domingo, 30 de agosto de 2015

Transferências como “veículos do desejo inconsciente” Cap.1, Parte III


Transferências como “veículos do desejo inconsciente”

 Se voltarmos nossa atenção para o capítulo VII de “ A interpretação dos sonhos”24de Freud, lugar onde ele estabelece sua metapsicologia acerca dos processos oníricos e onde , por conseguinte, discorre sobre a formulação da hipótese de um aparelho psíquico, encontraremos a utilização da expressão “transferência(s)” como  estando necessariamente vinculada com processos que ocorrem no interior desse mesmo aparelho psíquico.           
            Afirmamos de antemão que a transferência adquire , nesse momento, um novo sentido dentro do pensamento freudiano .  Nossa intenção, a partir de agora, é elucidar o estatuto que ganha a transferência dentro de “A interpretação dos sonhos” e a partir de então realizar as articulações necessárias que permitam  situar esse momento em questão  por relação à constituição do próprio conceito de transferência dentro da obra freudiana.
            Para que isso seja feito, torna-se necessário que se possa situar algumas questões que estão diretamente relacionadas com a utilização do termo “transferência(s)”.  Nesse sentido, nos interessará trabalhar principalmente o conceito de desejo, mostrando sua articulação e inserção na teoria dos sonhos, assim como será importante apresentar  a hipótese freudiana acerca do aparelho psíquico , esperando dessa forma, mostrar como se acha inserida a questão da transferência dentro da perspectiva de “A interpretação dos sonhos”.
           Ao tomar-se  “A interpretação dos sonhos” de Freud ao longo de seus sete capítulos, percorrendo-se todo o caminho que  o leva a dar aos sonhos um novo recorte epistemológico, fundando o que hoje se chama campo psicanalítico, pode-se admitir que se há uma hipótese que passa a sustentar todo seu trabalho, ela é evidenciada a partir da postulação de que todo sonho é a realização de    um desejo(inconsciente) .
              Nessa perspectiva, o que se chama de desejo deixa de ser uma noção vaga ou mesmo popular para ganhar dentro da psicanálise freudiana o estatuto de um conceito.  Conceito fundamental, é preciso dizer, e com uma especificidade própria que lhe dá a condição de existir articulado a outros conceitos e, portanto, fundando o próprio campo psicanalítico.
              Pensar o desejo dentro de “A interpretação dos sonhos”, enquanto conceito que marca toda a perspectiva do que se pode chamar de a primeira tópica freudiana, necessariamente nos leva a interrogar a respeito do que foi a criação de um sistema inconsciente por oposição a um sistema pré-consciente\ consciente e por conseguinte, a tentar , minimamente , compreender os mecanismos básicos que sustentam a dinâmica de funcionamento do aparelho psíquico.
            Assim, nos interessará agora, apreender um pouco do que Freud estabeleceu a partir de sua concepção do aparelho psíquico apresentada principalmente nas sessões (a), (b), (c) e (e) do capítulo VII de “A interpretação dos sonhos”.  Após empreendermos essa breve tarefa, acompanharemos Freud em sua formulação específica acerca do desejo, mostrando seu caráter fundamental no processo de causação dos sonhos .  Nesse ponto , estaremos aptos a evidenciar a estreita relação que se estabelece entre o movimento de desejo (tomando os sonhos como modelo) e a própria idéia de transferência tal qual ela é concebida , nesse momento, por Freud.
            A “primeira tópica” freudiana apresenta um modelo de aparelho psíquico que se encontra dividido em dois grandes sistemas: o sistema inconsciente (Ics) e o sistema Pré-consciente\ consciente(Pcs\Cs).  De início é preciso afirmar, junto com Freud que, essa topografia, não diz respeito a uma concepção física ou anatômica do  psiquismo.  Ao contrário, tal disposição diz respeito à uma hipótese topográfica que se sustenta a partir de hipóteses e inferências tiradas principalmente da observação clínica lato-senso( sintomas histéricos, lapsos de linguagem, sonhos).
