terça-feira, 22 de dezembro de 2015

A Atividade: Intervenções sob os ‘Atos Sintomáticos’ Cap.3, Parte II

Em 1919, Ferenczi escreve o artigo ‘Dificuldades Técnicas de uma Análise de Histeria”.  Esse artigo pode ser considerado o primeiro de uma série de seis escritos destinados a problematizar o que o próprio Ferenczi designou por “Técnica Ativa”.  Constituirá nossa tarefa ao longo desse capítulo, discutir de maneira bastante minuciosa, o desenvolvimento relativo ao período da técnica ativa na obra de Ferenczi, preocupando-nos sempre em estabelecer as relações entre este período e a concepção que Ferenczi passa a ter do conceito de transferência.  Nossa ideia, é que , a partir da especificidade trazida pela técnica ativa, a concepção da transferência passa a tomar rumos completamente inéditos e a  oferecer uma compreensão do psicanalisar completamente diferente do que se realizava até então.
  Por hora, atenhamo-nos às preocupações iniciais de Ferenczi no texto em questão.  Trata-se de um caso onde a análise não vinha conseguindo se desenrolar de maneira satisfatória.  Isso quer dizer que os sintomas da paciente, uma mulher com uma questão notadamente histérica, não cediam ao tratamento e tudo o que o analista podia verificar como efeito de análise era a manutenção de uma relação de transferência onde o amor imperava e gerava uma espécie de “boa vontade” por parte da paciente em compreender sua situação sintomática e empreender seu trabalho associativo.
 Vimos no capítulo 1, mais especificamente no que diz respeito ao componente da transferência entendido como “amor de transferência”, que todo movimento de demanda e estabelecimento de amor por parte do analisando na relação com o analista é concebido por Freud como sendo da ordem da resistência.  Isto porquê o amor de transferência impede que emerja, em análise, a enunciação do desejo do sujeito e por conseguinte, a remissão dos sintomas se vê  aprisionada sem poder ser alcançada.  Na situação de amor, a associação livre não se torna tão livre assim, ela se vê, na verdade, em função de produzir significações exclusivamente ligadas à problemática do amor.
   Assim, para Ferenczi, toda a dificuldade trazida pelo amor de transferência estava no fato de que o tratamento se encontrava em estado de estagnação onde o analista se via na função inócua de tentar levar a paciente a produzir associações que levassem adiante o tratamento.  Nesse sentido , Ferenczi relata que “As sessões passavam-se em declarações e juras de amor apaixonadas da parte dela e, da minha, em vãos esforços para fazê-la entender a natureza transferencial dos seus sentimentos e reconduzí-la aos objetos reais mas inconscientes de seus afetos.”
  A situação tinha levado Ferenczi a recorrer a uma medida não tão usual :  ele resolveu fixar um prazo para o término do tratamento, na expectativa de fazer com que , pressionada, durante o período que lhe restasse de tratamento, a paciente pudesse produzir associações até então inéditas.  Podemos dizer que a atitude de Ferenczi de fixar o prazo, constituiu em si mesma uma tentativa ativa de intervenção onde o analista apostava no cerco à resistência  apressando o curso das associações livres de forma a levar a paciente a dizer o que até então não tinha sido possível dizer. (nota dizendo da experiência de Freud com o homem dos lobos).
 A tentativa, nesse caso, foi em vão.  A paciente não livrou-se de seu amor de transferência e acabou por deixar o tratamento, ao fim do prazo marcado, sem ter solucionado suas dificuldades.  Tempos depois ela retorna pedindo a Ferenczi uma nova chance e é de pronto atendida.  Nova interrupção , dessa vez por fatores externos, fazem com que a paciente  abandone o tratamento sem que esse possa ter sido terminado.
