Considerações sobre a “relação
transferencial”
Se preferimos dizer que o conceito
de transferência não sofreu um desenvolvimento linear, mas que tornou-se cada
vez mais complexo, possuindo diversas “facetas”, adquirindo diversas significações, é porque
entendemos a transferência, menos como
um conceito delimitado, do que algo que
ganha função de acordo com as diversas problemáticas em questão. Dessa forma, da mesma maneira que Freud
cunha a expressão “manejo da transferência”
para indicar uma posição clínica que responde, em última instância, a
uma direção de cura, acreditamos que o próprio conceito de transferência,
prestou-se a ser manejado diante dos impasses que teoria e clínica impunham a
Freud.
Nessa perspectiva, se tomarmos o
caso Dora, veremos que a transferência ganha ali um estatuto até então
inédito. Em poucas palavras, podemos
dizer que ela deixa de ser exclusivamente uma resistência indesejável, para
tornar-se uma espécie de condição “sine
qua non” para o desenvolvimento da análise.
Vejamos como isso se constitui.
Em Dora, Freud já trabalhava com o
método de associação livre e já tinha escrito sua “ A Interpretação dos
sonhos”. Isso quer dizer que ele já
tinha a clareza das relações dinâmicas, tópicas e econômicas que envolviam a
formação dos sintomas histéricos . Toda
a primeira parte do caso Dora é dedicada a demonstrar a metapsicologia de todos
os sintomas que a acometeram antes e
durante sua breve análise com Freud.
Apenas como indicação, lembramos que as noções de “deslocamento de
afetos”, “condensação”, “inversão de afetos”, “identificação”, “submissão
somática”, “formação reativa” e “sobredeterminação” estavam presentes no relato
do caso e mostravam toda a compreensão que Freud tinha da histeria a partir de
sua primeira tópica.
Da mesma forma que Freud dispunha de
um aparato teórico considerável para compreender psicanaliticamente a metapsicologia das formações neuróticas em
Dora, ele também pôde avançar em sua concepção sob a transferência.
Por ocasião da interrupção do
tratamento de Dora, Freud se coloca pela primeira vez a questão da
possibilidade dele ter evitado tal acontecimento através de uma intervenção
advinda de uma posição investida transferencialmente. Ele se interroga, se teria cabido ao
analista, oferecer-se como substituto afetivo para a procura amorosa de
Dora. A resposta, em forma de negativa,
mostra que “deve haver limites para o
emprego da influência psicológica...” 34,
e que não cabe ao analista se fazer oferecer como objeto de amor. (Sobre o amor
de transferência, estudaremos mais adiante, ainda neste capítulo).
No entanto, a resposta vem no
posfácio do caso. Ao analista não cabe
se fazer como objeto de amor transferencial, mas sim analisar a fundo tudo o que diz respeito às relações entre analisando e analista.
É que para Freud , uma nova concepção
da dinâmica do processo analítico se fará articular. O processo de análise, depois de Dora, não
deve mais ser concebido exclusivamente como uma exploração analítica de
sintomas. Freud será enfático ao
pronunciar que não basta que opere o trabalho de interpretação para se obter a
remissão eficaz dos sintomas. Não, dirá ele, é preciso que se desfaçam as
relações entre paciente e analista para que se verifique a cura propriamente
dita. Com isso, a figura do analista
passa a ganhar um papel de destaque na formulação da economia do
tratamento. O sucesso terapêutico,
podemos acompanhar com Freud, dependerá exclusivamente da análise das
transferências.
Com “transferências” o que quer
exatamente dizer Freud? Ora, a
psicanálise, ao estabelecer seu setting, ao sugerir que o paciente associe
livremente, e ao realizar intervenções interpretativas, estabelece condições para
que os sintomas neuróticos acabem por ser suprimidos. No entanto, o fato de os sintomas sofrerem
uma espécie de estancamento, não significa exatamente que a neurose tenha
perdido seu poder de exigência. O que se
verifica é que a neurose continua fértil e o que se sucederá é que uma nova
classe de formações neuróticas se fará apresentar ao longo do tratamento. Essas novas formações neuróticas,
tomarão a figura do analista como ponto
privilegiado para o estabelecimento de novos conflitos e funcionará ela mesma
como uma nova classe de sintomas.
