ainda como um feto, o pequeno ser já apresenta algo de psíquico. O psíquico em questão diz respeito a uma fase de pura onipotência onde o feto não precisa nem sequer desejar. Tudo lhe é suprido, tudo lhe é satisfatório e nada lhe falta. Pelo fato de tudo ser resolvido sem qualquer necessidade de interferência do feto, Ferenczi identifica ai a predominância de uma posição de onipotência da criança. “Pois o que é onipotência? É a impressão de se ter tudo o que se quer e de não ter mais nada a deseja"19. Segundo Ferenczi trata-se de fato de uma fase onde predomina a “megalomania da criança” e onde se pode dizer que se vive no “período da onipotência incondicional".

Posteriormente, na condição de recém-nascido, algo começa a faltar. Não se habita mais num meio onde tudo parece pacificado e completo. Ter que respirar e se alimentar fazem com que o bebê passe a sentir minimamente algo relativo à ordem da necessidade. Por mais que os adultos lhe acolham com todo tipo de proteção, o mundo intra-uterino está para sempre perdido e é preciso lutar para ter de volta a paz perdida. Aparece então a oportunidade do surgimento do primeiro desejo da criança que não será outro senão o de retornar para a situação primeira. Esse desejo poderá se realizar, ainda que parcialmente, através da experiência de satisfação alucinatória que servirá, ainda que como recurso meramente psíquico, para saciar o desamparo instaurado. “Não tendo, por certo, nenhuma noção do encadeamento real de causas e efeitos, nem da existência e atividade das pessoas que cuidam dela, a criança é levada a sentir-se na posse de uma força mágica, que é capaz de concretizar todos os seus desejos mediante a simples representação de sua satisfação.”20 Esse período é denominado por Ferenczi de "Período da onipotência alucinatória mágica".

Em seguida, o que se verifica é que essa onipotência alucinatória não será mais suficiente para que o pequeno infans consiga dar conta do excesso de exigências que lhe fazem suas pulsões. A criança passará a lançar mão de um novo recurso: produzir sinais que serão capazes de , minimamente, representar algo do que se espera obter. Alucinar única e exclusivamente já não basta mais. É preciso que se possa lançar mão de gestos, que se assemelharão aos gestos de um mágico e que servirão, através da intervenção de um adulto, para apaziguar o desprazer que até então predominava. Assim escreve Ferenczi: “Os desejos, que assumem formas cada vez mais especificas à proporção do desenvolvimento, exigem sinais especializados correspondentes. Tais são eles, em primeiro lugar: a imitação com a boca dos movimentos de sucção quando o bebê deseja ser alimentado, e as manifestações características, com ajuda da voz e de contrações abdominais quando deseja ser trocado. (...) Resulta daí uma verdadeira linguagem gestual." A esse período, notadamente marcado pela entrada da necessidade do uso de gestos para o inicio de uma troca mais efetiva com o mundo externo, Ferenczi dá o nome de "período da onipotência com a ajuda de gestos mágicos".21

Até aqui todos os três estágios mencionados por Ferenczi têm em comum o fato de se apresentarem como períodos onde, de uma forma ou de outra, predomina a onipotência. Onipotência "incondicional", “alucinatória” ou mesmo de "gestos mágicos”. Aqui, de qualquer forma o que se verifica é que o eu do sujeito ainda não se vê obrigado a distinguir-se do mundo externo. Trata-se, portanto, para Ferenczi de dizer que toda a fase de onipotência esta vinculada à predominância de experiências introjetivas.

O fato de que em seguida, a criança é levada a projetar, isto é, é “obrigada a distinguir do seu ego, como constituindo o mundo externo, certas coisas malignas que resistem à sua vontade, ou seja, a separar os conteúdos psíquicos subjetivos (sentimentos) dos conteúdos objetivos (impressões sensoriais)"22 , não quer dizer que a criança deixe de realizar introjeções. Não, ao contrário, uma vez instaurada, a introjeção se fará impor como um mecanismo capaz de estabelecer o próprio universo simbólico do sujeito ao fazer com que ele invista os objetos do mundo externo a partir de sua própria forma auto-erótica de investimento.

