sexta-feira, 22 de abril de 2016

De que Inconsciente se trata na Psicanálise? – por Carlos Mário Alvarez

Freud descobriu que os sonhos eram uma tentativa de realização de desejos Inconscientes. Fantasias e fragmentos de idéias que só poderiam se manifestar quando a censura fosse repousar junto com o corpo. Ou seja, que os sonhos seriam o momento onde muito daquilo sobre o que não se poderia saber em vigília apareceria de forma distorcida, portanto, transformada, nas cenas pictóricas oníricas.

Lacan, assim como Freud, formulou também várias hipóteses sobre o Inconsciente. Muitas destas hipóteses eram afirmadas na forma de frases ou axiomas contundentes, às vezes enigmáticos, seguindo à própria forma de manifestação do Inconsciente. Numa destas formulações, Lacan disse que “O Desejo (Inconsciente) é sempre Desejo do Outro”. Ou seja, que aquilo que alguém pode formular como Desejo não tem originalidade a partir do próprio indivíduo mas entra em uma cadeia de elementos que seguem, se acoplam, imitam, repetem, formas de desejar que estão em Outro lugar. Mas em que Outro lugar? Na voz tenra materna da mãe, no “não do Pai”, no olhar do amado, no tom de voz da babá, nas ordens da publicidade, nas bobagens ditas pelas “celebridades”…

Enfim, o Inconsciente de que trata a Psicanálise não é facilmente designável, não é apreensível e não representa as vontades manifestas ou ocultas de um ser. Ou seja, trata-se de um dispositivo que transforma afetos e representações (para utilizarmos a linguagem freudiana) em formas muitas vezes esquisitas, não facilmente explicáveis e, em geral, alienadas e alienantes. Não pertence a ninguém mas circula por aí, como poeira no vento.

Por isso, para que uma Psicanálise aconteça, é preciso que ela seja menos uma conversa entre dois para ser um “entra e sai” de idéias que se reorganizarão a partir de escolhas feitas sob novos prismas.

A Psicanálise precisa permitir que as falas se desdobrem, se redobrem e se desobriguem, assim, a significar o que se supõe que elas significam. O inconsciente será melhor tratado quando o analisando perder o fio da meada daquilo que diz (sintoma) e encontre e se afine com a errância daquilo que teme (o horror da castração, da finitude) .
Uma Psicanálise assim, toma o Desejo Inconsciente como condição e não como mal a ser debelado.


Carlos Mario AlvarezPsicanalista, Professor convidado da Sorbonne (Paris 2), Mestre em Teoria Psicanalítica (UFRJ) e Doutor em Letras (Puc-Rio) além de membro fundador da Formação Freudiana (RJ). Atualmente coordena o Projeto Psicanálise Descolada que oferece cursos sobre a obra de Freud, supervisão para Psicanalistas e Workshop.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Fotos do Curso: Psicanálise, Bissexualidade e Androginia


O curso Psicanálise, Bissexualidade e Androginia, foi realizado no dia 30 de Janeiro de 2016. No aprazível Rosita Café Bar,  situado no Shopping Downtown, Barra da Tijuca - Rio de Janeiro. 

Os alunos foram recebidos com um delicioso café da manhã, no decorrer do curso houve espaço para debates e emissão de certificado.


O curso foi realizado com coordenação do Carlos Mario Alvarez
Psicanalista, Professor convidado da Sorbonne (Paris 2), Mestre em Teoria Psicanalítica (UFRJ) e Doutor em Letras (Puc-Rio) além de membro fundador da Formação Freudiana (RJ). Atualmente coordena o Projeto Psicanálise Descolada que oferece cursos sobre a obra de Freud, supervisão para Psicanalistas e Workshop.











O grupo Psicanálise Descolada agradece a presença de todos.

Até o Próximo!



terça-feira, 12 de abril de 2016

Ferenczi: Críticas e Aprendizados com a Técnica Ativa Cap.3, Parte XI

  É preciso dizer que a técnica ativa recebeu críticas. Não apenas de parte da comunidade analítica que não recebeu bem as novidades trazidas por Ferenczi, mas também críticas feitas pelo próprio Ferenczi. As críticas em questão, nós entendemos, devem ser discutidas em suas especificidades uma vez que faz parte do próprio processo de aceitação de ideias ou concepções que elas possam ser devidamente avaliadas.

