Transferência
e repetição
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a rememoração do material recalcado através do trabalho de superação das
resistências. É assim que Freud, em
1914, define a tarefa analítica a ser
empreendida. A análise deve levar o
sujeito a tornar seu inconsciente consciente através do preenchimento das
lacunas que residem em seu discurso.
No entanto, uma novidade é
introduzida por Freud a partir do texto “Recordar , Repetir e Elaborar”45. Trata-se de afirmar que há situações em que o
paciente não recorda o material buscado mas , diferente, ele o atua, isto é,
expressa-o, de forma que a reprodução do
material em questão se dá através de um processo de repetição. Essa repetição se fará presente através da
própria relação transferencial que, atualizará conflitos passados de forma a
possibilitar que eles sejam vividos no presente, como novidades. Assim, o paciente será incapaz de se lembrar
de uma determinada situação, mas não deixará de repeti-la em análise.
Quanto a isso, exemplifica Freud: “o paciente não diz que recorda que costumava
ser desafiador e crítico em relação à autoridade dos pais, em vez disso
comporta-se dessa maneira com o médico”.46
Trata-se aqui da introdução do conceito de “compulsão à repetição”. Esse conceito, que como teremos oportunidade
de nos aprofundar posteriormente, ganhará novos coloridos a partir da segunda
tópica freudiana, nesse momento denuncia o fato de que, muitas vezes, a maneira
que o neurótico tem de se lembrar de
determinados complexos representacionais, é, justamente, repetindo-os.
A grande questão que Freud coloca, e
que nos interessará de perto, é a de saber como se relacionam os conceitos de
compulsão à repetição, transferência e resistência. Ele mesmo responde que “a transferência é, ela própria, apenas um fragmento da repetição e que
a repetição é uma transferência do passado esquecido, não apenas para o médico,
mas também para todos os outros aspectos da situação atual”47.
A ideia de compulsão à repetição,
portanto, nos auxilia a compreender o porque da importância capital da “relação
transferencial” para a economia do tratamento.
O que acontece é que relação analista-analisando submete-se ao movimento
trazido pela repetição na medida em que oferece condições para que as escolhas
e conflitos libidinais do sujeito sejam revividas em termos atuais. Assim, o material que disporá o analista para
a elucidação do inconsciente não será da ordem do lembrado mas sim do repetido,
que é dado desde sempre pelas nuanças trazidas pela própria relação
transferencial.
Quanto à resistência, é fácil
perceber que ela é proporcional à quantidade de material repetido. Quanto mais a repetição substitui o recordar,
mais a resistência se mostra presente.
Pois, afinal de contas, a resistência é resistência a que se tenha
lembrança do material inconsciente .
Ora, se a repetição se constitui enquanto alternativa à recordação,
então ela só pode ser concebida por Freud enquanto resistência48. Caberá ao analista, vencer essa nova
resistência, transformando o material repetido em recordação passada. Vejamos como isso se dá.
Freud enfatiza que tudo o que o
paciente repete são seus sintomas, suas inibições e conflitos. Acontece que essa repetição traz em si um
caráter de atualidade, algo que se apresenta como real e contemporâneo. O analista deve encarar essa produção como
“uma força atual” que merece ser analisada como qualquer lembrança e “enquanto o paciente a experimenta como algo
real e contemporâneo, temos de fazer sobre ele nosso trabalho terapêutico, que
consiste em grande parte, em remontá-lo ao passado”49. Dessa forma, Freud não vê nos fragmentos de
repetição nada que deva ser tido como
“um fato novo”, mas apenas chama a atenção para a importância de a análise
levar em conta o material produzido na atualidade. O que se vê mudado é o manejo da técnica,
que, ao nosso ver tem seu alcance aumentado , na medida em que o atual também
se torna material analisável.
Para que a repetição seja
controlada, ou em outras palavras, para que a resistência seja transformada em
lembrança, Freud dirá que o analista deverá utilizar-se de táticas. Cabe ao analista saber manter na esfera psíquica
todo o material suscitado em análise.
Freud prevê dessa forma que o analista deva travar um constante esforço
para que o paciente repita o mínimo possível.
“Para
ele [analista], recordar à maneira antiga - reprodução no campo psíquico- é o
objetivo a que adere, ainda que saiba
que tal objetivo não possa ser atingido na mesma técnica. Ele está preparado para uma luta perpétua com
o paciente, para manter na esfera psíquica todos os impulsos que esse último
gostaria de dirigir para a esfera
motora; e comemora como um triunfo para o tratamento o fato de poder ocasionar
que algo que o paciente deseja descarregar em ação seja utilizado através do
trabalho de recordar”50(200)
A repetição portatanto deve ser
controlada e a transferência não deve se prestar exclusivamente a alimentar a
repetição. Freud chega-se a utilizar da
expressão “rédeas da transferência” ao fazer alusão a um caso onde foi mal
sucedido por não ter sabido , a tempo, alertar a paciente de que ela acabaria deixando o tratamento da mesma forma
que deixara outras relações libidinais.
Faltou portanto controlar, através de uma interpretação que incidisse
sobre a transferência, o material que se apresentava como repetição.
É preciso tornar a repetição
inoperante e para tal ela tem que ter seu espaço de incidência reconhecido e
controlado pelo que Freud chama de “manejo da transferência”. Assim é preciso dar chances para que a
repetição se apresente e desenvolva-se, abrindo caminho para a constatação e
revivescência dos sintomas. Isso tudo desde que a transferência possa funcionar
como um “playground”, onde o material
repetido possa ser apropriadamente referenciado e analisado.
Eis o momento em que para Freud a
transferência apresenta sua dimensão criativa.
Funcionando como uma espécie de campo possível para a selvagem repetição
, a transferência “faz surgir uma região
intermediária entre a doença e a vida real, através da qual a transição de uma para a outra é efetuada. A
nova condição assumiu todas as características da doença, mas representa uma
doença artificial, que é, em todos os pontos, acessível à nossa intervenção”51.
Eis o momento em que Freud faz
surgir o conceito de “neurose de transferência”. É portanto a partir da incidência da
repetição e da necessidade de se tê-la controlada, que a transferência serve
como palco de experimentação para o surgimento do antigo transformado em novo. A neurose de transferência é uma nova
neurose, seus sintomas vestem as roupagens de conflitos atualizados pela
transferência e seu maior triunfo é que seus sintomas, por serem
artificialmente criados, já estarão sob o controle do próprio analista que
deverá saber, em prol da cura, manejar de forma satisfatória o material criado
pela própria análise.
Assim, conclui Freud:
“A
partir das reações repetitivas exibidas na transferência, somos levados ao
longo dos caminhos familiares até o despertar
das lembranças, que aparecem sem dificuldade, por assim dizer, após a resistência ter sido superada.”52(201)
Sigmund Freud |
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