A Regra Fundamental da Psicanálise: A Associação Livre Cap.3, Parte I
Ao empreender-se um exame da técnica
psicanalítica ao longo de toda a primeira tópica na obra de Freud, será
possível depreender que toda a concepção do que constituía o psicanalisar
girava em função da ideia acerca do que Freud achou por bem denominar por “método de associação livre”. A
associação livre tornou-se, por assim dizer, a “regra fundamental“ da
psicanálise, o meio pelo qual seria viável ao analista poder escutar a lógica
inconsciente advinda da fala do analisando.
A associação livre estabeleceu-se
enquanto método psicanalítico na medida em que, pouco a pouco, Freud passava a
renunciar ao método catártico de Breuer e a sugerir que seus pacientes deviam
comunicar seus pensamentos de maneira fluente e sem críticas. É o próprio Freud que comenta a respeito quando afirma em 1904, em seu “O método
psicanalítico de Freud”, que “Freud
encontrou esse substituto[para o método catártico] - um substituto bem
satisfatório - nas ‘associações’ de seus pacientes, isto é , nos pensamentos
involuntários (no mais das vezes considerados como elementos perturbadores e
via de regra postos de lado) que com tanta freqûencia irrompem através da
continuidade de uma narrativa consecutiva”.
Para Freud, Bem entendido, o inconsciente poderia ser deduzido e
conhecido, através de situações trazidas pelo próprio exercício de fala de cada
paciente. O interesse , assim, é
observar o aparecimento de lacunas, falhas e interrupções discursivas que
apontariam para uma verdade além da ordenação consciente.
No bojo desse processo, a teoria do
recalque. As amnésias, os atos falhos e
o próprio histórico dos sintomas seriam a prova de que algo foi previamente
recalcado , isto é, posto para fora da consciência, e que o próprio movimento
desejante do inconsciente seria responsável por esse retorno específico do
recalcado. O material recalcado chegaria
à consciência tão logo a força da resistência fosse superada pelo trabalho de
investigação analítica: “O fator de
resistência tornou-se uma das pedras angulares de sua teoria. As idéias que são normalmente afastadas por
toda espécie de escusas - como as mencionadas acima - são por ele consideradas
como derivativos das manifestações psíquicas recalcadas (pensamentos e
impulsos), deformadas pela resistência contra sua produção”.
Nesse pensamento, quanto maior fosse
a resistência , maior seria a distorção.
O analista seria uma espécie de investigador e elucidador de um
inconsciente que estaria sempre pronto e formalizado através de representações
que , uma vez recalcadas, buscariam através dos mecanismos de condensação e
deslocamento, se fazerem presentes na consciência. Caberia ao analista decifrar e deduzir o
inconsciente através das pistas deixadas nas lacunas da fala do paciente. Caberia
ao analista preencher essas lacunas com intervenções explicativas e
elucidativas onde a interpretação passaria a funcionar como o mais poderoso
instrumento de trabalho. Vejamos como
Freud define, ele próprio, a função da interpretação junto às associações
livres do paciente: “Freud desenvolveu,
sobre tal base, uma arte de interpretação cuja tarefa, é, por assim dizer,
extrair o metal puro dos pensamentos recalcados do minério das idéias não
intencionais. Esse trabalho de
interpretação aplica-se não somente às idéias do paciente como também aos seus
sonhos, que desvendam a abordagem mais direta a um conhecimento do
inconsciente, às suas ações não intencionais e também às sem objetivo (atos
sintomáticos) e aos erros grosseiros que pratica na vida cotidiana (lapsos de
linguagem, erros palmares e assim por diante)”.
Assim, a tarefa do tratamento
analítico é chegar a um desvendamento do inconsciente através da interpretação
que deveria funcionar sempre na direção de vencer as resistências presentes na
própria fala do paciente. Tornar o
inconsciente consciente, isto é, decifrá-lo, tornaria o neurótico não mais
neurótico.
Quando pronuncia a “Terceira Lição”
das “Cinco Lições de Psicanálise”, em 1909, Freud enfatiza ainda mais sua
posição por relação ao trabalho de vencimento das resistências insistindo que
ao paciente caberia a única e crucial tarefa de dizer tudo que lhe viesse à
cabeça. A associação livre é encarada
como uma regra e o cumprimento dela fará com que se tenha garantido o acesso ao
inconsciente: “Para evitá-la[a
resistência] põe-se previamente o doente a par do que pode ocorrer, pedindo-lhe
que renuncie a qualquer crítica; sem nenhuma seleção deverá expor tudo que lhe
vier ao pensamento, mesmo que lhe pareça errôneo, despropositado ou absurdo e, especialmente,
se lhe for desagradável a vinda dessas idéias à mente. Pela observância dessa regra garantimo-nos o
material que nos conduz ao roteiro do complexo recalcado”. É justamente o material que parecerá soar
como despropositado ou inutilizável que servirá de meio para que o analista
desmonte a resistência e faça surgir sentido capaz de tamponar a errância dos
sintomas.
Em 1912, no artigo “a Dinâmica da
Transferência”, Freud utiliza-se pela primeira vez da expressão “regra
fundamental” para especificar a única tarefa que cabe ao analisando. Na ocasião, interessado em mostrar como a
transferência pode fazer com que o paciente não cumpra à risca essa regra,
Freud parece apontar mais uma vez para o caráter inequívoco que tem a
associação livre na prática analítica: ela é a rede (de representações) onde os
peixes (material inconsciente) devem cair a fim de garantirem o trabalho do
pescador(analista).
