domingo, 4 de outubro de 2015

Transferência e sugestão Cap.1, Parte VIII

Transferência e sugestão

Quando em 1904,  escreve o artigo “Sobre a Psicoterapia” 62, destinado a elucidar o valor e o modo de funcionamento da terapia analítica,  Freud aponta para o fato de que já havia abandonado a prática da sugestão hipnótica há pelo menos oito anos.  Sabemos que no início, durante muito tempo , Freud valeu-se do método da sugestão direta e posteriormente da sugestão hipnótica bem como do método catártico de Breuer para realizar o tratamento de pacientes histéricos mas que abandonou todos esses métodos para criar o método analítico propriamente dito.  A psicanálise de Freud , passava , através do método de investigação das associações livres, da análise das resistências e da interpretação dos derivados do inconsciente, a se constituir enquanto uma terapêutica que não se utilizava mais do método sugestivo como meio de ação contra os sintomas neuróticos.
            No artigo em questão , Freud é bem claro ao afirmar o distanciamento entre a prática sugestiva e a psicanálise:  “Há na realidade, a maior antítese possível entre técnica sugestiva e analítica - a mesma antítese que, com relação às belas artes, o grande Leonardo da Vinci resumiu nas fórmulas: per via de porre  e per via de levare63.  Aqui, a comparação feita por da Vinci  é entre o ato da pintura , onde o pintor põe tinta na tela , portanto preenchendo  algo que estava vazio, e o ato da escultura onde o escultor retira da pedra todo o excesso bruto que esconde as formas a serem obtidas pela escultura .  Ora, para Freud, trata-se do mesmo quando se compara sugestão e psicanálise.  A sugestão, na medida em que opera acrescentando idéias, sugerindo situações, atua pela via de porre, ao passo que a análise “não procura acrescentar nem introduzir nada de novo, mas a retirar algo, a fazer aflorar alguma coisa , sendo que para esse fim se preocupa com a gênese dos sintomas mórbidos e o contexto psíquico da idéia patogênica que procura remover64.
            O que se pode compreender a partir dessa posição é que a psicanálise seria um método que não contaria com a sugestão , mas unicamente com a investigação dos sintomas através do trabalho de reconhecimento das resistências em questão.  Podemos mesmo afirmar que para Freud, a necessidade de afirmação e estabelecimento da prática analítica quando de seu surgimento o levaram a tomar posições radicais quando se tratava de comparar sugestão e psicanálise.  O distanciamento parecia ser da ordem de uma oposição onde Freud chegava a propor, de um lado a psicanálise com seu método específico e de outro, todas as outras terapias que não faziam outra coisa senão trabalhar via sugestão.
            No entanto , anos mais tarde, quando escreve a conferência ”Terapia Analítica”65 Freud tem a oportunidade de estabelecer um estudo mais detalhado acerca da sugestão e do método analítico e o que se verifica é que, apesar de manter a distinção existente entre ambos os métodos, ele é levado a admitir o papel que exerce a sugestão dentro do método analítico.  Dessa forma, Freud não aproxima os dois métodos mas é levado a  reconhecer a maneira pela qual a sugestão se apresenta na economia do processo analítico.  Eis o ponto que nos interessa: saber qual a função da sugestão dentro do campo da terapia analítica e por conseguinte, verificar como interagem sugestão e transferência. O texto “terapia analítica” nos servirá de referência para realizarmos nossa reflexão.
            “A sugestão direta é a sugestão dirigida contra a manifestação dos sintomas; é uma luta entre nossa autoridade  e os motivos da doença66.  Freud foi ele próprio um conhecedor dos efeitos de um trabalho orientado sob a égide da sugestão.  Discípulo de Bernheim, que afirmava ser a sugestão o verdadeiro motor de cura no processo de hipnose, Freud passou por várias fases em suas investigações ligadas à sugestão.  Trabalhou com sugestão proibitória, com o próprio método de Breuer e por isso se vê possibilitado a criticar tais métodos: a sugestão proíbe os sintomas de existirem mas não é ”capaz de apreender nada de seu sentido e significado67.
            Para Freud a sugestão nunca pareceu ser um método confiável.  Nem todos os pacientes eram sugestionáveis, tampouco nem todos ficavam efetivamente curados.  Algumas situações embaraçosas fizeram Freud se aperceber de que o efeito promovido pelo método sugestivo residia muito mais na relação de autoridade que se estabelecia entre médico e paciente do que em qualquer outro motivo. Há o relato de um caso onde a paciente ,após ter sido curada, apresentara recaídas tão somente porque suas relações com Freud haviam sido perturbadas.  “Passado isso, querendo ou não , dificilmente se poderia evitar investigar a questão referente à natureza e à origem da autoridade que se tinha no tratamento sugestivo68.(525)