 Nessa perspectiva, acompanharemos agora o último texto de Ferenczi dedicado à técnica ativa, publicado em 1926 e denominado de “Contra Indicações da Técnica Ativa”.  

  A primeira observação que Ferenczi faz nos é da maior importância. Trata-se de avaliar, ele próprio, as relações e consequências que envolvem as ideias de atividade e transferência. Ferenczi reconhece que durante o período em que esteve trabalhando em torno da técnica ativa, esteve mais preocupado em avaliar os efeitos de seus atos do que propriamente de refletir acerca da transferência na técnica ativa. Assim, sua avaliação crítica vai no sentido de dizer que há um perigo na situação de atividade: ela pode gerar uma oposição entre o ego do paciente e o do analista. Isso significa dizer que seu caráter de frustração pode ser maléfico à tentativa de se estabelecer laços transferenciais entre analista e analisando. Daí a ideia de que a atividade nunca deve incidir no início do tratamento mas sempre numa perspectiva de fim de análise. A atividade, se praticada sem um critério cuidadoso, é um recurso que traz como possibilidade a perturbação da relação transferencial e, por conseguinte arriscada em situações onde a transferência não tenha sido amplamente estabelecida . Entendemos que essa observação crítica sobre a questão da transferência na técnica ativa é por si só parcial e não traduz todo o pensamento acerca da relação ente atividade e transferência. Acreditamos que a função maior dessa posição crítica seja a de alertar os analistas quanto ao perigo do abuso da atividade.

  Falando em abuso, é preciso dizer que uma outra crítica que Ferenczi faz relativa à atividade diz respeito ao perigo de se abusar do poder autoritário trazido pelas intervenções proibitivas e injuntivas. Aqui, situação grave onde Ferenczi chega a reconhecer que foi além do que deveria ter se permitido ao propor certas atividades aos analisandos. A solução, segundo o próprio Ferenczi é repensar a validade e intensidade daquilo que se impõe ao paciente. De qualquer forma, mais uma vez Ferenczi parece estar mais preocupado com o uso que certos analistas podem fazer da autoridade transferencial do que propriamente com a questão da atividade. Nesse sentido, ele alerta o perigo de jovens analistas se empolgarem com a técnica ativa: “Nas mãos de um novato, a atividade poderia facilmente conduzir a um retorno dos procedimentos pré-psicanalíticos da sugestão e das medidas autoritárias”.

  O risco que se corre quando dos abusos da atividade , segundo Ferenczi, pode beirar a violência. Num processo franco de submissão do analisando as ordens do analista, há o perigo de impor-se uma situação sádica capaz de causar verdadeiros danos psíquicos à subjetividade do paciente: “De sorte que acabei por me convencer de que essas mesmas instruções formais representam um perigo; elas levam o médico a impor à força a sua vontade ao paciente numa repetição exageradamente fiel da situação pais-criança ou a se permitir posturas perfeitamente sádicas de professor”.

  Tal fato já tinha sido motivo de preocupação para Ferenczi anteriormente. Em “Psicanálise dos Hábitos Sexuais”, ele já havia se dado conta de que as injunções e proibições traziam em si um caráter de repetição de passagens traumáticas onde as crianças, durante a infância experimentam o poder autoritário de seus educadores. Contudo, para o próprio Ferenczi, trata-se de afirmar que na atividade, por se tratar de uma experiência analítica, mesmo os efeitos mais autoritários da intervenção do analista poderiam servir como material de elaboração para tais situações problemáticas. Bem entendido, trata-se de pensar que o analista procuraria uma vez o material surgindo à tona, reparar o efeito patogênico de uma educação violenta. Vejamos como se manifesta o próprio Ferenczi: “As injunções e interdições formuladas pelo médico repetem, de alguma forma, as ordens autoritárias dadas aos personagens importantes da infância, porém com uma indiferença não desprezível: na infância, tudo concorria para privar a criança do prazer, enquanto que na análise, essa primeira educação excessivamente bem sucedida é substituída por uma outra que deixa ao erotismo a margem que lhe cabe direito”

