domingo, 27 de setembro de 2015

Sobre o amor de transferência Cap.1, Parte VII

Sobre o amor de transferência
                                     
            Dentre as vicissitudes que podem ocorrer no desenrolar de uma psicanálise, está a possibilidade do advento do amor.  Assim, o que afirmamos é que o amor constitui ele mesmo uma das “facetas” que compõe o conceito de transferência.  Vimos no início desse capítulo como a experiência de Breuer com Anna O. esteve o tempo todo sendo atravessada pela insígnia do amor e acompanhamos como ali, o amor foi não só o que sustentou o método de Breuer mas como também foi limite para o mesmo Breuer, que, sem dispor de mecanismos teóricos para a compreensão e manejo do amor, acabou por desistir de sua paciente.  Segundo analisou Freud posteriormente, o problema do amor retardou o desenvolvimento da terapia analítica durante seu início.
            Anos mais tarde, precisamente em 1914, Freud decide-se a dedicar um artigo que servirá exclusivamente para articular os problemas trazidos pelo amor e o próprio manejo da transferência nessas situações.  “Observações Sobre o Amor Transferencial”53 constitui-se num belo e importante artigo onde Freud discute abertamente os entraves , dificuldades e peculiaridades trazidos pelo amor em transferência.  Mais que isso, Freud mostra como o amor deve ser compreendido e conduzido nos limites da prática analítica. Passaremos então a discutir questões propostas por esse texto na expectativa de explorarmos mais essa dimensão da transferência.  Nosso interesse será, mais uma vez, o de poder mostrar como a transferência ganha novas articulações e entendimentos à medida que a obra freudiana avança.
            A primeira advertência que Freud faz aos analistas é a de apontar para o fato de que ao analista cabe posicionar-se diante das exigências feitas pelo amor, em transferência, de forma distinta dos leigos que não estariam pensando o problema desde a perspectiva analítica.  O psicanalista tem que dar um direcionamento especial ao amor.  Não cabe a ele estabelecer uma relação amorosa com a paciente e nem tampouco desistir do tratamento (como fizera Breuer) por conta da situação amorosa. Deve , de início, ter bem claro para si de que o amor é um acontecimento fadado a se repetir numa série infindável e que o analista não se presta a ser um objeto especial, único, sob o qual recairia a atenção da paciente.  Encarar as coisas dessa forma, significa entender que a experiência analítica não cria uma situação amorosa devido aos prováveis encantos do analista mas que o amor é um possível destino para a transferência na medida em que esta última, como já vimos, atualiza conflitos que remontam a história libidinal do sujeito.  Assim,  Freud adverte que o analista deve ter bem controlada sua contratransferência e “reconhecer que o enamoramento da paciente é induzido pela situação analítica não devendo ser atribuído aos encantos de sua própria pessoa54.
            O que acontece quando, em análise, um sujeito se apaixona pelo analista?  Se esse amor torna-se de caráter acentuado, o primeiro fato é que o sujeito “perde toda a compreensão do tratamento e todo o interesse nele55, não respondendo por nada senão o amor.  Os sintomas perdem a importância diante da situação instaurada e podem , porventura, por mero efeito de deslizamento de investimento, serem temporariamente extintos.  “Trágica” situação para o analista que esperaria ver o curso do tratamento seguir sem interrupção e que de repente se vê diante de algo que se mostra detentor de uma força capaz de dominar todo o interesse de quem se vê enamorado.  Tal fato aponta para o surgimento de uma situação ilusória onde o amor aparece preenchendo um espaço que, de outra forma , como esperaria o analista, deveria ser ocupado pela análise dos derivados do inconsciente.
            O amor aparece aqui em sua dimensão de resistência.  Dirá mais uma vez Freud, “tudo que interfere com a continuação do tratamento pode constituir expressão  da resistência e dessa feita, “a irrupção de uma apaixonada exigência de amor é, em grande parte , trabalho da resistência56.
            Quando algo do material inconsciente parece querer aflorar, quando o analista se vê , através das associações livres, seguindo o fio da meada, então aí mesmo é que se poderá ter a surpresa de um evento capaz de desviar o curso natural do tratamento.  A resistência é capaz, não de criar o amor, mas de realçá-lo e instigá-lo de maneira  que “agora a resistência está começando  a utilizar seu amor [o da paciente pelo analista], a fim de estorvar a continuação do tratamento, desviar todo o seu interesse do trabalho e colocar o analista em posição canhestra57.
            Nesse ponto é interessante se perguntar qual o lugar que deve ocupar o analista na tentativa de poder agir analiticamente diante do amor que se mostra como resistência.  Com Freud, aprendemos que o amor também deve ser tornado material analítico.  Do mesmo modo que  a resistência o é, na medida em que tem de ser vencida, o amor deve ser tratado de maneira que o analista possa vir a dar-lhe, futuramente, dimensões outras.