            Vejamos como Freud introduz ele mesmo a sua topografia psíquica:
            “ Por conseguinte, retrataremos o aparelho psíquico como um instrumento composto a cujos componentes damos o nome de ‘instâncias’ ou (em prol de clareza maior) ‘sistemas’.  Pode-se prever, em seguida, que esses sistemas talvez mantenham entre si uma relação espacial constante, do mesmo modo que os vários sistemas de lentes de um telescópio se dispõe uns atrás dos outros  A rigor , não há necessidade da hipótese que os sistemas psíquicos se disponham  numa ordem espacial. Basta que uma ordem fixa fosse estabelecida pelo fato de, num determinado processo psíquico, a excitação atravessar os sistemas numa dada seqüência temporal”.25
            Para Freud, portanto, trata-se menos de uma espacialidade física a ser constatada antagonicamente do que de uma temporalidade quando se trata de evidenciar as mais variadas vicissitudes que sofrem os representantes psíquicos.  A temporalidade em questão diz respeito às próprias transformações que sofrem representações e afetos na dinâmica interior do psiquismo.
            Assim , o sistema inconsciente é definido como o lugar próprio das representações recalcadas, lugar onde se verifica a existência de investimentos que têm como característica uma mobilidade própria à uma concepção de energia livre , onde a partir de então as representações são capazes de se organizar desde a lógica das condensações  e dos deslocamentos.   Regido pelo processo primário, o sistema inconsciente não conhece a contradição entre os interesses de suas representações e também não funciona a partir da lógica causa-efeito. 
              Por hora, nos é suficiente afirmar que o sistema inconsciente, em última instância, é o lugar de articulação do desejo e que será próprio do desejo  exigir  constante representação na consciência.  O inconsciente, Freud o dirá, é incognoscível e só se pode afirmar sua existência através da verificação de seus efeitos que se fazem notar no sistema Pré-consciente\consciente.
            Esse sistema Pré-consciente\consciente, por oposição ao sistema inconsciente é o lugar onde se verifica toda a lógica própria ao que Freud chamou de processo secundário (energia ligada) .  Esse sistema, bem entendido, é capaz de dar qualidade às representações, através de suas ligações com as organizações afetivas, podendo também torná-las conscientes.  O sistema Pré-consciente\consciente é uma espécie de “palco” onde se apresentam os efeitos advindos do outro sistema.  Isso porque o inconsciente só se faz conhecer através do que Freud chamou de “produções do inconsciente”.  Nesse caso, está-se falando dos sintomas neuróticos, dos lapsos de linguagem, dos sonhos e dos chistes. As produções do inconsciente devem ser entendidas como formações de compromisso entre a intensidade energética própria ao movimento desejante e a possibilidade de representação oferecida pelo sistema pré-consciente\consciente.  Em breve estaremos em condições de mostrar que a transferência será , nesse momento, concebida exatamente como um dispositivo que veicula o processo de formação de compromisso.  Para que isso seja possível, é importante que passemos a compreender o sentido do movimento desejante próprio ao sistema inconsciente.  Assim, passaremos a acompanhar Freud em sua tentativa de definição do desejo.  A relação do desejo com a lógica da formação  dos sonhos nos servirá , aqui, de modelo.
             
             Na sessão (c) do capítulo VII , Freud constata que “o inconsciente nada tem a oferecer durante o sono  além da força propulsora para a realização de um desejo”26 Se pudermos nesse momento acompanhar a preocupação que se faz para Freud, vamos nos deparar com a tarefa de esclarecer a natureza psíquica dos desejos, recorrendo a uma reflexão a respeito da hipótese que trata da origem do aparelho psíquico.
            Segundo Freud, o aparelho psíquico teria atingido sua maturidade( ou seja, o aparelho psíquico constituído em dois sistemas tal como já o definimos acima) após passar por um período de aperfeiçoamento.  Acompanhando seu pensamento, temos que, de início, tal aparelho funcionava nos moldes de um arco reflexo, este com a intenção de manter-se livre de estímulos tanto quanto isto fosse possível.  Assim, qualquer excitação que incidisse sobre o psiquismo deveria fazer-se descarregar imediatamente através de sua extremidade motora.  Com o passar do tempo, são as exigências do mundo externo que aumentam e tornam-se paulatinamente mais complexas, exigindo que o aparelho se complexifique também a fim de continuar compatível com sua função principal, a saber, a de manter o nível de tensão interna o mais baixo possível.
            Freud avança em suas discussões ao chamar a atenção para o movimento intenso que imprimem ao psíquico as exigências internas. Associadas ao somático, essas exigências requerem do aparelho psíquico o dispêndio de uma força constante capaz de responder às exigências de “modificação interna”. Aqui, o já clássico modelo da fome, leva Freud a postular que o bebê só se vê saciado ao obter uma “vivência de satisfação” , que advinda do mundo externo, põe fim ao estímulo interno. Em termos de experiência psíquica, essa vivência de satisfação faz com que se inscreva um traço mnêmico que, associado à  percepção de satisfação , será a partir de então sempre re-investido quando num próximo momento a experiência de necessidade voltar a fazer exigências. Dessa forma, o aparelho psíquico lançará sempre mão do que Freud chama de moção psíquica para restabelecer a situação de satisfação original.