            Pensar que o problema da autoridade sustenta a cura sugestiva é também pensar que é devido à motivação trazida pela relação médico-paciente que se pode falar em cura.  Dessa forma o que anuncia Freud é que “a sugestão pode ter sua origem na transferência69, tendo cabido à psicanálise, já que ela traz um discurso sobre a transferência, a oportunidade de manejar de uma forma totalmente distinta , a dimensão sugestiva presente no processo terapêutico.
            Nessa perspectiva, afirma Freud que  “o tratamento hipnótico procura encobrir e dissimular algo existente na vida mental; o tratamento analítico visa a expor e eliminar algo.  O primeiro age como cosmético, o segundo como cirurgia70.  O tratamento hipnótico, baseado na pura aplicabilidade sugestiva, opera proibindo sintomas, fortalecendo o recalque mas sem no entanto modificar nada pertinente à formação dos sintomas. A psicanálise, simetricamente, se interessará pelos sintomas e tentará trazer à tona a origem infantil dos conflitos, utilizando-se da sugestão  de maneira secundária, com o propósito de intervir quando da discussão e elaboração dos conflitos psíquicos trazidos à tona pela transferência.  Eis portanto a afirmação de que a sugestão opera no tratamento analítico mas de maneira a ser apenas um coadjuvante, uma espécie de auxiliar que age até mesmo à revelia do analista.  Pensar a sugestão nessas condições é dizer que ela é presente na relação analítica justamente por se fazer parte constituinte da própria transferência.
            A sugestão é um componente da transferência, podemos dizer.  Ela está presente na medida em que , aquele que está em transferência, ou seja , aquele que experiência uma relação  que envolve investimentos libidinais, repetição de imagos, situações amorosas com um analista, está sujeito a ser mobilizado, de maneira a se tornar sugestionável, por todas essas nuanças que constituem a relação analítica.  O que vai importar é de como o analista se valerá do componente sugestivo para manejar a própria transferência.  Freud responde: “Na psicanálise, agimos sobre a própria transferência, deslindamos o que nela se opõe ao tratamento, ajustamos o instrumento com o qual desejamos causar nosso impacto. Assim, se nos torna possível auferir uma vantagem inteiramente nova do poder da sugestão; ela passa para nossas mãos71.
            O analista deve manejar a transferência e por conseguinte, deve ter o controle da aplicabilidade da sugestão.  A psicanálise tem que se haver com os efeitos da transferência e se valer dela para ter acesso ao material inconsciente.  Dessa feita, não se sugestiona o paciente a fim de que ele não tenha tal sintoma, mas se investiga analiticamente tal sintoma até que ele se desvende através do preenchimento das lacunas presentes no discurso do paciente.  A transferência, com sua dimensão sugestiva é o que dará condição para que o trabalho de investigação dos sintomas se realize e ao mesmo tempo é o que fará com que o paciente adquira o sentimento de convicção acerca do material elaborado.  Assim, dirá Freud, “É essa última característica [o manejo da transferência] que constitui a diferença fundamental entre terapia analítica e terapia meramente sugestiva, e que livra os resultados da análise da suspeita de serem sucessos devido à sugestão72.
            O argumento forte trazido por Freud é o de que, por oposição à psicanálise, os outros tratamentos terapêuticos deixam intocadas as relações ligadas à transferência, esta ficando assim  inalterada e ignorada ao longo de todo tratamento.  Ao contrário, a psicanálise se interessa pela transferência e suas nuanças, devendo analisá-la por completo, esgotando suas possibilidades de maneira que “se o sucesso então é obtido ou continua, ele não repousa na sugestão, mas sim no fato de , mediante a sugestão, haver-se conseguido superar as resistências internas e de haver-se efetuado uma modificação interna no paciente73. (529)

            Em psicanálise, a sugestão é portanto encarada como um recurso inerente à transferência , cabendo ao analista utilizá-lo de maneira que possa atingir seus objetivos.  A sugestão talvez seja a “faceta” da transferência que mais decida sobre o fator de verdade trazido pelas investigações inerentes ao tratamento analítico.  Pode-se dizer que é ela quem legitima, em última instância, a eficácia de todo efeito interpretativo advindo da análise.  Mas, de qualquer forma, o que se apreende é que, em psicanálise, a  idéia de sugestão só faz sentido se estiver articulada com os conceitos psicanalíticos que decidem sobre a própria articulação da prática analítica, dentre os quais, a transferência se inclui na condição de ser um conceito fundamental74.


SIGMUND FREUD

Um comentário:

  1. Kct, já li muito sobre sugestão, mas esta dificil digerir este conceito

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