 Ainda nesse sentido, Ferenczi realiza uma tentativa de atenuar o grau autoritário de certas intervenções. Para ele, as injunções e proibições deveriam ser entendidas como brandas sugestões que teriam como finalidade propor novos parâmetros de experimentação em certas situações. Ele salienta que se está longe de se propor um lugar ditatorial impositivo para o analista. Não, isso seria retrocesso. Tratar-se-ía mais de dar sugestões favoráveis que pudessem encorajar o analisando a ir além de suas inibições. Tal questão é enfatizada numa nota de rodapé inserida no mesmo “Psicanálise dos Hábitos Sexuais” que passamos a transcrever nesse momento:” As expressões ‘injunção’ e ‘interdição’ são bastante ambíguas e não dão uma ideia muito exata da maneira como, em meu entender, essas medidas devem ser utilizadas. Eu teria preferido falar de conselhos negativos e positivos para mostrar que se trata menos de instruções formais e imperativas, como é habitual na educação das crianças do que de modos de comportamento que são suportados pelo paciente, de certa forma a título experimental, de acordo com o médico, ou pelo menos com a firme esperança de que sua utilidade venha a ser finalmente comprovada. Nada está mais distante das intenções do psicanalista do que desempenhar o papel do ditador onipotente ou dar livre curso a uma severidade sádica. agindo assim, ele recairia na antiga psicoterapia autoritária. É raríssimo fazer o prosseguimento do tratamento depender da aceitação dos nossos conselhos”.

  De qualquer forma, essa prática abusiva do poder e a extrema vulnerabilidade em que se encontram os analisandos quando invadidos pelo tom opressor das injunções, há algum tempo já tinham feito o próprio Freud criticar e não mais acompanhar Ferenczi no apoio à atividade. Na verdade, as críticas do próprio Freud foram com certeza o fator mais importante para que Ferenczi fizesse uma auto-reflexão crítica por relação à prática da técnica ativa. Assim, Joel Birman em “Finitude e Interminabilidade do Processo Analítico” mostra como Freud se ressentiu dos efeitos invasivos da técnica ativa: “Vale dizer, quando Ferenczi decide ter uma incidência direta no real da existência de seus analisandos, ao instituir ações para mobilizar a circulação libidinal na análise, Freud não mais o acompanha. Portanto, a crítica freudiana não se centra na pertinência da prática da atividade, mas na pretensão abusiva de invadir a realidade do
analisando para provocar transformações na circulação libidinal e renovar a produção de representações”.

  Assim, a solução que Ferenczi dá a esse fator tão delicado é dizer que não se trata de realizar injunções intransigentes, mas que cabe ao analista lançar mão de uma “flexibilidade elástica”. É preciso que as injunções não tenham um caráter coercitivo, mas que saibam respeitar os limites impostos pela própria transferência: “Somente quando o paciente vê que o médico não considera a observância dessas medidas uma condição sine qua non, portanto, quando não se sente sob a ameaça de uma coerção inexorável, é que ele aceita secundar as ideias do analista”.

 Nessa mesma linha da ‘flexibilidade’, Ferenczi realiza uma severa crítica à atitude, por ele tão usada, de fixar um prazo para o termino do tratamento. Não que isso não tenha funcionado em alguns casos, mas tudo indica que o uso desenfreado dessa prática só poderia apontar para uma falta de crédito por parte do analista no próprio tratamento analítico. Ferenczi não critica aqui senão a atitude compulsiva do analista de querer dominar totalmente as coordenadas de uma prática tão imprevisível como a experiência analítica. É preciso que o analista fique atento para o caráter traumático que podem ter as determinações de prazo para o fim das análises. “Como já dissemos, a fixação de um prazo conheceu brilhantes êxitos em certos casos e em outros o mais lamentável fracasso. Comprovou-se que mesmo o analista experimentado pode ser levado, em sua impaciência, a considerar prematuramente o caso como maduro para o aviso prévio”.

