segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Transferência como Deslocamento de Afetos Cap.2, Parte 2

Transferência como Deslocamento de Afetos


Ao nos aproximarmos do texto "Transferência e Introjeção" veremos que Ferenczi inicia seus estudos sobre a transferência a partir do estabelecimento do que ele concebe como sendo o mais importante acerca da transferência dentro da obra de Freud. Assim, o que temos é que Ferenczi estabelece como diretrizes fundamentais para se discutir a transferência em psicanálise, duas posições acerca do assunto trabalhadas por Freud ao longo de sua obra. Vale lembrar que estamos em 1909 e que Freud sequer havia escrito seus "Artigos Sobre Técnica.” Nessa perspectiva, Ferenczi dispunha até então para discussão, principalmente, os "Estudos Sobre Histeria", "A Interpretação dos Sonhos”, Psicopatologia da Vida Cotidiana", "O Chiste e Suas Relações com o Inconsciente" e finalmente, "Fragmentos de um Caso de Histeria" (o caso Dora).

As duas posições freudianas acerca da transferência das quais se vale Ferenczi são as seguintes: 1) Uma vez em análise, o neurótico não cessa sua capacidade de produzir sintomas. A análise é capaz de reforçar ainda mais uma especificidade de sintomas (os sintomas de transferência) e por conta disso a transferência fica identificada com a própria constituição de novos sintomas.
 2) A concepção de que as transferências que se produzem em análise são de fato repetições de imagos capazes de reeditarem conflitos entranhados na história libidinal particular de cada sujeito. O que se verifica é a posição que Freud estabelece a partir do caso Dora onde se constata que o analista se presta a substituir, através da presença de sua figura, imagos importantes presentes na história do sujeito.

A partir dessas duas referências ao texto freudiano, Ferenczi parte para começar a tecer considerações capazes de definir o que ele próprio entende por transferência. O primeiro ponto do qual parte é o de afirmar que a transferência constitui-se como mecanismo universal. Isso quer dizer que a transferência não é provocada exclusivamente pela análise ou mesmo que ela seja um acontecimento unicamente próprio aos neuróticos.

"A transferência apresenta-se como um mecanismo psíquico característico da neurose em geral, que se manifesta em todas as circunstâncias da vida e abrange a maior parte das manifestações mórbidas"² . 

Essa definição da transferência como um mecanismo inerente aos movimentos do psiquismo humano e capaz de ser verificado até mesmo nas manifestações mórbidas, mostra que para Ferenczi a discussão da transferência se fará sempre num nível de algo que constitui o próprio psiquismo e que, portanto se verifica em situações que não se reduzem à prática analítica e mesmo a neurose estrito senso. Pensar a transferência como um mecanismo genérico e inerente ao funcionamento do psíquico fez com que Ferenczi, num período mais tardio de sua obra, pudesse se dedicar ao trato de pacientes que não apresentavam como matriz clínica a neurose.
Ferenczi desde cedo postulou a transferência como independente da neurose e pôde se valer disso para o trato do que posteriormente denominou por “pacientes difíceis". Todo o desenvolvimento acerca da transferência e o trato de pacientes que não podiam ser classificados de neuróticos será por nós abordada ao longo dos capítulos três e quatro. Por hora, deixamos indicado o caráter de acontecimento genérico do qual se vale Ferenczi para pensar a transferência. 

Dizer que a transferência é um acontecimento que se verifica até mesmo nos casos mais mórbidos (donde se conclui que se trata de ir além da neurose), não impede a Ferenczi de, junto com Freud, perceber que, na neurose, a transferência mostra-se presente de maneira mais exagerada. Trata-se assim de se postular que os neuróticos sofrem por desperdício. Um desperdício que Ferenczi classificará de desnecessário. Para que se possa entender isso, ele nos convida a pensar naqueles sujeitos que costumam apaixonar-se com frequência e também nos que podem odiar com uma considerável suscetibilidade. A explicação para essa excessiva disponibilidade para investir objetos libidinalmente encontra-se na ideia de que, nessas situações, são transferências que ocorrem, de maneira que, ao operarem, realizam um movimento de "deslocamento da energia afetiva dos complexos de representações inconscientes para as ideias atuais, exagerando sua intensidade afetiva”.³ 

