domingo, 22 de novembro de 2015

Transitoriedade e Transferência Cap.2, Parte 5

Transitoriedade e Transferência


No ano de 1901, Freud escreve seu "Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana”38. Esse cuidadoso trabalho ganhava sua importância na medida em que para Freud, tornava-se necessário explorar por todas as vias possíveis o sentido de sua descoberta: o inconsciente. Praticamente na mesma época em que publicava “A Interpretação dos Sonhos", Freud se dava ao trabalho de colher intermináveis relatos de experiências vividas por ele e por seus colaboradores, capaz de elucidar todo o sentido de sua hipótese, a saber, a que tinha no determinismo psíquico (moções inconscientes), a motivação para todos os atos que, até então pareciam não ter qualquer motivação senão a do equívoco por ele próprio.
“Esquecimento de nomes próprios“, “esquecimentos de palavras estrangeiras", “lapsos da fala", “lapsos de leitura", “atos falhos”, “atos sintomáticos" dentre outros, encontravam-se na categoria de serem , segundo Freud, pequenas psicopatologias, pequenos deslizes presentes no cotidiano de cada um, capazes de trazerem em seu bojo um mal estar na medida em que algo da ordem da intenção consciente se via falhado, dando lugar a uma estranheza ocasionada pela emergência de um material substituto.
Aquele que enunciava algo do qual absolutamente não esperava – pensemos numa troca de intenções - encontrava-se em maus lençóis, pois o mal estar era muito mais por algo que deixava-se captar no ar como uma intenção outra do que propriamente pelo falo de se ter equivocado impunemente.
 Nessa medida, a hipótese de Freud é de que a força de sustentação para todos esses atos aparentemente equivocados estaria sendo garantido pelo que fosse da ordem do desejo inconsciente. Os atos falhos seriam, dessa forma, derivados do inconsciente, ou seja, atos que foram deformados devido ao trabalho da censura de maneira a funcionarem como uma formação de compromisso entre o sistema inconsciente e o consciente. Dessa forma, as psicopatologias da vida cotidiana, não são atos desprovidos de intencionalidade ou sentido, mas ao contrário, representam, em um determinado plano, desejos inconscientes que foram inadmissíveis à consciência.
Assim, os atos falhos, os sonhos e os sintomas são todos maneiras pela qual o recalcado atualiza-se na consciência. Logo no primeiro capitulo, dedicado ao “esquecimento de nomes próprios”, Freud opera uma explicação que esclarece o processo pelo qual se dá o esquecimento do nome. Mais que isso , Freud faz alusão à existência de leis que garantem a escolha daquilo que se apresenta como equivoco: "Trata-se dos casos em que o nome não só é esquecido, como também erroneamente lembrado. Em nosso afã de recuperar o nome perdido, outros - nomes substitutos - nos vêm à consciência reconhecemos de imediato que são incorretos, mas eles insistem em retornar e impõem com grande persistência. O processo que deveria levar à reprodução do nome perdido foi, por assim dizer, deslocado, e por isso conduziu a um substituto incorreto. Minha hipótese é que esse deslocamento não esta entregue a uma escolha psíquica arbitrária, mas segue vias previsíveis que obedecem as leis"39.
Bem entendido, as leis a que faz menção Freud, são as leis que regem o sistema primário, a saber, a condensação e o deslocamento, e toda análise que se fizer das chamadas psicopatologias da vida cotidiana, levarão ao elucidamento de uma intenção inconsciente que se faz presente em qualquer situação.
O psiquismo, num franco processo de defesa, estaria sempre produzindo substitutos que dessem conta de, ao menos parcialmente, representar aquilo que se mostra ameaçador ao eu do sujeito. É preciso fazer notar que Freud sempre lança mão da ideia de deslocamento, para mostrar que esse é o mecanismo pelo qual se opera toda a capacidade defensiva do aparelho psíquico. É assim que Freud entende também os processos de esquecimento de certas intenções, que por serem muito ameaçadoras ao sistema consciente, acabam dando lugar ao esquecimento de outras intenções que menos ameaçadoras, ainda assim mantém vínculo com o material inconsciente: “De qualquer modo, depõe em favor da existência e do poder dessa tendência defensiva o fato de podemos atribuir a ela a origem de processos como os de nossos exemplos de esquecimento. Como vimos, muitas coisas são esquecidas por si mesmas; quando isso não é possível, a tendência defensiva desloca seu alvo e produz ao menos o esquecimento de alguma outra coisa, algo menos importante que tenha estabelecido um vínculo associativo com aquilo que é realmente chocante".40
Se para Freud, ao longo de todo o trabalho em questão, trata-se de mostrar como o pensamento corrente consciente é assaltado frequentemente por atos que lhe imprimem uma situação notadamente equivocada, ou seja, denunciar a existência de atos e intenções falhas que trazem em si a realização de desejos inconscientes, para Ferenczi, em “Sintomas Transitórios no Decorrer de uma Psicanálise”41, também o interesse é falar de atos sintomáticos que interrompem a cadeia normal dos pensamentos, mas com notável diferença: Ferenczi dá ênfase aos atos que irrompem na situação de análise e que trazem a mesma sensação de surpresa e a mesma possibilidade de interpretação oferecida pelos atos falhos trabalhados por Freud.