Com a insistência de seus sintomas, uma terceira tentativa com Ferenczi.  Dessa vez, ainda enredada em situações amorosas junto ao analista, a paciente deixa escapar que tinha compulsivas sensações eróticas genitais com uma certa continuidade.  Tal declaração, possibilitada pela própria condição transferencial, sugere à Ferenczi que a paciente poderia estar obtendo satisfações masturbatórias intensas e frequentes.  Masturbações essas que, sem que a paciente pudesse se dar conta, com certeza estariam tomando conta de grande parte dos investimentos libidinais da paciente.
 Ferenczi decide intervir nesse circuito masturbatório.  Ele decide proibir a paciente de se masturbar alegando que ela obtinha uma satisfação libidinal intensa com esse hábito e que isso por si só impedia o advento de associações que pudessem desencadear um andamento satisfatório ao tratamento.  Para Ferenczi, o hábito masturbatório , ou masturbação de forma larvar, era uma maneira de a paciente descarregar suas moções pulsionais de maneira tal que o material associativo perdia seu vigor e importância para o tratamento.  Era como se o circuito pulsional dispensasse o acesso à palavra e se satisfizesse sob a  forma de uma permanente descarga que incidisse exclusivamente sobre o corpo (área genital) da paciente.
  Segundo Ferenczi, dessa maneira a paciente obtinha uma satisfação auto-erótica em elevado grau de intensidade.  O efeito advindo da interdição foi revolucionário.  A paciente que não podia produzir nada senão suas declarações amorosas ao analista, passou a fantasiar num ritmo frenético, sendo capaz de restabelecer ligações importantes pertinentes ao seu universo infantil e com isso passou a ser capaz se reconstituir o que Frenczi chamou de situações traumáticas de sua vida.  A análise , nesse ponto, tinha seu curso retomado , uma vez que as associações livres voltaram a circular , efetivamente, de maneira mais livre.
O que se depreende desta intervenção é que Ferenczi obteve, ao proibir o ato masturbatório, um aumento da tensão libidinal, que, uma vez impossibilitada de se descarregar através da motilidade, teve que se oferecer enquanto material psíquico capaz de ser capturado por novas representações que passaram a investí-lo.  Bem entendido, a proibição ordenada pelo analista teve o surpreendente efeito de fazer com que a paciente obtivesse recursos para voltar a associar livremente.
O próximo passo foi proibir a paciente de se masturbar durante sua vida cotidiana.  Ela deveria prestar a atenção em todos os pequenos movimentos de satisfação que obtinha ao longo de diversas partes de seu corpo.  Ferenczi teoriza em torno da noção de “atos sintomáticos”.  Esses atos, já descritos por Freud como formações do inconsciente em  “A Psicopatologia da Vida Cotidiana”, ganham aqui o caráter de serem atos equivalentes ao que Frenczi chama de onanismo.  Os atos sintomáticos são , nessa perspectiva, formações do inconsciente que não passam pela via da palavra.  Eles são uma forma infantil (auto-erótica) da pulsão se organizar de maneira que o resultado seja uma atitude tal qual a masturbação, onde o prazer fique restrito a uma espécie de satisfação puramente corporal.  Para Ferenczi, os atos sintomáticos representavam pontos isolados e diversos onde o sujeito adquire uma quantidade de prazer considerável e que têm por característica o fato de não se articularem com o resto do circuito libidinal.  Atos sintomáticos seriam, bem entendido, satisfações independentes que impediriam a libido de se fazer presente no campo pertinente às associações livres.  Eis aí a explicação para a estagnação própria ao tratamento: a paciente em questão não falava porque apresentava em abundância , a ocorrência de atos sintomáticos que, por suas vezes, dispendiam uma quantidade muito grande de libido em si mesmos.  Assim, vejamos como Ferenczi teoriza essa questão: “Nesse caso, a libido estava privada de um modo tão total de toda e qualquer outra possibilidade de descarga que ela podia aumentar até atingir um verdadeiro orgasmo ao nível dessas partes do corpo que, por sua natureza, estão longe de ser zonas erógenas preponderantes”.