É preciso aqui, mais uma vez, evocar a definição do conceito de introjeção a fim de que se possa ter claro o seu papel na própria constituição linguagem na vida de cada sujeito e, por conseguinte da própria instauração do sentido de realidade. Em 1911, Ferenczi escreve um artigo destinado a elucidar ainda mais o conceito de introjeção. Em “O conceito de introjeção”23 ele chega a reafirmar que “descrevi a introjeção como a extensão ao mundo externo do interesse, auto-erótico na origem, pela introdução dos objetos exteriores na esfera do ego”24 Ou seja, o que se depreende daí é que as trocas que o eu estabelece com o mundo externo, a partir de um determinado momento, têm como característica o fato de obedecerem a uma lógica própria ao modelo de satisfação pulsional vigente até então, a saber, o modelo auto-erótico.

Nessa perspectiva, Ferenczi dirá que o homem só será capaz de amar a si mesmo, ou seja, que o modelo de amor é sempre um modelo auto-erótico onde "amar a outrem equivale a integrar esse outrem no próprio ego”25. O que está em jogo a partir dessa apreensão da introjeção é a formação do próprio universo simbólico do sujeito. Para Ferenczi, por conta do modelo da introjeção, o mundo simbólico e, por conseguinte, a constituição da linguagem é eminentemente, antes de tudo, um mundo auto-simbólico. Vejamos como Ferenczi define baseado em sua concepção de introjeção, o próprio estabelecimento das relações simbólicas:

“Assim se estabelecem essas relações profundas, persistentes a vida inteira entre o corpo humano e o mundo dos objetos, a que chamamos relações simbólicas. Nesse estágio, a criança só vê no mundo reproduções de sua corporalidade e, por outro lado, aprende a figurar por meio de seu corpo toda adversidade do mundo externo. Essa aptidão para a figuração simbólica representa um aperfeiçoamento importante da linguagem gestual; ela permite à criança assinalar não só os desejos que envolvem diretamente seu corpo, mas exprimir também desejos que se relacionam com a modificação do mundo externo, doravante reconhecido como tal”.26

A linguagem gestual é, portanto paulatinamente substituída pela linguagem verbal. Essa última se constituirá a partir do momento em que a criança tiver habilidade para reproduzir sons e ruídos produzidos pelo mundo externo e puder lançar mão das palavras em detrimento dos gestos mágicos. Como Ferenczi sugere, a aquisição da palavra é a mais alta realização do aparelho psíquico concretizando sua completa adaptação junto ao mundo externo e ao sentido de realidade. A criança nesse momento se fará entrar no “período dos pensamentos e palavras mágicas”.

Nos interessará nesse momento, aprofundarmos um pouco mais a relação entre a introjeção e a noção ferencziana de auto-simbólico. Em “Ontogênese dos símbolos"27 Ferenczi apresenta toda a lógica que sustenta seu pensamento acerca do que venha a ser um símbolo. Para ele, para que se tome a noção de símbolo a partir de um sentido psicanalítico, não basta que dois termos possam ser comparados entre si , ou que apresentem relações de semelhanças capazes de interligá-los. Não, para Ferenczi, para que haja símbolo é necessário que uma marca esteja em relação à outra associada por razões que estejam sustentadas em uma lógica proveniente dos afetos de cada sujeito. O símbolo dessa forma implica numa singularidade absoluta onde cada sujeito será capaz de formular seu universo simbólico de acordo com suas experiências afetivas, que , em última instância, como já pudemos acompanhar através da definição do conceito de introjeção, seguirão a lógica do modelo pulsional auto-erótico de amor. “A experiência psicanalítica ensina-nos de fato, que a principal condição para que surja um verdadeiro símbolo não é a natureza intelectual, mas afetiva, embora a intervenção de uma insuficiência intelectual seja igualmente necessária à sua formação”.28