            Acompanhemos Freud, no momento em que define com precisão o conceito de desejo em “A interpretação dos sonhos”: “ uma moção dessa espécie é o que chamamos de desejo; o reaparecimento da percepção é a realização do desejo, e o caminho mais curto para essa realização  é a via que conduz diretamente da excitação produzida pelo desejo para um completo investimento da percepção”.27
            Nos interessará, nesse momento, avançar ainda mais na especificidade do conceito de desejo em “A interpretação dos sonhos” , buscando compreendê-lo cada vez mais em sua estreita ligação com os sonhos.  Veremos que é a partir dessa relação -  desejo\ formação onírica - que Freud situará a ideia da transferência.
            Logo no início da sessão(c), dedicada à realização de desejos , Freud se faz colocar a seguinte indagação: “ de onde se originam os desejos que se realizam nos sonhos?” 28 A partir daí ele vai estabelecer quatro possíveis fontes de origens  para o desejo. A primeira possibilidade, Freud a identifica nas situações em que o sujeito ao ser acometido por desejos e expectativas durante a vida de vigília, não pode realiza-las e se vê retomando-as em formas de sonho durante a vida onírica.  Nesses casos, tratam-se de desejos próprios ao pré-consciente, que retornam nos sonhos, sem mesmo estarem distorcidos, na perspectiva de serem finalmente realizados.  Aqui, podemos incluir também os sonhos das crianças, que, não tendo ainda  desejos recalcados, sonharão sempre com desejos próprios ao pré-consciente.
            A segunda possibilidade  que Freud vai indicar como possível fonte de origem para o desejo, é quando conteúdos representacionais da vida de vigília não podem ser aceitos  pelo sujeito e são por conta disso suprimidos da consciência.  Nesses casos, os desejos suprimidos são obrigados a recuar do sistema pré-consciente para o sistema inconsciente, ali passando a associarem-se com moções inconscientes.  Trata-se aqui, do modelo de ação do recalque.
            A terceira possibilidade para as fontes de origem do desejo nos sonhos é situada exclusivamente no sistema inconsciente.  Nesse caso o desejo nada tem em comum com a vida de vigília e obedece exclusivamente às leis que operam o sistema inconsciente.  (Como já fizemos menção, trata-se mais especificamente dos mecanismos de deslocamento e condensação).  Essa possibilidade, que indicará a função do movimento desejante na formação dos sonhos, nos interessará mais especificamente quando se tratar de situar o emprego do termo “transferência(s)”.
            Uma quarta e última localização para as fontes de origem do desejo estaria situada nas experiências somáticas.  A necessidade de urinar ou mesmo uma sede repentina poderiam levar o sujeito a sonhar com as satisfações desejadas e assim poder manter-se dormindo.
            A  questão fundamental  que vai se fazer colocar para Freud é a de saber se essas quatro fontes de origem do desejo nos sonhos teriam, em igual importância, a capacidade de provocar um sonho.  A resposta, em forma de uma negativa, é decisiva.  Os sonhos podem, é bem verdade, ter motivações oriundas de desejos não realizados durante a vida de vigília, serem provocados por desejos suprimidos do pré-consciente, ou mesmo serem instigados por necessidades fisiológicas.  Mas, o que afirma Freud com exatidão é que, nesses casos, esses desejos são apenas motivadores que contribuem para o estabelecimento dos sonhos.  Freud é enfático e claro ao dizer que o sonho não é viável se não tiver sustentação a partir de um desejo próprio ao sistema inconsciente.
            Passemos a palavra ao próprio Freud: “é minha suposição que um desejo consciente só consegue tornar-se instigador do sonho quando logra despertar um desejo inconsciente do mesmo teor e dele obter reforço”29.  E ainda prossegue Freud, salientando que tudo se passa num processo de transferências de intensidades onde o inconsciente se organiza e faz entrada no pré-consciente\consciente através do que à pouco referíamos  como “produções do inconsciente”  Acrescenta Freud: “ considero que esses desejos inconscientes estão sempre em estado de alerta, prontos a qualquer momento para buscar o meio de se expressarem quando surge a oportunidade de se aliarem a uma moção do consciente e transferirem sua grande intensidade para a intensidade menor desta última30.
