domingo, 6 de setembro de 2015

"Considerações sobre a “relação transferencial” Cap.1, Parte IV

Considerações sobre a “relação transferencial”

            Se preferimos dizer que o conceito de transferência não sofreu um desenvolvimento linear, mas que tornou-se cada vez mais complexo, possuindo diversas “facetas”,  adquirindo diversas significações, é porque entendemos a transferência,  menos como um conceito delimitado,   do que algo que ganha função de acordo com as diversas problemáticas em questão.   Dessa forma, da mesma maneira que Freud cunha a expressão “manejo da transferência”  para indicar uma posição clínica que responde, em última instância, a uma direção de cura, acreditamos que o próprio conceito de transferência, prestou-se a ser manejado diante dos impasses que teoria e clínica impunham a Freud.
            Nessa perspectiva, se tomarmos o caso Dora, veremos que a transferência ganha ali um estatuto até então inédito.  Em poucas palavras, podemos dizer que ela deixa de ser exclusivamente uma resistência indesejável, para tornar-se uma espécie de condição “sine qua non” para o desenvolvimento da análise.  Vejamos como isso se constitui.
            Em Dora, Freud já trabalhava com o método de associação livre e já tinha escrito sua “ A Interpretação dos sonhos”.  Isso quer dizer que ele já tinha a clareza das relações dinâmicas, tópicas e econômicas que envolviam a formação dos sintomas histéricos .  Toda a primeira parte do caso Dora é dedicada a demonstrar a metapsicologia de todos os sintomas que a acometeram  antes e durante sua breve análise com Freud.  Apenas como indicação, lembramos que as noções de “deslocamento de afetos”, “condensação”, “inversão de afetos”, “identificação”, “submissão somática”, “formação reativa” e “sobredeterminação” estavam presentes no relato do caso e mostravam toda a compreensão que Freud tinha da histeria a partir de sua primeira tópica.
            Da mesma forma que Freud dispunha de um aparato teórico considerável para compreender psicanaliticamente a  metapsicologia das formações neuróticas em Dora, ele também pôde avançar em sua concepção sob a  transferência.
            Por ocasião da interrupção do tratamento de Dora, Freud se coloca pela primeira vez a questão da possibilidade dele ter evitado tal acontecimento através de uma intervenção advinda de uma posição investida transferencialmente.  Ele se interroga, se teria cabido ao analista, oferecer-se como substituto afetivo para a procura amorosa de Dora.  A resposta, em forma de negativa, mostra que “deve haver limites para o emprego da influência psicológica...” 34, e que não cabe ao analista se fazer oferecer como objeto de amor.  (Sobre o amor  de transferência, estudaremos mais adiante, ainda neste capítulo).
            No entanto, a resposta vem no posfácio do caso.  Ao analista não cabe se fazer como objeto de amor transferencial, mas sim  analisar a fundo tudo o que diz respeito às relações entre analisando e analista.
            É que para Freud , uma nova concepção da dinâmica do processo analítico se fará articular.  O processo de análise, depois de Dora, não deve mais ser concebido exclusivamente como uma exploração analítica de sintomas.  Freud será enfático ao pronunciar que não basta que opere o trabalho de interpretação para se obter a remissão eficaz dos sintomas. Não, dirá ele, é preciso que se desfaçam as relações entre paciente e analista para que se verifique a cura propriamente dita.  Com isso, a figura do analista passa a ganhar um papel de destaque na formulação da economia do tratamento.  O sucesso terapêutico, podemos acompanhar com Freud, dependerá exclusivamente da análise das transferências.
            Com “transferências” o que quer exatamente dizer Freud?  Ora, a psicanálise, ao estabelecer seu setting, ao sugerir que o paciente associe livremente, e ao realizar intervenções interpretativas, estabelece condições para que os sintomas neuróticos acabem por ser suprimidos.  No entanto, o fato de os sintomas sofrerem uma espécie de estancamento, não significa exatamente que a neurose tenha perdido seu poder de exigência.  O que se verifica é que a neurose continua fértil e o que se sucederá é que uma nova classe de formações neuróticas se fará apresentar ao longo do tratamento.  Essas novas formações neuróticas, tomarão  a figura do analista como ponto privilegiado para o estabelecimento de novos conflitos e funcionará ela mesma como uma nova classe de sintomas.