O processo introjetivo é por assim dizer o responsável por toda capacidade singular de simbolização do universo. O sujeito só será capaz de simbolizar aquilo de que é capaz de introjetar. Há, nas palavras de Ferenczi, uma verdadeira “sexualização do universo". A criança será capaz de conhecer os objetos do mundo externo através de experiências que afetivamente, a remetam a si própria. Só se fará símbolo aquilo que puder ser identificado às próprias funções prazerosas reconhecidas na fase auto-erótica. Acompanhemos Ferenczi nesse raciocínio: “Nesse estágio, os menininhos designam naturalmente todo objeto oblongo pela denominação infantil de seu órgão sexual, e veem em toda abertura um ânus ou uma boca, em todo líquido, urina e em todas as substâncias moles, materiais fecais. Um bebê de um ano e meio, quando lhe mostraram pela primeira vez o Danúbio, exclamou: quanto cuspe!”.29

Nessa perspectiva de simbolização através da introjeção, o que se verifica é que o sujeito exerce uma função ativa na constituição do objeto. Aqui, o sujeito não encontra os objetos prontos, mas os fabrica de acordo com sua lógica afetiva. Na verdade, a capacidade auto-simbólica trazida pela introjeção é o que vai fazer com que cada sujeito fabrique seu próprio mundo simbólico e com ele estabeleça suas relações de troca. Ao comentar exatamente a questão do objeto no processo de introjeção , Renato Mezan, no artigo “Do auto-erotismo ao objeto: a simbolização segundo Ferenczi”30, aponta para o fato de que o objeto não é nem encontrado e nem investido exclusivamente , mas, de outra forma, ele é formatado de acordo com o processo introjetivo. Vejamos:
O curioso aqui é que o objeto não aparece como fonte destas sensações e sentimentos, mas como alvo deles. Poder-se-ia pensar que o objeto é propriamente constituído por cristalizações e polarizações desses afetos sobre um determinado suporte, empiricamente dado. Creio que esta consequência é de fundamental importância, porque faz do objeto um elemento propriamente psíquico, cuja relação com aquilo no qual se incrusta (o suporte) é determinada pelo sujeito segundo uma lógica essencialmente afetiva”.31

Dessa forma, o que se consideraria como objetos seriam na verdade os próprios movimentos afetivos que se valeriam das representações do mundo externo para dar forma e conteúdo ao psiquismo de cada sujeito. Nessa perspectiva, insiste Mezan: “O objeto ferencziano é uma trança ou bloco de afetos, que pulsa e age sobre o psiquismo”. 32

Na mesma direção, temos o pensamento de Teresa Pinheiro, que , em “Ferenczi - do grito à palavra”33, mostra como de fato, a introjeção é por assim dizer, o próprio movimento do psiquismo, capaz de regular todas as suas atividades e de oferecer um modelo coerente para operações que se complexificam tais como o fantasiar, o representar e o identificar. Nessa perspectiva, a autora segue a linha de raciocínio que indica ser a introjeção o mecanismo pelo qual o psiquismo é capaz de produzir sentido. Assim vejamos sua afirmação:

“Ferenczi é incisivo: diz que unicamente através da introjeção é que um sentido torna-se passível de ser apropriado. Dito de outra maneira, é a introjeção que, pela inclusão do objeto, começa a povoar de representações o aparato psíquico. Nesse caso, no entanto, o objeto nada mais é que o suporte daquilo a que visa a introjeção, ou seja, a apropriação das representações das quais o objeto é portador”. 34

Para Teresa Pinheiro a hipótese que dá toda a consistência para se entender a introjeção como mecanismo principal na ordenação do psiquismo é a de que se trata aí exatamente de por em funcionamento o próprio aparato da linguagem. Desde a primeira introjeção, possibilitadora da inscrição do diferencial prazer-desprazer, pode-se falar em ordenamento do aparelho psíquico em termos da instauração do próprio campo da sexualidade. Para autora, nesse sentido, a introjeção têm a característica de ser ela própria uma qualidade da pulsão e se torna a responsável pelo próprio processo de continuísmo do aparelho psíquico, garantindo, para sempre, desde seu advento, a própria noção de subjetividade. Acompanhamos novamente:

“Em Ferenczi, o objetivo da introjeção refere-se, sobretudo à subjetividade; trata-se de trazer para a esfera psíquica os sentimentos do objeto, este funcionando apenas como suporte das representações já investidas que traz consigo. Essas representações carregadas de sentido possibilitam ao aparelho psíquico apropriar-se do que Ihe falta: sentido”.35

Para Maria Torok, no artigo “Maladie du Deuil et Fantasme du Cadavre Exquis”,36 a questão da introjeção não diria respeito propriamente à inclusão do objeto na esfera do eu como se poderia pensar mais comumente. Haveria para, uma certa sofistificação metapsicológica no processo introjetivo que indicaria que o que é introjetado, na realidade é o conjunto das pulsões e de suas vicissitudes, num processo onde se verificaria sempre um enriquecimento do eu através da aquisição do que até então se encontrava na condição de libido inconsciente ou recalcada.