 O entendimento de Ferenczi era o de que  toda a sexualidade dessa paciente estava dissipada, isto é, fragmentada, na incidência de todos os atos sintomáticos que ela era capaz de produzir.  A posição de Ferenczi  ao proibir tais atos sintomáticos era a de esperar que as satisfações parciais das pulsões pudessem ser renunciadas em proveito do advento de uma prática discursiva acerca desse próprio corpo. A expectativa de Ferenczi era a de que houvesse um “repatriamento”, isto é, uma realocação da libido que deveria migrar da condição de ato sintomático para a condição de fala articulada com a história inconsciente da paciente.
  Para Ferenczi, a partir da experiência com a situação analítica acima relatada, trata-se de afirmar que fica estabelecida uma nova regra analítica. Trata-se de dizer que ao analista cabe escutar , quando do estancamento do material analítico, aquilo que se organiza em termos de satisfação substitutiva da libido ou satisfação masturbatória.  A nova regra, a que prevê que o analista intervenha sob o próprio ato sintomático, isto é, interfira além do que é dito pelas associações livres , faz com que o analista pressuponha que há algo do sujeito que se formula , em análise, além do que é dito pela via da palavra.  Trata-se aqui de intervir no próprio corpo, sob a forma de proibição daquilo que se verifica como puro escoamento da libido não ligada.  O analista, a partir da nova regra, vai além de sua posição  de espera do material recalcado, para impedir que a libido descarregue-se sob a forma direta na motilidade.  Isto porque para Ferenczi , “Essas atividades [atos sintomáticos] , que se poderia supor inofensivas, são , com efeito,  suscetíveis de tornar-se o refúgio da libido despojada pela análise de seus investimentos e, nos casos extremos, podem substituir toda a vida sexual do sujeito
 Para Ferenczi, trata-se de ir além do campo da própria associação livre.  Onde o paciente não associa,  onde ele goza de satisfação puramente masturbatória, alí reside uma resistência que não é a mesma resistência ordenada pelo campo da fala.  Trata-se de algo que resiste enquanto pura repetição da pulsão inarticulada com o campo da representação. Essa ideia, a de repetição como resistência, desenvolveremos mais adiante ao longo desas capítulo.  Por hora nos interessa afirmar que Ferenczi inaugura aqui uma nova modalidade de intervenção para o analista.  Uma intervenção que deve pressupor que o analista não deve conceber sua prática resumida ao campo do discursivo.  Não, ao contrário , ele deve se indagar justamente o porquê do não advento desse próprio discurso e procurar intervir onde algo se faz enquanto libido não ligada.  O analista , assim, deverá incluir no campo do analisável aquilo que não se faz enquanto psíquico para na forma de ato, provocar um refluxo do que é apenas um ato sintomático, para o campo da fala.
Esses últimos[ atos sintomáticos] podem ser considerados patológicos e necessitam de uma elucidação analítica.  Esta,  porém, só é possível, como vimos, desde que se faça cessar, pelo menos provisoriamente, a própria prática [masturbatória] , de modo que a excitação que ela mobiliza seja orientada para vias puramente psíquicas e finalmente abra um caminho até o sistema consciente”.
 Assim Ferenczi inaugura um novo lugar para a posição do analista. Trata-se de dizer que em determinadas situações, o analista   abandona a sua posição passiva, isto é de mero espectador de um inconsciente, para, de outra forma, obrigar que a pulsão se inscreva no registro do psíquico. Aqui, o analista é ativo e da sua atividade depende todo o sucesso de uma análise.  Podemos dizer que, diferente do que previu Freud ao longo de toda a sua primeira tópica, ao analista cabe não ficar restrito ao campo da interpretação para, em ato, promover   o advento do próprio inconsciente.  Vejamos como escreve a esse respeito, o próprio Ferenczi: “Neste caso, fui levado a abandonar o papel passivo que o analista desempenha habitualmente no tratamento, quando se limita a escutar e interpretar as associações do paciente, e ajudei a paciente a ultrapassar os pontos mortos do trabalho analítico intervindo ativamente em seus mecanismos psíquicos”.