  Se a fixação do prazo para o término das análises consistia em uma arma a ser utilizada contra a resistência, ela podia, por outro lado, Ferenczi o constatou servir à própria resistência. Assim, se o analista fixava um prazo, podia ocorrer que o analisando se agarrasse a essa expectativa de um fim para justamente não dizer o que poderia. Assim, Ferenczi é levado a concluir que o analista deve ter uma dose considerável de paciência e saber esperar pelo advento do material frutífero. Daí, a conclusão de que nem sempre a imposição funciona e de que, mais cedo ou mais tarde, o analisando começaria a dizer o que deveria ser dito, uma vez que a análise não mostraria, de antemão, ter um fim previsível: “(...) a perspectiva de uma análise de certo modo interminável o convencerá mais cedo ou mais tarde, de que a nossa paciência é maior do que a dele, o que o decidirá a abandonar, enfim, suas últimas resistências”.

 Teresa Pinheiro em “Ferenczi do grito à palavra” relata de forma bastante pertinente as dificuldades trazidas pela técnica ativa. A autora realça o caráter traumático que adquire a transferência quando da possibilidade do analisando, ao invés de desfazer suas ligações transferenciais com o analista, passa, de forma contrária, a identificar-se com ele. Tal identificação seria reinstauradora de uma situação passada onde o sujeito teria vivenciado semelhante submissão a uma figura agressora. A visão de Teresa Pinheiro,no que diz respeito a relação entre atividade e transferência nos parece bastante coerente com a teoria do trauma em Ferenczi (nota) mas não deixa de nos parecer bastante pessimista em relação ao próprio entendimento do que foi a técnica ativa. A nosso ver, a autora faz uma leitura crítica à atividade que não leva em conta os aspectos mais favoráveis relativos a essa prática. Em última instância, acreditamos que a técnica ativa foi essencial justamente no que diz respeito à concepção da
transferência a partir do entendimento da segunda tópica freudiana. Assim, acompanhemos o pensamento da autora:

 “Ferenczi deu-se conta de que a técnica ativa não lhe trouxe, por variadas razões, o que ele foi nela procurar. Primeiro, seu caráter autoritário não provocava no paciente sentimentos hostis para com o analista; muito pelo contrário, remetia o paciente à cena traumática, a uma nova submissão ao agressor. E mais, o material pesquisado com este método apareceria de qualquer maneira na análise, mais cedo ou mais tarde, sendo suficiente que o analista soubesse esperar. O emprego da técnica ativa seria, portanto, um sinal de pressa do analista e não um artifício indispensável. Ferenczi acreditava também que a técnica ativa poderia se mostrar útil no fim da análise, permitindo ao paciente resolver sua transferência. Mais aí também a técnica ativa produziu efeito contrário: o paciente não se livrava da transferência. 

  Curiosamente identificava-se com o analista e submetendo-se docilmente ao desprazer que lhe era imposto, só fazia ainda mais aumentar sua ligação transferencial. O conforto, combatido pela técnica ativa, permanecia. Ao invés de surgir a transferência negativa com a qual Ferenczi contava, o que aparecia era a ‘docilidade’ do paciente frente às injunções do analista”.
Após essa observação, caminhemos com o texto ferencziano. Outro ponto a que faz alusão Ferenczi diz respeito às atitudes dos pacientes em relação à uma certa permissividade trazida pela atividade. Segundo ele relata, muitos passariam a interpretar a sessão analítica como sendo um lugar onde tudo lhes seria permitido: gritar, cantar, pular, etc. Para Ferenczi, isso indica que “os pacientes procuraram levar às raias do absurdo a liberdade de ação que lhes era oferecida”. A isso Ferenczi responde que cabe ao analista uma atitude de “Laisser Faire”, isto é de permissividade ótima capaz de deixar que os analisandos dessem expressão às pulsões infantis que outrora foram levados a recalcar. Aqui, fazemos a observação que a questão trazida pelo “Laisser Faire” será por nós tratada no capítulo 4 dessa dissertação, onde veremos que a posição de Ferenczi no que diz respeito ao lugar do analista estará girando em torno de sua concepção da neocatarse.

  Ferenczi insistirá que a atividade não deve fazer com que o analista deixe seu lugar de “observador e conselheiro benevolente”. Isso quer dizer que ao analista não cabe responder positivamente à contra-transferência e que os desejos de ser amado por conta do analisando devem ser frustrados. A análise deve sim, “repetir as reações do paciente à privação em condições mais favoráveis do que aquelas que foram possíveis na infância e corrigir os distúrbios do desenvolvimento cuja reconstituição histórica possa ser feita”.