            “Que são transferências?  São as novas edições ou fac-símiles, dos impulsos e fantasias que são criados e se tornam conscientes  durante o andamento da análise; possuem, entretanto, esta particularidade, que é característica de sua espécie: substituem uma figura anterior pela figura do médico35(113)
            Nessa perspectiva, o tratamento analítico passará a produzir transferências que nada mais serão do que a formalização de conflitos e situações que, através de um processo que podemos chamar de “substituição de imagos”, trarão para primeiro pleno, as relações afetivas que envolvem analista e analisando.  O que se substitui é o endereçamento.  Ao invés de se reproduzir lembranças do passado, que certamente envolveriam imagos maternas, paternas, fraternas, etc, o analisando passa a transferir para a figura do analista, grande parte de seus interesses libidinais.  Dessa forma, o que faz o analista, é prestar-se a ser alvo de uma espécie de atualização de conflitos que tem origens  passadas na história do sujeito.
            Aqui, a transferência é algo que se verifica como inevitável assim como a neurose também o é.  Caberá ao analista saber operacionalizar a transferência de maneira que ela possa servir para inferir material até então não apresentado em análise.  Diferente de quando era concebida exclusivamente como uma “falsa-ligação”, nesse momento a transferência não é mais uma espécie de obstáculo ou corpo estranho indesejado.  Não, de forma contrária, a transferência é bem-vinda porque é somente quando ela puder ter sido totalmente analisada que o paciente ganhará convicção acerca do material elaborado em análise.
            É o que podemos constatar quando Freud escreve que ” A transferência, que parece predestinada a agir como maior obstáculo à psicanálise; torna-se seu mais poderoso aliado, se sua presença puder ser detectada a cada vez, e explicada ao paciente36.   Nessa perspectiva, tudo parece girar em torno da transferência.  A análise passa a ter seus objetivos voltados para as nuanças trazidas pelo movimento transferencial de maneira que sua meta será esgotar a relação transferencial da melhor maneira possível.
             Escreve Freud:
             “Todas as tendências do paciente, inclusive as hostis, vêm à tona, passam então a ser responsáveis pelos objetivos da análise, transformando-se em conscientes, e deste modo a transferência é constantemente destruída37(114)
            No caso Dora, a autocrítica de Freud repousa no fato em que ele se recrimina por não ter descoberto à tempo a transferência.  Ao afirmar que  “Não me foi possível dominar a transferência a tempo38, Freud dá sinais da força desgovernada que se tornou a transferência na economia do tratamento de Dora.  Para Freud, estaria mais do que certo de que Dora havia encontrado nele, Freud, o substituto representacional de imagos relacionadas à Herr K. e ao próprio pai de Dora.  Caberia portanto, ao analista, ter sinalizado tais transferências de maneira que  a análise, ao percorre-las, pudesse abrir acesso a novas lembranças ligadas a acontecimentos atuais na vida de Dora.

            Analisando as transferências, Freud teria como resultado a promoção da relação analista-analisando como a mais importante para a economia do tratamento.  É preciso afirmar que Freud passa a conceber a dinâmica do tratamento como sendo de fato da ordem de uma ”relação”.  Nasce assim a ideia de relação transferencial, que, a partir de então passará a ser referência  para todo tratamento analítico.  Isso quer dizer que a transferência se avoluma enquanto conceito, na medida em que ganha novas significações, e que , de “penetra” de festa ela é promovida à “convidada de honra”.  Daqui por diante, portanto, não se poderá falar em processo analítico sem se fazer  da transferência, uma referência obrigatória.
SIGMUND FREUD

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