A associação livre tem sua eficácia
por que serve de campo possível para o inconsciente se fazer em movimento. Quando escreve o texto “O Recalque”, Freud
mostra que acreditar na associação livre
é acreditar que o inconsciente sempre irá se manifestar. Estabelecer o cumprimento da regra
fundamental seria, por assim dizer, estabelecer o próprio movimento do
inconsciente em análise. Pode-se dizer
que a associação livre permite dar continuidade ao movimento inconsciente. Caberá ao analista saber reconhecer as
representações apropriadas para uma intervenção e nelas reconhecer, mesmo que
distorcidamente, as representações recalcadas: “Ao executarmos a técnica da psicanálise, continuamos exigindo que o
paciente produza, de tal forma, derivados do recalcado, que em consequência de
sua distância no tempo, ou de sua distorção, eles possam passar pela censura do consciente. Na realidade, as associações
que exigimos que o paciente faça sem sofrer a influência de qualquer ideia intencional consciente ou de qualquer crítica, e a partir das quais
reconstituímos uma tradução consciente do representante recalcado - essas
associações nada mais são do que derivados remotos e distorcidos desse tipo”
Finalmente, nesse breve estudo sobre
a função da associação livre na primeira tópica freudiana, nos cabe apontar
para o caráter inequívoco da regra fundamental da psicanálise. Ela se funda na medida em que se entende que
o inconsciente está sempre pronto e acabado , realizando sua função de
representar-se na consciência. Assim,
porque há um recalque e um retorno do recalcado, é possível que o analista se
coloque no lugar de interpretar os derivados do inconsciente que sempre
surgirão como prova de que, efetivamente, o sistema inconsciente se fará sempre
presente, espontânea e inexoravelmente na consciência. Nessa perspectiva, a função do analista é
manter-se em suspenso, na espera, aguardando que o material a ser trabalhado
faça-se presente e possível de ser traduzido de forma a aliviar os sintomas
neuróticos.
Todo esse saber da primeira tópica é
validado a partir da concepção determinista que Freud tem do aparelho
psíquico. Isso implica dizer que todo
acontecimento psíquico é determinado por um outro que o motivou. Na perspectiva do determinismo psíquico,
todas as representações não cessam de se reportarem umas às outras e de se
sobredeterminarem num processo contínuo e inscrito nas lógicas próprias à
representação onde o modelo de inconsciente oferecido por Freud em “O
Inconsciente” parece ser o representante maior acerca de sua concepção
sobre o psiquismo. O
inconsciente, o recalque e o destino das representações, foram na primeira tópica de Freud, os ícones
pelo qual toda ideia de um aparelho psíquico coerente e estruturado pôde
estabelecer-se. Aqui, valemo-nos do
pensamento de Joel Birman em “Psicanálise, uma Estilística da Existência”: ” O
que aparece claramente neste modelo teórico é assim a pretensão de fundar uma
ciência do determinismo psíquico, cuja base seria o conceito de
inconsciente. Tendo sido considerado o
conceito fundamental da psicanálise, a experiência analítica foi encarada como
uma prática clínica visando à revelação
do inconsciente: para ultrapassar os seus conflitos psíquicos, o indivíduo
deveria dominar as suas representações inconscientes de maneira a torná-las
conscientes, isto é , ele deveria reconhecê-las.
O postulado do determinismo psíquico do
inconsciente constitui o arcabouço de todo sistema teórico. E é pelo reconhecimento desta base que o
sujeito poderia conquistar a sua liberdade psíquica, por estratégias acionadas
pelo eu e pela consciência para conhecer o inconsciente. Tornar consciente o inconsciente, tal era o
aforisma fundamental de toda construção freudiana inicial.
Inserida na mesma perspectiva determinista de
saber, corolária da regra fundamental, a “atenção flutuante”, seria a posição
que Freud entendia que deveria ser ocupada pelo analista em seu processo de
deciframento do inconsciente. A “atenção
flutuante” diria respeito a uma situação em que o analista deveria abandonar
toda sua escuta crítica consciente e deixar guiar-se por sua lógica
inconsciente na tentativa de poder se ver surpreendido por efeitos de escuta
que incidissem sobre o inconsciente de seu paciente. Assim, o analista não deveria julgar
criticamente o que ouve mas deveria se
colocar como um órgão receptor capaz de acolher o inconsciente transmissor do
paciente. Dessa maneira, segundo Freud
escreve em ”Recomendações aos Médicos que Exercem a Psicanálise”, “o inconsciente do médico é capaz, a partir
dos derivados do inconsciente que lhe são comunicados, de reconstruir esse
inconsciente que determinou as associações livres do paciente”
Por esse caminho percebe-se
claramente que Freud conta com sua hipótese determinista para orientar o
próprio lugar do analista. Ele deve
manter-se junto às associações do paciente pois alí reside tudo o que se pode
esperar de uma análise, ou seja, tudo que diga respeito às formações do
inconsciente. Assim, “Associação Livre”
e “Atenção Flutuante” são posições que fundam o lugar do analista numa certa
posição passiva onde ele fica à espera
de um inconsciente que virá, cedo ou tarde, manifestar-se e possibilitar que o processo analítico
desenvolva-se satisfatoriamente.
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