  Esse “repetir reações” em análise, como não entendê-lo desde a especificidade trazida pelos efeitos da atividade sobre a transferência? Pois é fato que, como já demonstramos, a atividade traz em si um trabalho que incide sobre os afetos capaz de privilegiá-los em sua capacidade de atualizar os conflitos na própria relação transferencial e com isso darem ao paciente aquilo que Ferenczi entendia como sendo o principal fator responsável pela cura analítica: o sentimento de convicção.

  Nessa perspectiva, se acompanhamos bem o sentido do texto ferencziano, depreendemos que a prática da atividade pode ter sido, em algum momento abusiva e chegado mesmo a ferir os limites da transferência. Quanto a isso, pensamos ter satisfatoriamente salientado as
críticas vindas do próprio Ferenczi. No entanto, não podemos deixar de apontar que para Ferenczi, algo de fundamental se depreende da atividade: a análise não pode deixa furtar-se a uma prática onde o privilégio das atenções deve recair sobre a possibilidade da transferência se oferecer como palco para a experimentação das vivências afetivas in vivo, ou seja, causadas e mobilizadas por uma espécie de “aqui e agora”. Não se deve esquecer que Ferenczi luta nesse momento contra uma forte tendência do movimento analítico que procurava fazer da experiência de análise um lugar de transmissão intelectual (mestre/aluno), violência interpretativa(uma prática exclusivamente tradutiva) ou mesmo algo que se fizesse num modelo meramente educativo.

  Longe dessas práticas, a atividade, apesar de suas contra-indicações, ensina a  Ferenczi que a transferência tem uma função fundamental na direção da cura analítica. Ela deve ser tomada em sua dimensão onde se instaura uma relação em que não se fica exclusivamente num polo tutorial (analista/analisando) mas onde se pode formular uma espécie de tríade onde a experimentação afetiva vem funcionar como um terceiro capaz de garantir a experiência de análise como uma experiência fruto de uma relação propriamente dita. Em relação a essa dimensão afetiva da qual depreende todo o seu entendimento da transferência, Ferenczi afirma quanto à sua experiência analítica que “o conhecimento de uma parte da realidade, talvez a mais importante, não pode converter-se numa convicção pela via intelectual mas somente na medida em que ela estiver em conformidade com a vivência afetiva.”.

  Para Ferenczi, portanto, o período de pesquisa relativo à prática da atividade lhe mostra que não pode haver transferência sem afetividade. Da mesma forma, não pode haver cura analítica sem que se possa fazer da transferência o palco capaz de acolher o excesso pulsional que insiste em se fazer presente no psiquismo do sujeito. Assim, podemos afirmar que se Ferenczi chega a recuar em sua atividade na medida em que esta se mostra abusiva, invasiva e agressora em algumas circunstâncias, por outro lado somos levados a concluir que a herança deixada por esse período de pesquisa reside exatamente no fato de que, daqui por diante, Ferenczi será obrigado a pensar sua prática desde os efeitos da própria situação analítica, no que tange às modulações pertinentes à relação transferencial. No próximo capítulo, estaremos vendo os rumos que toma a prática ferencziana depois da técnica ativa. Alí, esperamos mostrar como as dificuldades trazidas pela atividade foram capazes de levar Ferenczi a pensar cada vez mais numa certa metapsicologia do lugar do analista.


Carlos Mario Alvarez, Psicanalista.