Aqui a ideia trabalhada por Ferenczi é a de que a transferência, em última instância, é o resultado do próprio movimento inconsciente, que, ao tentar realizar-se através da obtenção de representação na consciência, opera o deslocamento de seus afetos de forma a atingir seus objetivos. Dessa forma, transferir é transportar afetos de um determinado grupo de representações inconscientes para um grupo de representações que seja aceito pela consciência. Essa ideia, que será tomada por Ferenczi como a ideia principal acerca do que seja a transferência, já foi por nós trabalhada nessa dissertação através de um subtítulo apresentado no capítulo 1 que indica a transferência "como veículo do desejo inconsciente". Portanto, o que podemos afirmar é que a ideia de que a transferência opera por deslocamento de afetos pertence ao próprio Freud que assim a definiu em um determinado momento de sua obra.
Ao tentar esclarecer um possível mal-entendido entre a utilização do conceito de transferência como identificado ao de deslocamento, Ferenczi lança mão da explicação de que a transferência está contida na concepção mais ampla de deslocamento. Na verdade a única maneira de diferenciá-los com mais precisão é postular que a transferência é um deslocamento que se vale da utilização da própria figura do analista corno referência para o deslocamento. Acompanhemos a tentativa de Ferenczi de diferenciar deslocamento e transferência:

"A transferência é apenas um caso particular da tendência geral dos neuróticos para o deslocamento. Para escapar de certos complexos penosos, portanto recalcados, são impelidos, pelas explicações causais e analogias mais superficiais, a testemunhar sentimentos exagerados (amor, repulsa, atração, ódio) por pessoas e coisas do mundo externo"

Pode-se notar que para Ferenczi, ao situar a transferência como um processo destinado à levar o sujeito a escapar de processos penosos, está-se falando menos de defesa do que de movimento próprio ao sistema inconsciente. É que para ele, a transferência é a maneira da qual o sujeito se vale para poder dar destino à gama de afetos que o acomete. Esses afetos, bem entendido, devem ser concebidos como energia própria ao inconsciente que exigem um destino por parte do sujeito. Esse destino dos afetos, como podemos acompanhar Ferenczi descrever, pertence e depende exclusivamente da capacidade que o sujeito tem para realizar transferências. 

"Se os neuróticos pululam nos movimentos de tendência humanitária ou reformista, entre os propagadores da abstinência (vegetarianos, antialcoólicos, abolicionistas), nas organizações e seitas religiosas, nas conspirações pró ou contra a ordem política, religiosa ou moral, isso se explica pelo deslocamento, nos neuróticos, das tendências egoístas (agressivas e eróticas), recalcadas, censuradas, do inconsciente para um plano onde elas podem ser vividas sem culpa.”

Para enfatizar seu argumento e estabelecer a transferência como um caso particular de deslocamento, onde o que vai interessar, como já dissemos, é o lugar "tomado de empréstimo" pela representação do analista, Ferenczi dirá que "as condições de tratamento psicanalítico são muito propícias ao estabelecimento de tal transferência” porque os afetos recalcados que, através do movimento desejante inconsciente, são levados a se deslocarem em busca de novas representações para investimento, encontrarão com facilidade a representação do analista que se disporá de imediato para acolher os afetos carentes de ancoragem. Essa imagem, que faz do analista um catalisador de afetos, isto é, uma espécie de polo acolhedor para a intensidade desejante de cada sujeito identificará a transferência como um acontecimento capaz de ordenar o curso e vicissitudes que uma análise pode tomar.

Vejamos como Ferenczi introduz, ele próprio, a ideia de que o analista funciona como um catalisador de afetos: “A pessoa do médico atua aí como um catalisador que atrai provisoriamente os afetos liberados pela decomposição; mas cumpre saber que numa análise corretamente conduzida essa combinação mantém-se instável, e uma análise bem administrada deve encaminhar rapidamente o interesse do paciente para as fontes primitivas escondidas, criando uma combinação estável com os complexos até então inconscientes". Portanto a ideia do lugar do analista como catalisador é bem pertinente à concepção da transferência como deslocamento de afetos. A tendência natural de cada sujeito, podemos afirmar com Ferenczi, é a de se deslocar o tempo inteiro. Na verdade, o que Ferenczi faz é levar à sério a postulação freudiana que compreende o sistema inconsciente como o lugar próprio ao movimento desejante e que portanto opera através dos mecanismos de condensação e deslocamento. Conceber o analista como catalisador é dar a chance de se instituir, através da análise, o circuito do desejo do sujeito de maneira que ele possa ter suas ligações libidinais satisfatoriamente alocadas.

