domingo, 13 de dezembro de 2015

A TRANSFERÊNCIA NO PERÍODO DA TÉCNICA ATIVA

A Regra Fundamental da Psicanálise:  A Associação Livre  Cap.3, Parte I


           Ao empreender-se um exame da técnica psicanalítica ao longo de toda a primeira tópica na obra de Freud, será possível depreender que toda a concepção do que constituía o psicanalisar girava em função da ideia acerca do que Freud achou por bem denominar por “método de associação livre”.  A associação livre tornou-se, por assim dizer, a “regra fundamental“ da psicanálise, o meio pelo qual seria viável ao analista poder escutar a lógica inconsciente advinda da fala do analisando.
            A associação livre estabeleceu-se enquanto método psicanalítico na medida em que, pouco a pouco, Freud passava a renunciar ao método catártico de Breuer e a sugerir que seus pacientes deviam comunicar seus pensamentos de maneira fluente e sem críticas.  É o próprio Freud que comenta a respeito  quando afirma em 1904, em seu “O método psicanalítico de Freud”, que “Freud encontrou esse substituto[para o método catártico] - um substituto bem satisfatório - nas ‘associações’ de seus pacientes, isto é , nos pensamentos involuntários (no mais das vezes considerados como elementos perturbadores e via de regra postos de lado) que com tanta freqûencia irrompem através da continuidade de uma narrativa consecutiva”.  Para Freud, Bem entendido, o inconsciente poderia ser deduzido e conhecido, através de situações trazidas pelo próprio exercício de fala de cada paciente.  O interesse , assim, é observar o aparecimento de lacunas, falhas e interrupções discursivas que apontariam para uma verdade além da ordenação consciente.
            No bojo desse processo, a teoria do recalque.  As amnésias, os atos falhos e o próprio histórico dos sintomas seriam a prova de que algo foi previamente recalcado , isto é, posto para fora da consciência, e que o próprio movimento desejante do inconsciente seria responsável por esse retorno específico do recalcado.  O material recalcado chegaria à consciência tão logo a força da resistência fosse superada pelo trabalho de investigação analítica: “O fator de resistência tornou-se uma das pedras angulares de sua teoria.  As idéias que são normalmente afastadas por toda espécie de escusas - como as mencionadas acima - são por ele consideradas como derivativos das manifestações psíquicas recalcadas (pensamentos e impulsos), deformadas pela resistência contra sua produção”.
            Nesse pensamento, quanto maior fosse a resistência , maior seria a distorção.  O analista seria uma espécie de investigador e elucidador de um inconsciente que estaria sempre pronto e formalizado através de representações que , uma vez recalcadas, buscariam através dos mecanismos de condensação e deslocamento, se fazerem presentes na consciência.  Caberia ao analista decifrar e deduzir o inconsciente através das pistas deixadas nas lacunas da fala do paciente. Caberia ao analista preencher essas lacunas com intervenções explicativas e elucidativas onde a interpretação passaria a funcionar como o mais poderoso instrumento de trabalho.  Vejamos como Freud define, ele próprio, a função da interpretação junto às associações livres do paciente: “Freud desenvolveu, sobre tal base, uma arte de interpretação cuja tarefa, é, por assim dizer, extrair o metal puro dos pensamentos recalcados do minério das idéias não intencionais.  Esse trabalho de interpretação aplica-se não somente às idéias do paciente como também aos seus sonhos, que desvendam a abordagem mais direta a um conhecimento do inconsciente, às suas ações não intencionais e também às sem objetivo (atos sintomáticos) e aos erros grosseiros que pratica na vida cotidiana (lapsos de linguagem, erros palmares e assim por diante)”. 
            Assim, a tarefa do tratamento analítico é chegar a um desvendamento do inconsciente através da interpretação que deveria funcionar sempre na direção de vencer as resistências presentes na própria fala do paciente.  Tornar o inconsciente consciente, isto é, decifrá-lo, tornaria o neurótico não mais neurótico.
            Quando pronuncia a “Terceira Lição” das “Cinco Lições de Psicanálise”, em 1909, Freud enfatiza ainda mais sua posição por relação ao trabalho de vencimento das resistências insistindo que ao paciente caberia a única e crucial tarefa de dizer tudo que lhe viesse à cabeça.  A associação livre é encarada como uma regra e o cumprimento dela fará com que se tenha garantido o acesso ao inconsciente: “Para evitá-la[a resistência] põe-se previamente o doente a par do que pode ocorrer, pedindo-lhe que renuncie a qualquer crítica; sem nenhuma seleção deverá expor tudo que lhe vier ao pensamento, mesmo que lhe pareça errôneo, despropositado ou absurdo e, especialmente, se lhe for desagradável a vinda dessas idéias à mente.  Pela observância dessa regra garantimo-nos o material que nos conduz ao roteiro do complexo recalcado”.  É justamente o material que parecerá soar como despropositado ou inutilizável que servirá de meio para que o analista desmonte a resistência e faça surgir sentido capaz de tamponar a errância dos sintomas.
            Em 1912, no artigo “a Dinâmica da Transferência”, Freud utiliza-se pela primeira vez da expressão “regra fundamental” para especificar a única tarefa que cabe ao analisando.  Na ocasião, interessado em mostrar como a transferência pode fazer com que o paciente não cumpra à risca essa regra, Freud parece apontar mais uma vez para o caráter inequívoco que tem a associação livre na prática analítica: ela é a rede (de representações) onde os peixes (material inconsciente) devem cair a fim de garantirem o trabalho do pescador(analista).
