domingo, 20 de setembro de 2015

Transferência e repetição Cap.1, Parte VI

            Transferência e repetição

Buscar a rememoração do material recalcado através do trabalho de superação das resistências.  É assim que Freud, em 1914,  define a tarefa analítica a ser empreendida.  A análise deve levar o sujeito a tornar seu inconsciente consciente através do preenchimento das lacunas que residem em seu discurso.
            No entanto, uma novidade é introduzida por Freud a partir do texto “Recordar , Repetir e Elaborar”45.  Trata-se de afirmar que há situações em que o paciente não recorda o material buscado mas , diferente, ele o atua, isto é, expressa-o, de forma que  a reprodução do material em questão se dá através de um processo de repetição.  Essa repetição se fará presente através da própria relação transferencial que, atualizará conflitos passados de forma a possibilitar que eles sejam vividos no presente, como novidades.  Assim, o paciente será incapaz de se lembrar de uma determinada situação, mas não deixará de repeti-la em análise.
            Quanto a isso, exemplifica Freud: “o paciente não diz que recorda que costumava ser desafiador e crítico em relação à autoridade dos pais, em vez disso comporta-se dessa maneira com o médico”.46
            Trata-se aqui da introdução do  conceito de “compulsão à repetição”.  Esse conceito, que como teremos oportunidade de nos aprofundar posteriormente, ganhará novos coloridos a partir da segunda tópica freudiana, nesse momento denuncia o fato de que, muitas vezes, a maneira que  o neurótico tem de se lembrar de determinados complexos representacionais, é, justamente, repetindo-os.
            A grande questão que Freud coloca, e que nos interessará de perto, é a de saber como se relacionam os conceitos de compulsão à repetição, transferência e resistência.  Ele mesmo responde que “a transferência é, ela própria, apenas um fragmento da repetição e que a repetição é uma transferência do passado esquecido, não apenas para o médico, mas também para todos os outros aspectos da situação atual47.
            A ideia de compulsão à repetição, portanto, nos auxilia a compreender o porque da importância capital da “relação transferencial” para a economia do tratamento.  O que acontece é que relação analista-analisando submete-se ao movimento trazido pela repetição na medida em que oferece condições para que as escolhas e conflitos libidinais do sujeito sejam revividas em termos atuais.  Assim, o material que disporá o analista para a elucidação do inconsciente não será da ordem do lembrado mas sim do repetido, que é dado desde sempre pelas nuanças trazidas pela própria relação transferencial.
            Quanto à resistência, é fácil perceber que ela é proporcional à quantidade de material repetido.  Quanto mais a repetição substitui o recordar, mais a resistência se mostra presente.  Pois, afinal de contas, a resistência é resistência a que se tenha lembrança do material inconsciente .  Ora, se a repetição se constitui enquanto alternativa à recordação, então ela só pode ser concebida por Freud enquanto resistência48.   Caberá ao analista, vencer essa nova resistência, transformando o material repetido em recordação passada.  Vejamos como isso se dá.
            Freud enfatiza que tudo o que o paciente repete são seus sintomas, suas inibições e conflitos.  Acontece que essa repetição traz em si um caráter de atualidade, algo que se apresenta como real e contemporâneo.   O analista deve encarar essa produção como “uma força atual” que merece ser analisada como qualquer lembrança e “enquanto o paciente a experimenta como algo real e contemporâneo, temos de fazer sobre ele nosso trabalho terapêutico, que consiste em grande parte, em remontá-lo ao passado49.  Dessa forma, Freud não vê nos fragmentos de repetição nada que deva ser  tido como “um fato novo”, mas apenas chama a atenção para a importância de a análise levar em conta o material produzido na atualidade.  O que se vê mudado é o manejo da técnica, que, ao nosso ver tem seu alcance aumentado , na medida em que o atual também se torna material analisável. 
            Para que a repetição seja controlada, ou em outras palavras, para que a resistência seja transformada em lembrança, Freud dirá que o analista deverá utilizar-se de táticas.  Cabe ao analista saber manter na esfera psíquica todo o material suscitado em análise.  Freud prevê dessa forma que o analista deva travar um constante esforço para que  o paciente repita o mínimo possível.
             “Para ele [analista], recordar à maneira antiga - reprodução no campo psíquico- é o objetivo a que adere, ainda que saiba  que tal objetivo não possa ser atingido na mesma técnica.  Ele está preparado para uma luta perpétua com o paciente, para manter na esfera psíquica todos os impulsos que esse último gostaria  de dirigir para a esfera motora; e comemora como um triunfo para o tratamento o fato de poder ocasionar que algo que o paciente deseja descarregar em ação seja utilizado através do trabalho de recordar50(200)
            A repetição portatanto deve ser controlada e a transferência não deve se prestar exclusivamente a alimentar a repetição.  Freud chega-se a utilizar da expressão “rédeas da transferência” ao fazer alusão a um caso onde foi mal sucedido por não ter sabido , a tempo, alertar a paciente de que ela  acabaria deixando o tratamento da mesma forma que deixara outras relações libidinais.  Faltou portanto controlar, através de uma interpretação que incidisse sobre a transferência, o material que se apresentava como repetição.
            É preciso tornar a repetição inoperante e para tal ela tem que ter seu espaço de incidência reconhecido e controlado pelo que Freud chama de “manejo da transferência”.  Assim é preciso dar chances para que a repetição se apresente e desenvolva-se, abrindo caminho para a constatação e revivescência dos sintomas. Isso tudo desde que a transferência possa funcionar como um “playground”,  onde o material repetido possa ser apropriadamente referenciado e analisado.
            Eis o momento em que para Freud a transferência apresenta sua dimensão criativa.  Funcionando como uma espécie de campo possível para a selvagem repetição , a transferência “faz surgir uma região intermediária entre a doença e a vida real, através da qual  a transição de uma para a outra é efetuada. A nova condição assumiu todas as características da doença, mas representa uma doença artificial, que é, em todos os pontos, acessível à nossa intervenção51.
            Eis o momento em que Freud faz surgir o conceito de “neurose de transferência”.  É portanto a partir da incidência da repetição e da necessidade de se tê-la controlada, que a transferência serve como palco de experimentação para o surgimento do antigo transformado em novo.  A neurose de transferência é uma nova neurose, seus sintomas vestem as roupagens de conflitos atualizados pela transferência e seu maior triunfo é que seus sintomas, por serem artificialmente criados, já estarão sob o controle do próprio analista que deverá saber, em prol da cura, manejar de forma satisfatória o material criado pela própria análise.
            Assim, conclui Freud:
            “A partir das reações repetitivas exibidas na transferência, somos levados ao longo dos caminhos familiares até o despertar  das lembranças, que aparecem sem dificuldade, por assim dizer, após a  resistência ter sido superada.”52(201)

Sigmund Freud


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