A ideia do catalisador, tal como Ferenczi a concebe, faz da representação do analista um polo passageiro, ou se preferirmos, transitório, capaz de atrair para em breve despachar os movimentos afetivos em questão.
 Assim, a transferência não pode ser concebida nem como uma "falsa ligação" ou mesmo como uma resistência. Isto porque a participação da figura do analista é algo previamente esperado na medida em que o sujeito, a partir de seu processo desejante, é capaz de desejar uma representação que se lhe ofereça como possível de ser investida. Para Ferenczi, a transferência desde sempre foi esperada e concebida como algo pertinente à capacidade do sujeito investir seus afetos. A transferência não é resistência simplesmente porque o analista é esperado na cadeia desejante assim como outrora as imagos paternas já o foram. Com o analista como catalisador, não há propriamente uma substituição de imagos passadas, mas a afirmação do desejo inconsciente que escolhe o analista para se presentificar.

Assim, a transferência pode autenticar o lugar do analista com a aparição deste no sonho de um sujeito em análise. Ferenczi foi o primeiro a mostrar que o analista, ao se prestar como resto diurno, não faz nada mais a não ser permitir com que o sujeito ponha em ação seu modelo desejante. Para Ferenczi, o analista como resto diurno, apenas comprova a magnitude e soberania da transferência e com isso possibilita que um sonho seja aproveitável em uma análise. Assim, o analista provavelmente não diria, não sou eu, mas seu pai...", para diferentemente sugerir que "Sim, sou eu, mas também pode ser seu pai, ou alguém diferente...", numa franca afirmação do movimento afetivo que passa a ser positivado como um acontecimento verdadeiro e até mesmo necessário.  Ao afirmar que "O médico é sempre e exclusivamente um desses 'expectros' que fazem ressuscitar no paciente as figuras de sua infância", Ferenczi não faz outra coisa senão testemunhar que o analista serve à cadeia desejante da mesma forma que outras representações outrora já o serviram. Assim para Ferenczi, desde sempre, a experiência analítica encontrou mais sua função na afirmação da vida afetiva do sujeito do que na tentativa desenfreada de se restabelecer a verdade dos investimentos inconscientes. Para Ferenczi, dessa forma, interessa menos o trabalho de vencer resistências, pois não há nada a ser vencido - do que o de estabelecer níveis de vivências afetivas.

Por isso ele cedo pôde afirmar, não sem uma considerável coerência, que “reconhecer a transferência das emoções positivas e negativas é capital na análise.” Nessa perspectiva, o importante é que o sujeito experiencie sua vivencias afetivas, sejam odiosas ou amorosas, da forma mais intensa possível. A transferência se presta assim a funcionar como o testemunho último do que o sujeito deseja e de que seus afetos estão sempre ali presentes, urgindo por novas maneiras de apresentação. Uma leitura cautelosa nos aproximará de um Ferenczi extremamente cuidadoso e à vontade com a teoria freudiana do inconsciente. Pois para ele a transferência põe em curso a própria linguagem do inconsciente na medida em que é próprio desse "deslocamento de afetos", operar de acordo com as regras estabelecidas por Freud em "O Chiste e Sua Relação Com o inconsciente". Trata-se de afirmar que a transferência opera tal qual o inconsciente, que ela se desloca e se institui por sua ligação representacional orientada pela semelhança entre detalhes. São “minúsculos detalhes" capazes de serem captados pelo trabalho do sonho e oferecidos como material próprio para a realização de desejo. Em franca referência à figura de estilo tão difundida posteriormente no meio psicanalítico - a metonímia, Ferenczi faz uso do modelo poético que afirma "a parte pelo todo" para mostrar por onde se sustenta a força e coerência da imposição da transferência. Ele escreve:

"O 'ridículo' aparente de uma transferência estabelecida com base em semelhanças tão ínfimas lembra-me que Freud assinalou como fator deflagrador do prazer numa certa categoria do chiste 'a representação pelo detalhe' (darstellung durch ein kleinstes), ou seja, pelo elemento próprio para sustentar a transferência dos afetos inconscientes".