Para Ferenczi, é como se fosse possível identificar os atos sintomáticos da vida cotidiana, dentro da própria situação de análise. “É frequente ver nos pacientes histéricos o trabalho analítico ser bruscamente interrompido pelo surgimento inopinado de um sintoma sensorial ou motor”42. O que se deve fazer notar aqui são principalmente dois aspectos: 1) os sintomas de que fala Ferenczi são sintomas que surgem por ocorrência da própria análise e, portanto são criações do próprio processo analítico. Da mesma forma que o analista os vê sendo criados como efeito da análise, ele os vê sendo desfeitos a partir de intervenções analíticas.  Por terem esse caráter de serem passageiros, isto é, aparecem e desaparecem durante o próprio processo de análise, Ferenczi dá a eles o valor de serem “transitórios”. 2) Os sintomas “transitórios" diferente dos atos falhos, não pertencem exclusivamente ao universo da linguagem verbal significante (chiste, esquecimento e trocas de nomes), mas têm uma incidência que Ferenczi classifica de orgânica, ainda que para Ferenczi, “se tentarmos descobrir sua significação, constataremos que o sintoma orgânico é a expressão simbólica do mundo afetivo ou intelectual inconsciente".43
Renato Mezan, ao comentar a função transferencial dos sintomas “transitórios” chega a realizar uma comparação destes com os atos sintomáticos trabalhados por Freud em “Psicopatologia da Vida Cotidiana" para mostrar como para Ferenczi, os sintomas “transitórios” têm um valor de criação atual provocada e viabilizada pela transferência. Freud, ao contrário, veria nos atos sintomáticos, a existência de uma verdade que remontaria a todo o passado recalcado. Diz Mezan:
“Enquanto Freud via os atos sintomáticos como produções do inconsciente determinadas pela história pregressa do paciente, Ferenczi vai além e se interroga sobre o papel causativo que a própria situação analítica, galvanizada pela transferência, poderia ter sobre tais manifestações”.44
O próprio Ferenczi alerta de que não se trata da mesma questão que trata Freud acerca dos atos sintomáticos. Isto porque Freud é capaz de construir, através da análise desses atos, verdadeiras histórias bem articuladas e complexas capazes de remeterem a vários níveis de significações junto à história do sujeito. Para Ferenczi, diferente, a única significação que estaria em jogo seria a significação transferencial. Os sintomas “transitórios" não remontariam ao passado mas ao presente da sessão, ao atual trazido pelo movimento analítico que trabalha incidindo por sobre a massa de afetos do sujeito.
Nessa perspectiva, escreve Ferenczi:
Essas conversões passageiras também se observam no plano motor, se bem que mais raramente. Não estou pensando aqui nos atos sintomáticos na acepção de Freud em Psicopatologia da Vida Cotidiana' , que são atividades complexas, bem coordenadas, mas nos espasmos musculares isolados, às vezes dolorosos, ou então nas falhas musculares que lembram as paralisias”. 45
Os sintomas transitórios são criações da transferência. Se pegarmos um dos exemplos de Ferenczi ao longo de seu artigo, teremos a chance de perceber claramente que o sintoma se forma a partir de uma resposta que se dá (em forma de sintoma) à uma intervenção do analista. Uma paciente vive em análise uma de suas fantasias recalcadas infantis declarando-se amorosamente ao analista. Situação franca de amor de transferência que naturalmente mobiliza o analista a tentar instaurar associações que não levem à concretização de qualquer ato de amor. A recusa do analista em oferecer-se como objeto de amor faz com que a paciente responda com a formação de um sintoma transitório. Sua língua ganha uma espécie de anestesia e sua próxima declaração é afirmar a seguinte impressão: "É como se minha língua tivesse sido escaldada.”47 Para Ferenczi, o que se deu foi que a partir de uma situação onde a transferência veiculou o surgimento de fantasias infantis eróticas e o analista pôde negar-se a realiza-las, a língua serviu de ponte possível para representar toda a decepção da paciente e vergonha imbuídas de uma intensa carga afetiva que não tinha como ser vivida de outra maneira.
A compreensão de Ferenczi é a de que o sintoma transitório surge para aplacar um certo excesso afetivo que aflorou provocado pela própria vivência proporcionada na atualidade da transferência.  “A escolha da língua como lugar do aparecimento do sintoma também estava aqui sobredeterminado por diversos fatores, cuja análise me deu acesso às camadas profundas dos complexos inconscientes”.47
Num outro exemplo, Ferenczi traz à tona situações de transferência que provocam no paciente o desejo de agredir o analista.  Como isso lhe é inviável, a solução que surge é o advento de um sintoma transitório capaz de simbolizar algo que ele gostaria de realizar. Assim Ferenczi diz que o paciente apresenta sensações de dores em algumas partes de seu corpo, parte essas, onde, na verdade, gostaria de atingir o próprio analista. "Tinha a intenção de me agredir; a sensação de um golpe na cabeça representava o desejo de espancar, uma dor no coração revelava a ideia de apunhalar".48
