Em 1919, Ferenczi
escreve o artigo ‘Dificuldades Técnicas de uma Análise de Histeria”. Esse
artigo pode ser considerado o primeiro de uma série de seis escritos destinados
a problematizar o que o próprio Ferenczi designou por “Técnica Ativa”. Constituirá
nossa tarefa ao longo desse capítulo, discutir de maneira bastante minuciosa, o
desenvolvimento relativo ao período da técnica ativa na obra de Ferenczi,
preocupando-nos sempre em estabelecer as relações entre este período e a
concepção que Ferenczi passa a ter do conceito de transferência.
Nossa ideia, é que , a partir da especificidade trazida pela
técnica ativa, a concepção da transferência passa a tomar rumos
completamente inéditos e a oferecer uma compreensão do psicanalisar
completamente diferente do que se realizava até então.
Por hora,
atenhamo-nos às preocupações iniciais de Ferenczi no texto em questão. Trata-se
de um caso onde a análise não vinha conseguindo se desenrolar de maneira
satisfatória. Isso quer dizer que os sintomas da paciente, uma
mulher com uma questão notadamente histérica, não cediam ao tratamento e
tudo o que o analista podia verificar como efeito de análise era a manutenção
de uma relação de transferência onde o amor imperava e gerava uma espécie de
“boa vontade” por parte da paciente em compreender sua situação sintomática e
empreender seu trabalho associativo.
Vimos no capítulo 1, mais especificamente no
que diz respeito ao componente da transferência entendido como “amor
de transferência”, que todo movimento de demanda e estabelecimento de amor
por parte do analisando na relação com o analista é concebido por Freud como sendo
da ordem da resistência. Isto porquê o amor de transferência impede
que emerja, em análise, a enunciação do desejo do sujeito e por conseguinte, a
remissão dos sintomas se vê aprisionada sem poder ser
alcançada. Na situação de amor, a associação livre não se torna tão
livre assim, ela se vê, na verdade, em função de produzir significações
exclusivamente ligadas à problemática do amor.
Assim,
para Ferenczi, toda a dificuldade trazida pelo amor de transferência estava no
fato de que o tratamento se encontrava em estado de estagnação onde o analista
se via na função inócua de tentar levar a paciente a produzir associações que
levassem adiante o tratamento. Nesse sentido , Ferenczi relata que “As
sessões passavam-se em declarações e juras de amor apaixonadas da parte dela e,
da minha, em vãos esforços para fazê-la entender a natureza transferencial dos
seus sentimentos e reconduzí-la aos objetos reais mas inconscientes de seus
afetos.”
A situação
tinha levado Ferenczi a recorrer a uma medida não tão usual : ele
resolveu fixar um prazo para o término do tratamento,
na expectativa de fazer com que , pressionada, durante o período
que lhe restasse de tratamento, a paciente pudesse produzir associações até
então inéditas. Podemos dizer que a atitude de Ferenczi de fixar o
prazo, constituiu em si mesma uma tentativa ativa de intervenção onde o
analista apostava no cerco à resistência apressando o curso das
associações livres de forma a levar a paciente a dizer o que até então não
tinha sido possível dizer. (nota dizendo da experiência de Freud com o homem
dos lobos).
A tentativa,
nesse caso, foi em vão. A paciente não livrou-se de seu amor de
transferência e acabou por deixar o tratamento, ao fim do prazo marcado, sem
ter solucionado suas dificuldades. Tempos depois ela retorna pedindo
a Ferenczi uma nova chance e é de pronto atendida. Nova interrupção
, dessa vez por fatores externos, fazem com que a paciente abandone
o tratamento sem que esse possa ter sido terminado.
Com a insistência de
seus sintomas, uma terceira tentativa com Ferenczi. Dessa vez, ainda
enredada em situações amorosas junto ao analista, a paciente deixa escapar que
tinha compulsivas sensações eróticas genitais com uma certa continuidade. Tal
declaração, possibilitada pela própria condição transferencial, sugere à
Ferenczi que a paciente poderia estar obtendo satisfações masturbatórias
intensas e frequentes. Masturbações essas que, sem que a paciente pudesse
se dar conta, com certeza estariam tomando conta de grande parte dos
investimentos libidinais da paciente.