Sándor Ferenczi



sexta-feira, 16 de outubro de 2015

INTRODUÇÃO À OBRA DE FREUD


CASO CLÍNICO “O HOMEM DOS RATOS” 


 Neste curso será apresentado o problema da neurose obsessiva através do famoso caso clínico de Freud chamado “O Homem dos Ratos”. Serão  abordados os seguintes tópicos: 

1) Modalidades de defesa na Neurose Obsessiva; 2) Destinos de afeto e representações na Neurose Obsessiva; 3) Amor e ódio ao Pai; 4) Formação Reativa; 5) Aspectos de Carácter e Sintomas relativos às fixações da fase anal; 6) Sintomas clássicos da Neurose Obsessiva; 7) Relação entre compulsão e obsessão; 8) Superação de sintomas via trabalho analítico; 9) Neurose Obsessiva em tempos atuais.
09 às 12h



segunda-feira, 12 de outubro de 2015

A TRANSFERÊNCIA NOS PRIMEIROS ESCRITOS DE FERENCZI Cap.2, Parte I

2.1 Ferenczi : Freudiano e Criativo

Em 1909 Ferenczi escreve o artigo “Transferência e lntrojeção”¹ . Esse  é o primeiro artigo psicanalítico de peso escrito por ele e se constitui como um marco inaugural estabelecendo Ferenczi como um colaborador efetivo na construção e edificação da teoria psicanalítica. Por essa ocasião Freud já não mais se encontrava em seu isolamento intelectual e a psicanálise começava a ganhar reconhecimento e respeito tanto na Europa quanto na América do Norte. Assim, o artigo em questão ganhava sua força e entendimento a partir da necessidade que tinham os primeiros analistas junto a Freud de disseminar e elucidar a teoria psicanalítica tanto para aqueles que dela se aproximavam, exercendo-a, quanto para a, opinião intelectual de uma maneira mais generalizada.

Trata de conceitos psicanalíticos, elucida-los a diferenciar a prática analítica das demais práticas psicoterápicas parecia ser a palavra de ordem entre os primeiros autores freudianos. O artigo em questão se apresenta, à princípio, exatamente como uma espécie de elucidador do conceito de transferência, buscando sempre se constituir  numa fiel leitura ao próprio ensinamento freudiano. Veremos mais adiante que Ferenczi é essencialmente freudiano nesse momento e que muito de seu interesse é operacionalizar as ideias já trabalhadas por Freud até então. Contudo, é preciso afirmar, o artigo em questão, apesar de se constituir como uma leitura fiel a uma certa concepção do conceito de transferência em Freud, não se restringe a realizar apenas uma tarefa de catequese dos escritos freudianos. Ferenczi já aponta nesse artigo para a perspectiva de uma leitura da transferência que, sem deixar de ser freudiana, se constitui com uma peculiaridade capaz de orientar a própria prática analítica em uma direção completamente singular. Ao realizar um estudo sobre o conceito de transferência, Ferenczi faz escolhas e recortes na positivação do conceito que são por si só capazes de apontá-lo como um pensador criativo da própria teoria psicanalítica.  Assim, muito do que foi desenvolvido em sua obra , no que tange ao problema da transferência, ganhou lógica e coerência a partir do entendimento desse primeiro artigo.

     Como consequência dessa característica, a saber, a de se constituir  desde sempre como um autor psicanalítico capaz de pensar criticamente a  própria teoria que ajudava a constituir, pode-se destacar aqui o surgimento do próprio conceito  de introjeção que origina-se a partir de uma reflexão  absolutamente singular de Ferenczi acerca da constituição e dinâmica do próprio psiquismo. O conceito de introjeção é uma contribuição original de  Ferenczi à teoria psicanalítica de extrema importância, capaz de orientar todo o pensamento que se faz conduzir na constituição da obra ferencziana. Na verdade, esse conceito, de pronto aceito e utilizado por Freud, tornou-se uma referência obrigatória na obra de importantes autores psicanalíticos e ganhou novas dimensões que, com toda a certeza pode-se afirmar, o distanciaram da proposta inicial de Ferenczi. Retoma-lo aqui, indicando sua especificidade dentro do pensamento ferencziano, constitui uma de nossas tarefas.