terça-feira, 5 de abril de 2016

Transferência e Construção Cap.3, Parte X

    Vimos que Ferenczi provoca as fantasias e atualiza o circuito do desejo através da  transferência - onde o analista, como acompanhamos, assume um papel privilegiado na realização das fantasias do paciente.  No entanto, o trabalho analítico não encontra seu fim antes que se possa, segundo Ferenczi, realizar-se um trabalho de (re)construção das ligações psíquicas.
O que se passa é que tanto o ato do analista quanto a experiência de transferência, servem, na economia do tratamento, para que o analisando possa ter (re)construída a sua história libidinal.
A questão da construção em psicanálise assume um papel fundamental a partir de um certo momento.  Sabemos que Freud, em pelo menos dois de seus importantes casos clínicos publicados, lançou mão de construções que serviram como intervenções capazes de elucidar material analítico até então não conhecido.  Basta que recorramos ao caso do homem dos ratos, para ver que, ali, Freud reconhece toda a gênese de uma neurose obsessiva através da reconstrução da sexualidade infantil do homem dos ratos, onde o lugar que ocupava o pai do paciente em sua economia psíquica, revelava o quanto sua posição  era a de alguém que se encontrava identificado ao desejo paterno.  A propósito da construção, Freud a estabelece a partir de fragmentos ditos em análise que remontariam à infância remota do paciente.  É a partir de uma questão ligada à masturbação e a consequente articulação de uma fantasia de punição que Freud constrói para seu analisando, toda sua história de identificação libidinal.
Com o caso do homem dos lobos, não é diferente.  Freud é levado, a partir de um sonho crucial, a construir com precisão de detalhes toda uma existência de uma cena primária, capaz de ter sido responsável por toda a vida neurótica do paciente.  Novamente aqui, a construção advém da boca do analista a partir de um trabalho que organiza os fragmentos ditos em análise.
Em 1937, portanto em um período consideravelmente tardio, Freud dedica um ensaio para tratar da questão da construção. “Construções em Análise”, um dos seus últimos textos, filho temporão da técnica analítica em Freud, traz posições extremamente fecundas para o entendimento da função da construção em análise.
Aqui, na presente dissertação, procuraremos levantar questões que nos ajudem a cotejar com o trabalho de Ferenczi no decorrer de sua técnica ativa, mais principalmente, no que toca à questão das fantasias provocadas.
O primeiro importante ponto a ser marcado é a própria definição que Freud dá aos objetivos do trabalho analítico.  Vejamos o que ele diz a esse respeito: “o trabalho da análise visa a induzir o paciente a abandonar os recalques (empregando a palavra no sentido mais amplo) próprios a seu primitivo desenvolvimento e a substituí-los por reações de um tipo que corresponda a uma condição psiquicamente madura. Com esse intuito em vista, ele deve ser levado a recordar certas experiências e os impulsos afetivos por elas invocados, as quais presentemente ele esqueceu”.
Para que o objetivo da análise possa ser vencido, ou seja, para que o recalque dê lugar a representações até então mantidas inconscientes, o trabalho de análise deve levar o analisando a poder recordar experiências ligadas à sua vida infantil e integra-las a impulsos afetivos que estejam em consonância com tais lembranças. Isto, como foi transcrito acima, está posto com todas as letras por Freud.  A análise, aproximadamente quarenta anos depois de seu início, continuava a ter, por objetivo último, a rememoração.
 Acontece que, se isso é verdade, por outro lado, uma série de resignificações dos conceitos e o desenvolvimento da teoria freudiana como um todo, não nos deixam pensar que Freud fala, nesse texto em questão, de ‘recalque’, ‘rememoração’, ‘inconsciente’, dentre outros, da mesma forma que os concebia há quarenta, vinte ou dez anos antes.  Certamente que não nos será possível mostrar, na presente dissertação,  todas as nuanças que levaram a reconsiderações tanto dos conceitos quanto da própria prática analítica.  Nos interessará, no entanto, percorrer o conceito de construção, tentando perceber sua função dentro do processo analítico, assim como pensá-lo na perspectiva do texto ferencziano.
De início, dois pontos merecem ser notados no que diz respeito a essa definição transcrita acima acerca dos objetivos de uma análise: o primeiro é que Freud trata aqui o recalcado no que ele designa por “sentido mais amplo”.  Com isso, estamos distante de uma ideia de recalque da primeira tópica que organizava um inconsciente que se constituía como um sistema fechado de representações.  A segunda observação, que vem em função da primeira, diz respeito à importância decisiva que Freud dá aos impulsos afetivos ligados ao recalque.