Ferenczi decide
intervir nesse circuito masturbatório. Ele decide proibir a paciente
de se masturbar alegando que ela obtinha uma satisfação libidinal intensa com
esse hábito e que isso por si só impedia o advento de associações que pudessem
desencadear um andamento satisfatório ao tratamento. Para Ferenczi,
o hábito masturbatório , ou masturbação de forma larvar, era uma maneira de a
paciente descarregar suas moções pulsionais de maneira tal que o material
associativo perdia seu vigor e importância para o tratamento. Era
como se o circuito pulsional dispensasse o acesso à palavra e se satisfizesse
sob a forma de uma permanente descarga que incidisse exclusivamente
sobre o corpo (área genital) da paciente.
Segundo
Ferenczi, dessa maneira a paciente obtinha uma satisfação auto-erótica em
elevado grau de intensidade. O efeito advindo da interdição foi
revolucionário. A paciente que não podia produzir nada senão suas
declarações amorosas ao analista, passou a fantasiar num ritmo frenético, sendo
capaz de restabelecer ligações importantes pertinentes ao seu
universo infantil e com isso passou a ser capaz se reconstituir o que Frenczi
chamou de situações traumáticas de sua vida. A análise , nesse
ponto, tinha seu curso retomado , uma vez que as associações livres voltaram a
circular , efetivamente, de maneira mais livre.
O que se depreende
desta intervenção é que Ferenczi obteve, ao proibir o ato masturbatório, um
aumento da tensão libidinal, que, uma vez impossibilitada de se descarregar
através da motilidade, teve que se oferecer enquanto material psíquico capaz de
ser capturado por novas representações que passaram a investí-lo. Bem
entendido, a proibição ordenada pelo analista teve o surpreendente efeito de
fazer com que a paciente obtivesse recursos para voltar a associar livremente.
O próximo passo foi
proibir a paciente de se masturbar durante sua vida cotidiana. Ela
deveria prestar a atenção em todos os pequenos movimentos de satisfação que
obtinha ao longo de diversas partes de seu corpo. Ferenczi teoriza
em torno da noção de “atos sintomáticos”. Esses atos, já descritos
por Freud como formações do inconsciente em “A Psicopatologia da
Vida Cotidiana”, ganham aqui o caráter de serem atos equivalentes ao que
Frenczi chama de onanismo. Os atos sintomáticos são , nessa
perspectiva, formações do inconsciente que não passam pela via da
palavra. Eles são uma forma infantil (auto-erótica) da pulsão se
organizar de maneira que o resultado seja uma atitude tal qual a masturbação,
onde o prazer fique restrito a uma espécie de satisfação puramente
corporal. Para Ferenczi, os atos sintomáticos representavam pontos
isolados e diversos onde o sujeito adquire uma quantidade de prazer
considerável e que têm por característica o fato de não se articularem com o
resto do circuito libidinal. Atos sintomáticos seriam, bem
entendido, satisfações independentes que impediriam a libido de se fazer
presente no campo pertinente às associações livres. Eis aí a
explicação para a estagnação própria ao tratamento: a paciente em questão não
falava porque apresentava em abundância , a ocorrência de atos sintomáticos
que, por suas vezes, dispendiam uma quantidade muito grande de libido em si
mesmos. Assim, vejamos como Ferenczi teoriza essa questão: “Nesse
caso, a libido estava privada de um modo tão total de toda e qualquer outra
possibilidade de descarga que ela podia aumentar até atingir um verdadeiro
orgasmo ao nível dessas partes do corpo que, por sua natureza, estão longe de
ser zonas erógenas preponderantes”.