“A introjeção, segundo Ferenczi, reserva ao objeto – e ao analista por conseguinte – um papel de mediador sobre o inconsciente. Operando num vai-e-vem “entre o narcísico e o objetal”, entre o auto e o hetero-erotismo, ela transforma as incitações pulsionais em desejos e fantasmas de desejo e, assim, os torna aptos a receber um nome e um direito de cidadania e a se manifestar no jogo objetal”.37

Ao indicar que a introjeção reserva ao analista o lugar de mediador entre as pulsões e seu próprio desejo – já que a introjeção é quem viabiliza o estabelecimento do circuito pulsão-objeto, ou se quisermos, o circuito pulsão-linguagem, Torok aproxima também, ferenczianamente, nós acreditamos, o conceito de introjeção da própria noção de transferência. Voltamos dessa forma ao inicio de nossas considerações acerca da transferência nos primeiros artigos de Ferenczi e, portanto retomamos a ideia de que o analista deve ser mesmo esse catalisador - ou mediador, como quer a autora francesa -, capaz de garantir o curso de existência e afirmação do desejo inconsciente. Levar o analisando a realizar seu percurso de introjeções, ou seja, permitir com que ele reordene suas coordenadas simbólicas de acordo com a lógica da sua própria existência afetiva, é portanto dar à transferência o lugar de veículo para que se estabeleçam satisfatoriamente as relações entre os dois pólos extremos onde se situam as pulsões numa extremidade e as representações de objeto na outra extremidade.