            Portanto é no momento em que Freud situa o desejo inconsciente enquanto única fonte possível para provocar a formação de um sonho que iremos encontrar a postulação de que é justamente a transferência que vai viabilizar a “transação”  responsável pela  formação onírica.  A transferência é o que dá  a condição para que o desejo inconsciente faça sua aparição no sistema pré-consciente\consciente.  O movimento desejante, que como vimos, busca sempre representar-se na consciência, é levado a buscar vínculos com representações do sistema pré-consciente\consciente a fim do obter condições para atingir sua meta.  Para tal, o que se opera, através do que chamamos de formação de compromisso, é uma transferência de intensidades.  As intensidades das moções inconscientes são transferidas para representações que fazem parte da consciência.  Com isso, o desejo inconsciente é capaz de se fazer representar de maneira que possa burlar a censura que lhe impede naturalmente acesso à consciência.  Através de representações conscientes que mantenham relações de semelhança, proximidade e similitude com as representações do desejo inconsciente, a transferência dessas intensidades (do inconsciente para o pré-consciente\consciente) permite com que o desejo inconsciente faça “furo” na consciência de maneira que se apresente distorcido, como no caso das formações oníricas manifestas.   Nesse sentido, conclui Freud, “Aí temos o ato da ‘transferência’, que fornece uma explicação para inúmeros fenômenos notáveis da vida animica”.31 (513)
            A transferência não se daria exclusivamente no processo de formação dos sonhos, mas seria ela própria o meio pelo qual todas as produções do inconsciente se fariam existir.  Em outras palavras, toda formação de compromisso, própria de toda organização neurótica, seria sempre uma formação viabilizada pelo advento das transferências de intensidade.  Uma determinada representação que nada tem a temer por relação às exigências da censura, se presta, no advento do ato falho por exemplo, a receber o investimento de representações próprias ao sistema inconsciente que, por outro lado, anseiam em transferirem-se para o sistema pré-consciente\consciente.  Como vimos, o que se transfere, nesses processos, são as intensidades, as cargas de investimentos oriundas das representações inconscientes, que, fazem com que o sujeito do ato falho seja, ao mesmo tempo um sujeito do equívoco (trata-se de outra representação), assim como um sujeito que se vê afetado(a intensidade foi transferida) diante de sua própria posição falha.
            Ainda no campo próprio aos sonhos, Freud mostra a especificidade dos restos diurnos.  Dirá que eles tomam emprestado a intensidade do inconsciente no momento em que figuram no sonho e ao mesmo tempo “oferecem ao inconsciente algo indispensável - ou seja, o ponto de ligação necessário para uma transferência32 (514) Nesses casos , afirmará Freud na sessão (e) do capítulo VII: “Passa a existir no pré-consciente uma cadeia de pensamentos desprovida de investimento pré-consciente, mas que recebeu investimento do desejo inconsciente.”33(539)
            A transferência, nós podemos afirmar, opera através do que se pode definir como “deslocamento de afetos”.  As intensidades, nada mais são do que cotas de afetos que vão se deslocar do sistema inconsciente para o sistema pré-consciente\consciente até que se realize uma formação de compromisso capaz de satisfazer aos interesses de ambos os sistemas.  Aqui, a transferência opera enquanto veículo para que o desejo inconsciente possa se fazer representado na consciência.  Ora, se a transferência é ela própria parte do movimento desejante, então a grande novidade que existe nesse momento é a de que ela não é aqui concebida enquanto resistência.  Pois sabemos que, segundo Freud, ao menos em sua primeira tópica, o inconsciente não tinha como característica a resistência.  Não, ao contrário, o único movimento próprio ao sistema inconsciente é o de se organizar para ultrapassar a censura e se fazer, mesmo que distorcidamente, presente na consciência.  A resistência é a função de um ego, que, como vimos anteriormente, ameaçado pelo trabalho terapêutico, se vê obrigado a resistir contra o desvelamento do inconsciente.
            Assim, transferir é tão somente veicular o desejo e torná-lo um projeto viável para o sujeito. Nesse caso, a transferência não é nem empecilho e nem obstáculo.  Tampouco tratar-se-ía de algo a ser extirpado como um corpo estranho.  Ao contrário, a transferência é sempre bem sucedida na medida em que dá ao sujeito a capacidade de estabelecer-se de forma neurótica. 


SIGMUND FREUD


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