O entendimento
de Ferenczi era o de que toda a sexualidade dessa paciente estava
dissipada, isto é, fragmentada, na incidência de todos os atos sintomáticos que
ela era capaz de produzir. A posição de Ferenczi ao
proibir tais atos sintomáticos era a de esperar que as satisfações parciais das
pulsões pudessem ser renunciadas em proveito do advento de uma prática
discursiva acerca desse próprio corpo. A expectativa de Ferenczi era a de que
houvesse um “repatriamento”, isto é, uma realocação da libido que deveria
migrar da condição de ato sintomático para a condição de fala articulada com a
história inconsciente da paciente.
Para Ferenczi,
a partir da experiência com a situação analítica acima relatada, trata-se de
afirmar que fica estabelecida uma nova regra analítica. Trata-se de dizer que
ao analista cabe escutar , quando do estancamento do material analítico, aquilo
que se organiza em termos de satisfação substitutiva da libido ou
satisfação masturbatória. A nova regra, a que prevê que o analista
intervenha sob o próprio ato sintomático, isto é, interfira além do que é dito
pelas associações livres , faz com que o analista pressuponha que há algo do
sujeito que se formula , em análise, além do que é dito pela via da
palavra. Trata-se aqui de intervir no próprio corpo, sob a forma de
proibição daquilo que se verifica como puro escoamento da libido não
ligada. O analista, a partir da nova regra, vai além de sua
posição de espera do material recalcado, para impedir que a libido
descarregue-se sob a forma direta na motilidade. Isto porque para Ferenczi
, “Essas atividades [atos sintomáticos] , que se poderia supor inofensivas,
são , com efeito, suscetíveis de tornar-se o refúgio da libido
despojada pela análise de seus investimentos e, nos casos extremos, podem
substituir toda a vida sexual do sujeito”
Para Ferenczi,
trata-se de ir além do campo da própria associação livre. Onde o
paciente não associa, onde ele goza de satisfação puramente
masturbatória, alí reside uma resistência que não é a mesma resistência
ordenada pelo campo da fala. Trata-se de algo que resiste enquanto pura
repetição da pulsão inarticulada com o campo da representação. Essa ideia,
a de repetição como resistência, desenvolveremos mais adiante ao longo
desas capítulo. Por hora nos interessa afirmar que Ferenczi inaugura
aqui uma nova modalidade de intervenção para o analista. Uma
intervenção que deve pressupor que o analista não deve conceber sua prática
resumida ao campo do discursivo. Não, ao contrário , ele deve se
indagar justamente o porquê do não advento desse próprio discurso e procurar
intervir onde algo se faz enquanto libido não ligada. O analista ,
assim, deverá incluir no campo do analisável aquilo que não se faz enquanto
psíquico para na forma de ato, provocar um refluxo do que é apenas um ato sintomático,
para o campo da fala.
“Esses últimos[
atos sintomáticos] podem ser considerados patológicos e necessitam de uma
elucidação analítica. Esta, porém, só é possível, como
vimos, desde que se faça cessar, pelo menos provisoriamente, a própria prática
[masturbatória] , de modo que a excitação que ela mobiliza seja orientada para
vias puramente psíquicas e finalmente abra um caminho até o sistema consciente”.
Assim Ferenczi
inaugura um novo lugar para a posição do analista. Trata-se de dizer que em
determinadas situações, o analista abandona a sua posição
passiva, isto é de mero espectador de um inconsciente, para, de outra forma,
obrigar que a pulsão se inscreva no registro do psíquico. Aqui, o analista é
ativo e da sua atividade depende todo o sucesso de uma análise. Podemos
dizer que, diferente do que previu Freud ao longo de toda a sua primeira
tópica, ao analista cabe não ficar restrito ao campo da interpretação para, em
ato, promover o advento do próprio inconsciente. Vejamos
como escreve a esse respeito, o próprio Ferenczi: “Neste caso, fui levado a
abandonar o papel passivo que o analista desempenha habitualmente no
tratamento, quando se limita a escutar e interpretar as associações do
paciente, e ajudei a paciente a ultrapassar os pontos mortos do trabalho
analítico intervindo ativamente em seus mecanismos psíquicos”.