“Que
são transferências? São as novas edições
ou fac-símiles, dos impulsos e fantasias que são criados e se tornam
conscientes durante o andamento da
análise; possuem, entretanto, esta particularidade, que é característica de sua
espécie: substituem uma figura anterior pela figura do médico”35(113)
Nessa perspectiva, o tratamento
analítico passará a produzir transferências que nada mais serão do que a
formalização de conflitos e situações que, através de um processo que podemos
chamar de “substituição de imagos”, trarão para primeiro pleno, as relações
afetivas que envolvem analista e analisando.
O que se substitui é o endereçamento.
Ao invés de se reproduzir lembranças do passado, que certamente
envolveriam imagos maternas, paternas, fraternas, etc, o analisando passa a
transferir para a figura do analista, grande parte de seus interesses
libidinais. Dessa forma, o que faz o
analista, é prestar-se a ser alvo de uma espécie de atualização de conflitos
que tem origens passadas na história do
sujeito.
Aqui, a transferência é algo que se
verifica como inevitável assim como a neurose também o é. Caberá ao analista saber operacionalizar a
transferência de maneira que ela possa servir para inferir material até então
não apresentado em análise. Diferente de
quando era concebida exclusivamente como uma “falsa-ligação”, nesse momento a
transferência não é mais uma espécie de obstáculo ou corpo estranho
indesejado. Não, de forma contrária, a
transferência é bem-vinda porque é somente quando ela puder ter sido totalmente
analisada que o paciente ganhará convicção acerca do material elaborado em
análise.
É o que podemos constatar quando
Freud escreve que ” A transferência, que
parece predestinada a agir como maior obstáculo à psicanálise; torna-se seu
mais poderoso aliado, se sua presença puder ser detectada a cada vez, e
explicada ao paciente”36.
Nessa perspectiva, tudo parece girar em torno da transferência. A análise passa a ter seus objetivos voltados
para as nuanças trazidas pelo movimento transferencial de maneira que sua meta
será esgotar a relação transferencial da melhor maneira possível.
Escreve Freud:
“Todas
as tendências do paciente, inclusive as hostis, vêm à tona, passam então a ser
responsáveis pelos objetivos da análise, transformando-se em conscientes, e
deste modo a transferência é constantemente destruída” 37(114)
No caso Dora, a autocrítica de Freud
repousa no fato em que ele se recrimina por não ter descoberto à tempo a
transferência. Ao afirmar que “Não me
foi possível dominar a transferência a tempo”38, Freud dá sinais
da força desgovernada que se tornou a transferência na economia do tratamento
de Dora. Para Freud, estaria mais do que
certo de que Dora havia encontrado nele, Freud, o substituto representacional
de imagos relacionadas à Herr K. e ao próprio pai de Dora. Caberia portanto, ao analista, ter sinalizado
tais transferências de maneira que a
análise, ao percorre-las, pudesse abrir acesso a novas lembranças ligadas a
acontecimentos atuais na vida de Dora.
Analisando as transferências, Freud
teria como resultado a promoção da relação analista-analisando como a mais importante
para a economia do tratamento. É preciso
afirmar que Freud passa a conceber a dinâmica do tratamento como sendo de fato
da ordem de uma ”relação”. Nasce assim a ideia de relação transferencial, que, a partir de então passará a ser
referência para todo tratamento
analítico. Isso quer dizer que a
transferência se avoluma enquanto conceito, na medida em que ganha novas
significações, e que , de “penetra” de festa ela é promovida à “convidada de
honra”. Daqui por diante, portanto, não
se poderá falar em processo analítico sem se fazer da transferência, uma referência obrigatória.
SIGMUND FREUD |
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