Com a perspectiva dos sintomas "transitórios”, Ferenczi torna-se paulatinamente um analista que se interessa por aquilo que está além do conteúdo das associações livres. Diferente dos demais analistas de sua época, Ferenczi se interessa pelas formações simbólicas que o corpo expressa no período relativo às sessões de análise. Nesse sentido, podemos dizer que Ferenczi não ficava exclusivamente na expectativa do que deveria vir a ser dito pelo discurso do paciente, mas que entendia como mensagens dirigidas à ele as formações sintomáticas transitórias que se valiam de expressões corporais para se manifestarem. Assim, Ferenczi escutava também as dores de dente de seus pacientes (esperando que trouxessem associações além da queixa real), escutava as dores de cabeça que os acometiam durante as sessões e se interessava com bastante intensidade pelas expressões de cada paciente seu ao longo das sessões. Um exemplo típico disso se encontra testemunhado num artigo minúsculo de Ferenczi dedicado a fazer uma observação sobre a maneira de alguns pacientes deitarem-se no divã. O artigo, denominado "Um Sintoma Transitório: a Posição do Paciente Durante o Tratamento”49 revela que para Ferenczi, a escuta analítica deveria funcionar além dos limites do dito. Transcreveremos o artigo na íntegra: “Em dois casos, pacientes masculinos denunciaram suas fantasias homossexuais passivas da seguinte maneira: durante a sessão, em vez de serem estendidos de costas ou de lado, puseram-se bruscamente de barriga pra baixo”.50
Renato Mezan faz uso da ideia de auto-simbólico para explicar o advento desses sintomas “transitórios". Para o autor, toda a vez que a situação de análise provoca um excesso de excitação, o sujeito se defende auto-simbolicamente, criando sintomas ligados a seu próprio corpo capaz de simbolizarem o conflito vivido em transferência. Ao explicar o advento dos sintomas transitórios ele diz: “O que ocorreu foi, segundo Ferenczi uma simbolização hic e nunc, cujo sentido envolve fantasias inconscientes ativadas pela análise e de um do ou de outro absorvidas pela transferência”.51
Segundo Ferenczi, o surgimento desses sintomas “transitórios" se daria como uma espécie de um último recurso contra certas tomadas de consciência propiciadas pelo trabalho de análise. Quanto mais à análise caminhasse para a elucidação de complexos inconscientes, quanto mais a transferência pudesse atualizar conflitos afetivos até então recalcados, mais se verificaria o surgimento desses sintomas "transitórios” que tinham como característica evitar o advento da palavra “rechaçando a tensão afetiva para a esfera sensorial.”52
O que nos parece fundamental de ser observado é que esses sintomas transitórios apontam para a fina percepção de Ferenczi de que a experiência de transferência é , em última instância , uma experiência capaz de ser criativa. Os sintomas “transitórios” atestam para o potencial da transferência de criar sintomas capazes de se oferecerem como rico material para a intervenção do analista. Para Ferenczi, quando um sintoma “transitório" surgia, era sinal de que a transferência havia tomado as rédeas do processo analítico e de que portanto aquele sintoma ali criado deveria ser uma mensagem endereçada diretamente ao analista, que, com a possibilidade de um ato interpretativo poderia rapidamente reverter o sintoma em construções capazes de funcionarem analiticamente.
Assim, a certeza trazida pelos sintomas “transitórios" é a certeza de que o analista está no caminho certo. Mais que isso, é a certeza de que a análise sendo capaz de criar chances de articulação para a fala do sujeito. Um sintoma “transitório" se faz erguer porque ele é a última tentativa do psiquismo de se defender de algo que não pode ser dito. Tentativa de defesa esse que com certeza fracassará, pois é o sucesso da transferência que está em jogo. Se todo sinto “transitório” é efeito de análise e produzido enquanto mensagem para o analista, isto significa que dependerá do próprio manejo da transferência, fazer com que o que é “transitório” possa dar lugar a algo que tenha efeito interpretativo capaz de trazer introjeções capazes de serem efetivas para o sujeito no sentido de sua cura analítica.

Por fim, vejamos o que conclui o próprio Ferenczi acerca da função os sintomas transitórios: “Das observações de formação de sintomas transitórios aqui agrupadas, proponho-me a extrair a seguinte hipótese: tanto nas grandes neuroses como nessas neuroses em ‘miniatura’, o sintoma só aparece se o psiquismo tiver ameaçado, por uma causa exterior ou interior, pelo perigo do estabelecimento de um vínculo associativo entre os fragmentos dos complexos recalcados e a consciência, ou seja, de uma tomada de consciência que perturbaria o equilíbrio assegurado por um recalcamento anterior.”53


Sándor Ferenczi 


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