            Assim, não cabe ao analista sugerir que a paciente abandone ou reprima seus sentimentos em prol da necessidade de se continuar o tratamento.  Dessa forma, o analista apenas trabalharia obturando algo que deve, de outra forma, vir a ser analisado.  Exigir a sublimação do amor, dirá Freud, só pode ser entendido como uma atitude não analítica, pois dessa maneira, o analista estaria trabalhando a favor do recalque e não de sua elucidação.
             Não caberia, também, ao analista, tomar uma atitude intermediária de maneira a retribuir parcialmente o amor demandado pelo sujeito.  Freud condena aqui, a atitude de tentar, dessa forma,   “orientar o relacionamento para canais mais calmos e elevá-lo a um nível mais alto58.  O tratamento analítico, segundo Freud , exige uma posição sincera do analista , algo concebido como uma postura ética que não deve sustentar nenhuma inverdade no que tange aos sentimentos do próprio analista por relação a seus pacientes.  Dessa forma, não cabe ao analista forjar nenhuma situação para agradar o paciente , do tipo corresponder num certo nível ao enamoramento.  Não, dirá Freud, o analista deve controlar toda e qualquer contratransferência e manter-se neutro na direção do tratamento.  Isto quer dizer que a neutralidade deve funcionar como recurso técnico obrigatório para que o amor seja derrotado enquanto resistência.
            Freud é bem claro quanto à sua posição: o analista não deve responder à demanda de amor feita pelos analisandos.  Não deve pois cair nesse engodo e o melhor a fazer é conduzir o tratamento em “abstinência”.  A regra da abstinência prevê que , em o analista não saciando os desejos postos pelos analisandos, o tratamento poderá dessa forma, contar com a força do investimento , que , em estando presente e urgindo por uma locação, possa dessa forma vir a ter destinos substitutos mais adequados.
            Agindo sobre a regra de abstinência e frustrando a demanda de amor do paciente, o analista estaria evitando assim com que houvessem atuações.  Ou seja, o que se evita é que se concretize por via da ação,(“repetir na vida real”), algo que deve ter, segundo Freud, o destino de ser “lembrado, reproduzido como material psíquico e mantido dentro da esfera dos eventos psíquicos59 .(215) É dessa forma , ou seja, através de um trabalho de elaboração em torno do amor, que a análise terá chances de tornar a vida libidinal do sujeito, não mais patológica mas capaz de organizar-se de forma mais satisfatória.
            Acompanhemos Freud quando ele, com precisão estabelece o lugar do analista no manejo do amor de transferência:
            “É, portanto tão desastroso para a análise que o anseio da paciente por amor seja satisfeito, quanto que seja suprimido.  O caminho que o analista deve seguir não é nenhum destes; é um caminho para o qual não existe modelo na vida real.  Ele tem de tomar cuidado para não afastar-se do amor transferencial, repeli-lo ou torná-lo desagradável para a paciente; mas deve , de modo igualmente resoluto, recusar-lhe qualquer retribuição.  Deve manter um firme domínio do amor transferencial, mas tratá-lo como algo irreal, como uma situação que se deve atravessar no tratamento e remontar suas origens inconscientes e que pode ajudar a trazer tudo  que se acha profundamente oculto na vida erótica da paciente para sua consciência e portanto, para debaixo de seu controle.”60(216)
            O que Freud quer postular é que , mais uma vez, aquilo que é resistência, deve se fazer lembrança.  O analista não deve deixar de provocar, através do manejo da própria força investida no processo amoroso, a emergência do material recalcado.  Se aqui, o amor de transferência aparece na condição de uma repetição, portanto tendo o estatuto de algo que se apresenta enquanto genuíno, pois descende de outras relações amorosas vividas no passado, ele deve, portanto, ser esclarecido analiticamente  de forma que se possa ”desvendar a escolha objetal infantil do paciente e as fantasias tecidas ao redor dela61.
            Concluindo, podemos constatar que para Freud, o amor, como já vimos anteriormente, é sempre uma questão de  escolha libidinal baseada em “clichês estereotipados” que marcaram , desde um passado remoto, a forma de o sujeito investir seus objetos.  Trata-se de afirmar em última instância, que, a questão do amor, seja ele transferencial ou não, remete sempre a um entendimento desse amor como fazendo parte do movimento de repetição no qual o sujeito se vê inserido.  O analista sob o qua recaem investimentos amorosos, é portanto, tão somente mais um objeto que serviu ao circuito libidinal do sujeito  em questão.  Um objeto, não obstante, privilegiado, pois a ele cabe , dessa vez, renunciar ao pedido de amor e instaurar o processo analítico.
            A transferência , em sua dimensão de “amor de transferência”, faz confirmar mais uma vez que , para Freud, a transferência, apesar de ser o caminho sob o qual se dará a cura, é também, antes de tudo, o lugar onde se faz representar a resistência.  Mais uma vez vemos Freud utilizar-se da dificuldade para torná-la a solução.  Aqui também, o amor de transferência deve ser reconhecido como forte obstáculo ao tratamento, mas ao mesmo tempo, a proposta de Freud  é que se o analista souber manejá-lo, e ele o deve saber, encontrar-se-á então diante da possibilidade de ter o material inconsciente disponível para o desenrolar do processo analítico.

           

SIGMUND FREUD

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