Sándor Ferenczi e Sigmund Freud 


domingo, 4 de outubro de 2015

Transferência e sugestão Cap.1, Parte VIII

Transferência e sugestão

Quando em 1904,  escreve o artigo “Sobre a Psicoterapia” 62, destinado a elucidar o valor e o modo de funcionamento da terapia analítica,  Freud aponta para o fato de que já havia abandonado a prática da sugestão hipnótica há pelo menos oito anos.  Sabemos que no início, durante muito tempo , Freud valeu-se do método da sugestão direta e posteriormente da sugestão hipnótica bem como do método catártico de Breuer para realizar o tratamento de pacientes histéricos mas que abandonou todos esses métodos para criar o método analítico propriamente dito.  A psicanálise de Freud , passava , através do método de investigação das associações livres, da análise das resistências e da interpretação dos derivados do inconsciente, a se constituir enquanto uma terapêutica que não se utilizava mais do método sugestivo como meio de ação contra os sintomas neuróticos.
            No artigo em questão , Freud é bem claro ao afirmar o distanciamento entre a prática sugestiva e a psicanálise:  “Há na realidade, a maior antítese possível entre técnica sugestiva e analítica - a mesma antítese que, com relação às belas artes, o grande Leonardo da Vinci resumiu nas fórmulas: per via de porre  e per via de levare63.  Aqui, a comparação feita por da Vinci  é entre o ato da pintura , onde o pintor põe tinta na tela , portanto preenchendo  algo que estava vazio, e o ato da escultura onde o escultor retira da pedra todo o excesso bruto que esconde as formas a serem obtidas pela escultura .  Ora, para Freud, trata-se do mesmo quando se compara sugestão e psicanálise.  A sugestão, na medida em que opera acrescentando idéias, sugerindo situações, atua pela via de porre, ao passo que a análise “não procura acrescentar nem introduzir nada de novo, mas a retirar algo, a fazer aflorar alguma coisa , sendo que para esse fim se preocupa com a gênese dos sintomas mórbidos e o contexto psíquico da idéia patogênica que procura remover64.
            O que se pode compreender a partir dessa posição é que a psicanálise seria um método que não contaria com a sugestão , mas unicamente com a investigação dos sintomas através do trabalho de reconhecimento das resistências em questão.  Podemos mesmo afirmar que para Freud, a necessidade de afirmação e estabelecimento da prática analítica quando de seu surgimento o levaram a tomar posições radicais quando se tratava de comparar sugestão e psicanálise.  O distanciamento parecia ser da ordem de uma oposição onde Freud chegava a propor, de um lado a psicanálise com seu método específico e de outro, todas as outras terapias que não faziam outra coisa senão trabalhar via sugestão.
            No entanto , anos mais tarde, quando escreve a conferência ”Terapia Analítica”65 Freud tem a oportunidade de estabelecer um estudo mais detalhado acerca da sugestão e do método analítico e o que se verifica é que, apesar de manter a distinção existente entre ambos os métodos, ele é levado a admitir o papel que exerce a sugestão dentro do método analítico.  Dessa forma, Freud não aproxima os dois métodos mas é levado a  reconhecer a maneira pela qual a sugestão se apresenta na economia do processo analítico.  Eis o ponto que nos interessa: saber qual a função da sugestão dentro do campo da terapia analítica e por conseguinte, verificar como interagem sugestão e transferência. O texto “terapia analítica” nos servirá de referência para realizarmos nossa reflexão.
            “A sugestão direta é a sugestão dirigida contra a manifestação dos sintomas; é uma luta entre nossa autoridade  e os motivos da doença66.  Freud foi ele próprio um conhecedor dos efeitos de um trabalho orientado sob a égide da sugestão.  Discípulo de Bernheim, que afirmava ser a sugestão o verdadeiro motor de cura no processo de hipnose, Freud passou por várias fases em suas investigações ligadas à sugestão.  Trabalhou com sugestão proibitória, com o próprio método de Breuer e por isso se vê possibilitado a criticar tais métodos: a sugestão proíbe os sintomas de existirem mas não é ”capaz de apreender nada de seu sentido e significado67.
            Para Freud a sugestão nunca pareceu ser um método confiável.  Nem todos os pacientes eram sugestionáveis, tampouco nem todos ficavam efetivamente curados.  Algumas situações embaraçosas fizeram Freud se aperceber de que o efeito promovido pelo método sugestivo residia muito mais na relação de autoridade que se estabelecia entre médico e paciente do que em qualquer outro motivo. Há o relato de um caso onde a paciente ,após ter sido curada, apresentara recaídas tão somente porque suas relações com Freud haviam sido perturbadas.  “Passado isso, querendo ou não , dificilmente se poderia evitar investigar a questão referente à natureza e à origem da autoridade que se tinha no tratamento sugestivo68.(525)