Sándor Ferenczi


segunda-feira, 2 de novembro de 2015

O Conceito de Introjeção e a Transferência Cap.2, Parte 3


O Conceito de Introjeção e a Transferência

Caminhando ainda mais na tentativa de compreender uma certa metapsicologia da transferência, Ferenczi lança mão da ideia de que toda neurose “é uma fuga diante dos complexos inconscientes"12. Desde Freud, sabemos que a neurose se estabelece como a formação de algo que substitui um conflito que não pode ser levado à cabo pela consciência. Assim, o processo se instaura através de um ato de defesa que procura atenuar as representações incompatíveis com o eu transformando-as de maneira que percam seu poder de excitação. Dessa forma, acompanhamos a formação de quadros sintomáticos histéricos a partir da conversão do afeto em inervação somática e a formação da neurose obsessiva através do estabelecimento de um mecanismo de permanente deslocamentos afetivos que conseguirão parcialmente amenizar a dor psíquica, instaurando um quadro compulsivo sintomático.
O que Ferenczi é levado a afirmar é que mesmo que o sujeito se defenda através de mecanismos como os descritos acima, mesmo assim lhe restará sempre uma quota de afetos que , não alocadas, se mostrará sempre “livremente flutuante” exigindo portanto resposta. "É a essa quantidade de excitação 'residual' que se imputará a disposição dos neuróticos para a transferência; e nas neuroses sem sintoma permanente de conversão é essa libido insatisfeita, em busca de um objeto, que explica o conjunto do quadro patológico"13.
Assim, o próximo passo que Ferenczi dá é o de estabelecer um mecanismo padrão que rege toda a constituição do psiquismo preponderantemente neurótico, que se revelará como um movimento permanente de estabilização desses afetos flutuantes através de um processo que visará alocar o excesso em questão através de sua ligação com os objetos próprios ao mundo externo. Diferentemente do paranóico que projeta para fora de seu eu os afetos que Ihe são pertinentes, "o neurótico procura incluir em sua esfera de interesses uma parte tão grande quanto possível do mundo externo, para fazê-lo objeto de fantasias inconscientes ou conscientes“14. A esse processo de formulação do mundo fantasístico do neurótico, notadamente construído através de sua relação de apreensão dos objetos do mundo externo, Ferenczi dá o nome de "introjeção”.
O conceito de introjeção, como podemos notar, nasce bastante próximo da ideia que Ferenczi tem do próprio mecanismo de transferência. Aqui, quase que como sinônimos, transferência e introjeção acabam por complementarem-se. O excesso afetivo que não deu lugar a um processo de formação sintomática será ele próprio encarregado de chamar para si a ligação das representações do mundo externo. A ideia de introjeção implica em um “botar para dentro" onde o que marca sua característica peculiar é a própria maneira como isso se dá: introjeta-se transferindo o interesse afetivo flutuante (interno) para as representações do mundo externo de maneira a fazer com que elas pertençam ao próprio eu. “O neurótico está em perpétua busca de objetos de identificação, de transferência; isto significa que atrai tudo o que pode para sua esfera de interesses, ' introjeta-os”. 15
Ferenczi mostrará que por conta da instauração de um permanente circuito introjetivo, capaz de estabelecer constantes ligações psíquicas entre o
eu e o mundo externo, o sujeito acabará sofrendo por um excesso de ligações que acabarão por constituí-lo como neurótico. Na paranóia, em contrapartida, o que ocorrerá é a diminuição do eu, onde o sujeito, ao invés de introjetar, projetará, num processo eminentemente defensivo, onde fica claro seu desinteresse e inaptidão para suportar seus próprios afetos. "O 'ego' do neurótico é patologicamente dilatado, ao passo que o paranóico sofre, por assim dizer, uma contração do 'ego”.16
A partir das ideias de introjeção e projeção, mecanismos que podem ser apreciados com mais exagero respectivamente na neurose e na paranóia, Ferenczi trabalha a ideia de uma certa ontogênese do psiquismo baseada na formulação de uma “projeção primitiva” e de uma “introjeção primitiva”. Para tal, imagina-se que o recém-nascido, habitando um mundo monista por excelência, portanto isolado em suas experiências psíquicas de qualquer percepção de uma exterioridade, seria a partir de um determinado momento levado a reconhecer a “malícia das coisas”, isto é, a reconhecer certas representações que não lhe são compatíveis ou suportáveis e que, por conseguinte deverão ser expulsas de sua interioridade. O que se sucederá, segundo Ferenczi, é que o recém-nascido será levado a expulsar de si tais representações incompatíveis realizando então uma espécie de “projeção primitiva”, mecanismo esse responsável por inaugurar um dentro e um fora no aparelho psíquico.
Nem tudo, dirá Ferenczi, no entanto, se deixará expulsar. Nem tudo será expulsado e haverá sempre representações que farão imposição ao sujeito exigindo-lhe resposta. Assim, se o aparelho ruma em constituir-se como algo que deverá responder por uma singularidade, deverá portanto responder à essa exigência interna de maneira que possa utilizar-se das representações do mundo externo a fim de incluí-las em sua esfera de interesses e assim reduzir o desprazer interno. Trata-se aqui, também de um movimento inaugural, capaz de estabelecer um mecanismo que será a própria maneira de funcionar do psiquismo daí por diante: instaura-se portanto, a introjeção, através de uma “introjeção primitiva".
lnstaurada a introjeção, ou seja, instaurada a capacidade do sujeito poder ligar-se ao mundo externo através de um processo que constitui sua singularidade, o que torna-se viável, concomitantemente, é a realização do circuito transferencial. A partir de então, o sujeito aprenderá a amar e a odiar de acordo com seu modelo inicial (auto-erótico) que o levou a introjetar.

“O primeiro amor, o primeiro ódio realizam-se graças à transferência: uma parte das sensações de prazer ou de desprazer, auto eróticas na origem, deslocam-se para os objetos que as suscitaram. No início a criança só gosta da saciedade, porque ela aplaca a fome que a tortura - depois acaba gostando também da mãe, esse objeto que lhe proporciona a saciedade. O primeiro amor objetal, o primeiro ódio objetal constituem, portanto, a raiz, o modelo, de toda transferência posterior, que não é por conseguinte, uma característica da neurose mas a exageração de um processo mental normal.”17


Sándor Ferenczi