Nesse sentido, se acompanhamos o texto mais adiante, veremos que Freud se refere o tempo todo com muito interesse ao que chama de produção de “derivados dos impulsos afetivos recalcados”.  Junto dos sonhos e dos atos falhos, interessa ao analista estar atento ao que se verifica produzir enquanto “impulso  afetivo recalcado”.  Nessa direção, Freud chama atenção também para o insistente trabalho da repetição, a qual ele identifica como “repetição dos afetos pertencentes ao material recalcado”.  Fundamental de ser notado, é que essa repetição de afetos se verifica sob a forma de ações que incidem fora e dentro da situação analítica.
Assim, esse importante texto vai nos indicar exatamente qual o lugar da transferência na direção da cura: ela vai poder fazer com que incida na situação analítica, o trabalho da repetição, que, em última instância visa inscrever-se na cadeia de sentidos do sujeito.  Acompanhemos Freud por ele mesmo: “Nossa experiência demonstrou que a relação de transferência que se estabelece com o analista, é especificamente calculada para favorecer o retorno dessas conexões emocionais”.
O ponto em que Freud quer chegar, tomando por referência a função da transferência, é exatamente o de responder a uma questão: qual a tarefa do analista?
Respondendo.  O analista, ele não pode recordar absolutamente nada da história de seu analisando porque ele não a viveu.  Por outro lado, Freud constata que o analisando não pode se recordar de tudo o que lhe seria esperado para o andamento de sua análise.  É nesse ponto mesmo que Freud indica a tarefa do analista: o analista, ali onde o analisando não se lembra, ali onde ele não tem acesso, o analista constrói.  Constrói a partir da transferência, uma vez que ela é o campo onde as repetições incidem exigindo presentificação.
Se, por um lado, o que interessa a Freud, como vimos , é a recordação do paciente acerca de sua história libidinal, por outro mostramos que todo o trabalho sobre construções em análise mostra que isso nem sempre é possível.  Aparentemente teríamos um impasse: como atingir a cura analítica se aquilo que haveria de mais essencial, a saber, que o paciente se recordasse, não pode ser atingido por completo.  A resposta de Freud é: o analista constrói.  A partir disso, uma outra questão: O que  torna válida a construção do analista uma vez que ela parte de um outro que não aquele que enuncia?
A resposta de Freud é aparentemente simples: o que valida a construção é o sentimento de convicção alcançado pela experiência analítica.  Vejamos o que diz o texto: “O caminho que parte da construção do analista deveria terminar na recordação do paciente, mas nem sempre ele conduz tão longe. Com bastante frequência não conseguimos fazer o paciente recordar o que foi recalcado. Em vez disso, se a análise é corretamente efetuada, produzimos nele uma convicção segura da verdade da construção, a qual alcança o mesmo resultado terapêutico”
Com isso, temos que Freud abandona uma expectativa de rememoração, ou pelo menos admite níveis distintos para essa rememoração em um processo de análise.  O mais importante é, pois, a convicção que se torna possível através do curso da análise.  Essa convicção, nós a sabemos, é possibilitada pelo grau de verdade da experiência proporcionado pela atualização dos afetos na transferência.
Se voltarmos nosso interesse novamente a Ferenczi, veremos que ele já em sua técnica ativa (1919-1926) experimentava uma prática que tinha como finalidade, menos uma rememoração inconsciente do que uma criação inconsciente.  Podemos dizer criação porque a tônica esteve sempre na perspectiva de se construir em análise a partir do que a situação de transferência leva a se experimentar.  Ferenczi abandonou, a partir de sua técnica ativa, todo o interesse em privilegiar a rememoração.  Para ele, a atualização, no sentido da incidência da repetição freudiana seria o que daria chances ao processo analítico de promover modificações internas no sujeito.  Para tal, o caminho passava a ser a possibilidade de se obter um grau de convicção capaz de levar o analisando a reconhecer, em seu percurso, as nuanças de sua subjetividade.
Assim, provoca-se onde a princípio só o analista poderia provocar.  Provoca-se porque a transferência terá a chance de catalisar para si, a efervescência de algo que nunca viria à tona porque não teria recursos (fantasias).  A (re)construção funciona no sentido de uma tomada da palavra pelo analisando, que vinda do analista num primeiro momento, se fará articular com os atos falhos , sonhos e reminiscências  do paciente.   A construção de um inconsciente, assinado à dois, leva a crer que, em Ferenczi, ao menos desde a técnica ativa, o inconsciente é uma espécie de transcendência possibilitado pela transferência.



Carlos Mario Alvarez, Psicanalista.