            Pensar que o problema da autoridade sustenta a cura sugestiva é também pensar que é devido à motivação trazida pela relação médico-paciente que se pode falar em cura.  Dessa forma o que anuncia Freud é que “a sugestão pode ter sua origem na transferência69, tendo cabido à psicanálise, já que ela traz um discurso sobre a transferência, a oportunidade de manejar de uma forma totalmente distinta , a dimensão sugestiva presente no processo terapêutico.
            Nessa perspectiva, afirma Freud que  “o tratamento hipnótico procura encobrir e dissimular algo existente na vida mental; o tratamento analítico visa a expor e eliminar algo.  O primeiro age como cosmético, o segundo como cirurgia70.  O tratamento hipnótico, baseado na pura aplicabilidade sugestiva, opera proibindo sintomas, fortalecendo o recalque mas sem no entanto modificar nada pertinente à formação dos sintomas. A psicanálise, simetricamente, se interessará pelos sintomas e tentará trazer à tona a origem infantil dos conflitos, utilizando-se da sugestão  de maneira secundária, com o propósito de intervir quando da discussão e elaboração dos conflitos psíquicos trazidos à tona pela transferência.  Eis portanto a afirmação de que a sugestão opera no tratamento analítico mas de maneira a ser apenas um coadjuvante, uma espécie de auxiliar que age até mesmo à revelia do analista.  Pensar a sugestão nessas condições é dizer que ela é presente na relação analítica justamente por se fazer parte constituinte da própria transferência.
            A sugestão é um componente da transferência, podemos dizer.  Ela está presente na medida em que , aquele que está em transferência, ou seja , aquele que experiência uma relação  que envolve investimentos libidinais, repetição de imagos, situações amorosas com um analista, está sujeito a ser mobilizado, de maneira a se tornar sugestionável, por todas essas nuanças que constituem a relação analítica.  O que vai importar é de como o analista se valerá do componente sugestivo para manejar a própria transferência.  Freud responde: “Na psicanálise, agimos sobre a própria transferência, deslindamos o que nela se opõe ao tratamento, ajustamos o instrumento com o qual desejamos causar nosso impacto. Assim, se nos torna possível auferir uma vantagem inteiramente nova do poder da sugestão; ela passa para nossas mãos71.
            O analista deve manejar a transferência e por conseguinte, deve ter o controle da aplicabilidade da sugestão.  A psicanálise tem que se haver com os efeitos da transferência e se valer dela para ter acesso ao material inconsciente.  Dessa feita, não se sugestiona o paciente a fim de que ele não tenha tal sintoma, mas se investiga analiticamente tal sintoma até que ele se desvende através do preenchimento das lacunas presentes no discurso do paciente.  A transferência, com sua dimensão sugestiva é o que dará condição para que o trabalho de investigação dos sintomas se realize e ao mesmo tempo é o que fará com que o paciente adquira o sentimento de convicção acerca do material elaborado.  Assim, dirá Freud, “É essa última característica [o manejo da transferência] que constitui a diferença fundamental entre terapia analítica e terapia meramente sugestiva, e que livra os resultados da análise da suspeita de serem sucessos devido à sugestão72.
            O argumento forte trazido por Freud é o de que, por oposição à psicanálise, os outros tratamentos terapêuticos deixam intocadas as relações ligadas à transferência, esta ficando assim  inalterada e ignorada ao longo de todo tratamento.  Ao contrário, a psicanálise se interessa pela transferência e suas nuanças, devendo analisá-la por completo, esgotando suas possibilidades de maneira que “se o sucesso então é obtido ou continua, ele não repousa na sugestão, mas sim no fato de , mediante a sugestão, haver-se conseguido superar as resistências internas e de haver-se efetuado uma modificação interna no paciente73. (529)

            Em psicanálise, a sugestão é portanto encarada como um recurso inerente à transferência , cabendo ao analista utilizá-lo de maneira que possa atingir seus objetivos.  A sugestão talvez seja a “faceta” da transferência que mais decida sobre o fator de verdade trazido pelas investigações inerentes ao tratamento analítico.  Pode-se dizer que é ela quem legitima, em última instância, a eficácia de todo efeito interpretativo advindo da análise.  Mas, de qualquer forma, o que se apreende é que, em psicanálise, a  idéia de sugestão só faz sentido se estiver articulada com os conceitos psicanalíticos que decidem sobre a própria articulação da prática analítica, dentre os quais, a transferência se inclui na condição de ser um conceito fundamental74.


SIGMUND FREUD