Joel Birman em
“Desatar com Atos” consegue ser preciso ao comentar a questão da introdução do
ato analítico a partir da obra de Ferenczi. Para o autor,
Ferenczi rompe com o lugar passivo destinado ao analista até então, para propor
uma modalidade de intervenção onde o analista se posiciona além da questão do
‘escutar \falar”. Nessa perspectiva, para o autor, Ferenczi é
pioneiro ao experimentar um lugar de intervenção que se encontra além da
prática interpretativa: “(...) a imagem da atividade do psicanalista
seria contraposta à imagem instituída de sua passividade no espaço analítico,
que constituía, então , a sua representação dominante no processo de
análise. Nesta , a figura do analista escuta de maneira benevolente oi
discurso do analisando e somente intervém no processo
mediante interpretações. Porém, na prática da atividade o
analista deveria ocupar também uma outra posição, realizando atos face ao
analisando, não permanecendo, portanto, no eixo do escutar\falar”.
Segundo o
próprio Ferenczi, é a Freud que se deve a iniciativa da técnica ativa. Isto porque
ele teria, no trato de severas histerias de angústia, levado os pacientes a
enfrentarem suas situações de medo, indo estes ao encontro de suas próprias
angústias. No bojo desse mecanismo ativo, está o pensamento que
entende ser necessário levar , em análise, o deslizamento e por conseguinte o
desligamento do afeto de suas cadeias fóbicas para liberá-lo e
realocá-lo. Dessa forma, vemos Ferenczi anunciar que o princípio da
técnica ativa é, em última instância, um trabalho que eleva o afeto à condição
de agenciador do psiquismo. Pois é o afeto que deve ser liberado e
assim ser responsável pelo reposicionamento das representações. É o
próprio Ferenczi quem diz:: “Espera-se assim que as valências no princípio
não saturadas desses afetos que passaram a flutuar livremente atraiam, de forma
prioritária, as representações que lhes são qualitativamente adequadas e
historicamente correspondentes”
O trabalho a que visa
Ferenczi, dessa forma é um trabalho que remete ao próprio por em jogo do
movimento introjetivo. Vimos ao longo do capítulo 2, como para
Ferenczi o que está em causa na introjeção é justamente a capacidade dos afetos
flutuantes de se reportarem as representações e a partir de então realizarem as
ligações psíquicas pertinentes. Assim , barrar o movimento do ato
sintomático, é fazer com que o psiquismo suporte um aumento energético
afetivo que será capaz de chamar as representações recalcadas para o
plano da própria simbolização. Dessa forma, para Ferenczi, o
analista deve “barrar as vias inconscientes de escoamento à
excitação psíquica para obrigá-la, graças ao ‘aumento de pressão’ da energia
assim obtido, a vencer a resistência oposta pela censura e a estabelecer um
‘investimento instável’ por meio dos sistemas psíquicos superiores”.
Aqui, mais uma
vez recorremos ao pensamento de Joel Birman par situar com clareza o movimento
a que visa o ato ferencziano: em última instância, o que está em
jogo é a tentativa de levar a energia pulsional a inscrever-se na
ordem do psíquico: “(...) Face a um ato colocado em cena pelo
analisando se contrapõe um ato do analista, seja para interditar a descarga do
circuito pulsional, seja para provocar o paciente para ordenar o cenário
fantasmático e proibir a posteriori a descarga do circuito pulsional. Após
este percurso é possível retomar as associações livres e a elaboração
simbólica, pois, agora, a energia pulsional se desloca para o registro da
representação”.
Do ponto de vista metapsicológico, trata-se de
afirmar que a intervenção ativa , ao atuar sobre as quantidades de energia não
investidas, privilegia uma intervenção notadamente econômica. Tal
fato, em nível do próprio teorizar freudiano acerca de sua segunda tópica,
acompanha o privilégio que esta tópica da à questões como a primazia do fator
econômico no entendimento do aparelho psíquico e a formulação da
pulsão de morte como uma pulsão que se manifesta a partir da força e
insistência da compulsão à repetição. Em breve estaremos tratando de
perto estas questões.
Sándor Ferenczi |
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