            A associação livre tem sua eficácia por que serve de campo possível para o inconsciente se fazer em movimento.  Quando escreve o texto “O Recalque”, Freud mostra que  acreditar na associação livre é acreditar que o inconsciente sempre irá se manifestar.  Estabelecer o cumprimento da regra fundamental seria, por assim dizer, estabelecer o próprio movimento do inconsciente em análise.  Pode-se dizer que a associação livre permite dar continuidade ao movimento inconsciente.  Caberá ao analista saber reconhecer as representações apropriadas para uma intervenção e nelas reconhecer, mesmo que distorcidamente, as representações recalcadas: “Ao executarmos a técnica da psicanálise, continuamos exigindo que o paciente produza, de tal forma, derivados do recalcado, que em consequência de sua distância no tempo, ou de sua distorção, eles possam passar pela censura do consciente.  Na realidade, as associações que exigimos que o paciente faça sem sofrer a influência de qualquer ideia intencional consciente ou de qualquer crítica, e a partir das quais reconstituímos uma tradução consciente do representante recalcado - essas associações nada mais são do que derivados remotos e distorcidos desse tipo
            Finalmente, nesse breve estudo sobre a função da associação livre na primeira tópica freudiana, nos cabe apontar para o caráter inequívoco da regra fundamental da psicanálise.  Ela se funda na medida em que se entende que o inconsciente está sempre pronto e acabado , realizando sua função de representar-se na consciência.  Assim, porque há um recalque e um retorno do recalcado, é possível que o analista se coloque no lugar de interpretar os derivados do inconsciente que sempre surgirão como prova de que, efetivamente, o sistema inconsciente se fará sempre presente, espontânea e inexoravelmente na consciência.  Nessa perspectiva, a função do analista é manter-se em suspenso, na espera, aguardando que o material a ser trabalhado faça-se presente e possível de ser traduzido de forma a aliviar os sintomas neuróticos.
            Todo esse saber da primeira tópica é validado a partir da concepção determinista que Freud tem do aparelho psíquico.  Isso implica dizer que todo acontecimento psíquico é determinado por um outro que o motivou.  Na perspectiva do determinismo psíquico, todas as representações não cessam de se reportarem umas às outras e de se sobredeterminarem num processo contínuo e inscrito nas lógicas próprias à representação onde o modelo de inconsciente oferecido por Freud em “O Inconsciente” parece ser o representante maior acerca de sua  concepção  sobre o psiquismo.  O inconsciente, o recalque e o destino das representações,  foram na primeira tópica de Freud, os ícones pelo qual toda ideia de um aparelho psíquico coerente e estruturado pôde estabelecer-se.  Aqui, valemo-nos do pensamento de Joel Birman em “Psicanálise, uma Estilística da Existência”:  ” O que aparece claramente neste modelo teórico é assim a pretensão de fundar uma ciência do determinismo psíquico, cuja base seria o conceito de inconsciente.  Tendo sido considerado o conceito fundamental da psicanálise, a experiência analítica foi encarada como uma prática clínica visando  à revelação do inconsciente: para ultrapassar os seus conflitos psíquicos, o indivíduo deveria dominar as suas representações inconscientes de maneira a torná-las conscientes, isto é , ele deveria reconhecê-las.
            O postulado do determinismo psíquico do inconsciente constitui o arcabouço de todo sistema teórico.  E é pelo reconhecimento desta base que o sujeito poderia conquistar a sua liberdade psíquica, por estratégias acionadas pelo eu e pela consciência para conhecer o inconsciente.  Tornar consciente o inconsciente, tal era o aforisma fundamental de toda construção freudiana inicial.
             Inserida na mesma perspectiva determinista de saber, corolária da regra fundamental, a “atenção flutuante”, seria a posição que Freud entendia que deveria ser ocupada pelo analista em seu processo de deciframento do inconsciente.  A “atenção flutuante” diria respeito a uma situação em que o analista deveria abandonar toda sua escuta crítica consciente e deixar guiar-se por sua lógica inconsciente na tentativa de poder se ver surpreendido por efeitos de escuta que incidissem sobre o inconsciente de seu paciente.  Assim, o analista não deveria julgar criticamente  o que ouve mas deveria se colocar como um órgão receptor capaz de acolher o inconsciente transmissor do paciente.  Dessa maneira, segundo Freud escreve em ”Recomendações aos Médicos que Exercem a Psicanálise”, “o inconsciente do médico é capaz, a partir dos derivados do inconsciente que lhe são comunicados, de reconstruir esse inconsciente que determinou as associações livres do paciente
             Por esse caminho percebe-se claramente que Freud conta com sua hipótese determinista para orientar o próprio lugar do analista.  Ele deve manter-se junto às associações do paciente pois alí reside tudo o que se pode esperar de uma análise, ou seja, tudo que diga respeito às formações do inconsciente.  Assim, “Associação Livre” e “Atenção Flutuante” são posições que fundam o lugar do analista numa certa posição passiva  onde ele fica à espera de um inconsciente que virá, cedo ou tarde, manifestar-se  e possibilitar que o processo analítico desenvolva-se satisfatoriamente.


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