 Joel Birman em “Desatar com Atos” consegue ser preciso ao comentar a questão da introdução do ato analítico  a partir da obra de Ferenczi.  Para o autor, Ferenczi rompe com o lugar passivo destinado ao analista até então, para propor uma modalidade de intervenção onde o analista se posiciona além da questão do ‘escutar \falar”.  Nessa perspectiva, para o autor, Ferenczi é pioneiro ao experimentar um lugar de intervenção que se encontra além da prática interpretativa: “(...) a imagem da atividade do psicanalista seria contraposta à imagem instituída de sua passividade no espaço analítico, que constituía, então , a sua representação dominante no processo de análise.  Nesta , a figura do analista escuta de maneira benevolente oi discurso do analisando e somente intervém no processo mediante interpretações.  Porém, na prática da atividade o analista deveria ocupar também uma outra posição, realizando atos face ao analisando, não permanecendo, portanto, no eixo do escutar\falar”.
  Segundo o próprio Ferenczi, é a Freud que se deve a iniciativa da técnica ativa. Isto porque ele teria, no trato de severas histerias de angústia, levado os pacientes a enfrentarem suas situações de medo, indo estes ao encontro de suas próprias angústias.  No bojo desse mecanismo ativo, está o pensamento que entende ser necessário levar , em análise, o deslizamento e por conseguinte o desligamento do afeto de suas cadeias fóbicas para liberá-lo e realocá-lo.  Dessa forma, vemos Ferenczi anunciar que o princípio da técnica ativa é, em última instância, um trabalho que eleva o afeto à condição de agenciador do psiquismo.  Pois é o afeto que deve ser liberado e assim ser responsável pelo reposicionamento das representações.  É o próprio Ferenczi quem diz:: “Espera-se assim que as valências no princípio não saturadas desses afetos que passaram a flutuar livremente atraiam, de forma prioritária, as representações que lhes são qualitativamente adequadas e historicamente correspondentes
O trabalho a que visa Ferenczi, dessa forma é um trabalho que remete ao próprio por em jogo do movimento introjetivo.  Vimos ao longo do capítulo 2, como para Ferenczi o que está em causa na introjeção é justamente a capacidade dos afetos flutuantes de se reportarem as representações e a partir de então realizarem as ligações psíquicas pertinentes.  Assim , barrar o movimento do ato sintomático, é fazer com que o psiquismo suporte um aumento energético afetivo  que será capaz de chamar as representações recalcadas para o plano da própria simbolização.  Dessa forma, para Ferenczi, o analista deve  “barrar as vias inconscientes de escoamento à excitação psíquica para obrigá-la, graças ao ‘aumento de pressão’ da energia assim obtido, a vencer a resistência oposta pela censura e a estabelecer um ‘investimento instável’ por meio dos sistemas psíquicos superiores”.
 Aqui, mais uma vez recorremos ao pensamento de Joel Birman par situar com clareza o movimento a que visa o ato ferencziano:  em última instância, o que está em jogo é a tentativa de levar  a energia pulsional a inscrever-se na ordem do psíquico: “(...) Face a um ato colocado em cena pelo analisando se contrapõe um ato do analista, seja para interditar a descarga do circuito pulsional, seja para provocar o paciente para ordenar o cenário fantasmático e proibir a posteriori a descarga do circuito pulsional.  Após este percurso é possível retomar as associações livres e a elaboração simbólica, pois, agora, a energia pulsional se desloca para o registro da representação”.

 Do ponto de vista metapsicológico, trata-se de afirmar que a intervenção ativa , ao atuar sobre as quantidades de energia não investidas, privilegia uma intervenção notadamente econômica.  Tal fato, em nível do próprio teorizar freudiano acerca de sua segunda tópica, acompanha o privilégio que esta tópica da à questões como a primazia do fator econômico no entendimento do aparelho psíquico e a  formulação da pulsão de morte como uma pulsão que se manifesta a partir da força e insistência da compulsão à repetição.  Em breve estaremos tratando de perto estas questões.

Sándor Ferenczi


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