A introjeção e a aquisição do sentido de realidade
Em 1913 Ferenczi escreve um
importante artigo denominado “O Desenvolvimento do Sentido de Realidade e Seus
Estágios”18, destinado a oferecer um modelo teórico capaz de
explicitar o processo de formação e aquisição do sentido de realidade para o eu
do sujeito. Trata-se de um pensamento que reconhece diferentes estágios de
sustentação e percepção da realidade onde o sujeito estabelece diferentes
níveis de relação com o mundo externo. Esses estágios, em número de quatro,
indicariam fases de desenvolvimento onde a criança passaria paulatinamente por
um processo que a capacitaria, no final, a mediatizar com a realidade de
maneira que se pudesse distinguir com clareza o que é de domínio de um
“eu" e o que pertence ao "mundo externo”. Nosso interesse em trazer à
tona esse artigo é o de poder destacar o papel fundamental que adquire a
introjeção na aquisição do sentido de realidade.
O primeiro
estágio diz respeito à época em que a criança não possuía nenhuma diferenciação
para com o mundo externo. Trata-se de um período onde , segundo Ferenczi,
apesar da condição de se achar na barriga da mãe, portanto ainda como um feto,
o pequeno ser já apresenta algo de psíquico. O psíquico em questão diz respeito
a uma fase de pura onipotência onde o feto não precisa nem sequer desejar. Tudo
lhe é suprido, tudo lhe é satisfatório e nada lhe falta. Pelo fato de tudo ser
resolvido sem qualquer necessidade de interferência do feto, Ferenczi
identifica ai a predominância de uma posição de onipotência da criança. “Pois o que é onipotência? É a impressão de
se ter tudo o que se quer e de não ter mais nada a deseja"19.
Segundo Ferenczi trata-se de fato de uma fase onde predomina a “megalomania da
criança” e onde se pode dizer que se vive no “período da onipotência
incondicional".
Posteriormente,
na condição de recém-nascido, algo começa a faltar. Não se habita mais num meio
onde tudo parece pacificado e completo. Ter que respirar e se alimentar fazem
com que o bebê passe a sentir minimamente algo relativo à ordem da necessidade.
Por mais que os adultos lhe acolham com todo tipo de proteção, o mundo
intra-uterino está para sempre perdido e é preciso lutar para ter de volta a
paz perdida. Aparece então a oportunidade do surgimento do primeiro desejo da
criança que não será outro senão o de retornar para a situação primeira. Esse
desejo poderá se realizar, ainda que parcialmente, através da experiência de
satisfação alucinatória que servirá, ainda que como recurso meramente psíquico,
para saciar o desamparo instaurado. “Não
tendo, por certo, nenhuma noção do encadeamento real de causas e efeitos, nem
da existência e atividade das pessoas que cuidam dela, a criança é levada a
sentir-se na posse de uma força mágica, que é capaz de concretizar todos os
seus desejos mediante a simples representação de sua satisfação.”20
Esse período é denominado por Ferenczi de "Período da onipotência
alucinatória mágica".
Em seguida, o
que se verifica é que essa onipotência alucinatória não será mais suficiente
para que o pequeno infans consiga dar conta do excesso de exigências que lhe
fazem suas pulsões. A criança passará a lançar mão de um novo recurso: produzir
sinais que serão capazes de , minimamente, representar algo do que se espera
obter. Alucinar única e exclusivamente já não basta mais. É preciso que se
possa lançar mão de gestos, que se assemelharão aos gestos de um mágico e que
servirão, através da intervenção de um adulto, para apaziguar o desprazer que
até então predominava. Assim escreve Ferenczi: “Os desejos, que assumem formas
cada vez mais especificas à proporção do desenvolvimento, exigem sinais
especializados correspondentes. Tais são eles, em primeiro lugar: a imitação
com a boca dos movimentos de sucção quando o bebê deseja ser alimentado, e as manifestações
características, com ajuda da voz e de contrações abdominais quando deseja ser
trocado. (...) Resulta daí uma verdadeira linguagem gestual." A
esse período, notadamente marcado pela entrada da necessidade do uso de gestos
para o inicio de uma troca mais efetiva com o mundo externo, Ferenczi dá o nome
de "período da onipotência com a ajuda de gestos mágicos".21
Até aqui todos os três estágios mencionados por Ferenczi têm em comum o fato de se
apresentarem como períodos onde, de uma forma ou de outra, predomina a
onipotência. Onipotência "incondicional", “alucinatória” ou mesmo de
"gestos mágicos”. Aqui, de qualquer forma o que se verifica é que o eu do
sujeito ainda não se vê obrigado a distinguir-se do mundo externo. Trata-se,
portanto, para Ferenczi de dizer que toda a fase de onipotência esta vinculada
à predominância de experiências introjetivas.
O fato de que
em seguida, a criança é levada a projetar, isto é, é “obrigada a distinguir do seu ego, como constituindo o mundo externo,
certas coisas malignas que resistem à sua vontade, ou seja, a separar os
conteúdos psíquicos subjetivos (sentimentos) dos conteúdos objetivos
(impressões sensoriais)"22 , não quer dizer que a criança
deixe de realizar introjeções. Não, ao contrário, uma vez instaurada, a
introjeção se fará impor como um mecanismo capaz de estabelecer o próprio
universo simbólico do sujeito ao fazer com que ele invista os objetos do mundo
externo a partir de sua própria forma auto-erótica de investimento.
É preciso aqui,
mais uma vez, evocar a definição do conceito de introjeção a fim de que se
possa ter claro o seu papel na própria constituição linguagem na vida de cada
sujeito e, por conseguinte da própria instauração do sentido de realidade. Em
1911, Ferenczi escreve um artigo destinado a elucidar ainda mais o conceito de
introjeção. Em “O conceito de introjeção”23
ele chega a reafirmar que “descrevi
a introjeção como a extensão ao mundo externo do interesse, auto-erótico na
origem, pela introdução dos objetos exteriores na esfera do ego”24
Ou seja, o que se depreende daí é que as trocas que o eu estabelece com o
mundo externo, a partir de um determinado momento, têm como característica o
fato de obedecerem a uma lógica própria ao modelo de satisfação pulsional
vigente até então, a saber, o modelo auto-erótico.
Nessa
perspectiva, Ferenczi dirá que o homem só será capaz de amar a si mesmo, ou
seja, que o modelo de amor é sempre um modelo auto-erótico onde "amar a outrem equivale a integrar
esse outrem no próprio ego”25. O que está em jogo a
partir dessa apreensão da introjeção é a formação do próprio universo simbólico
do sujeito. Para Ferenczi, por conta do modelo da introjeção, o mundo simbólico
e, por conseguinte, a constituição da linguagem é eminentemente, antes de tudo,
um mundo auto-simbólico. Vejamos como Ferenczi define baseado em sua concepção
de introjeção, o próprio estabelecimento das relações simbólicas:
“Assim se estabelecem essas relações
profundas, persistentes a vida inteira
entre o corpo humano e o mundo dos objetos, a que chamamos relações simbólicas. Nesse estágio, a
criança só vê no mundo reproduções de sua
corporalidade e, por outro lado, aprende a figurar por meio de seu corpo toda adversidade do mundo externo. Essa
aptidão para a figuração simbólica representa
um aperfeiçoamento importante da linguagem gestual; ela permite à criança assinalar não só os desejos que
envolvem diretamente seu corpo, mas exprimir
também desejos que se relacionam com a modificação do mundo externo, doravante reconhecido como tal”.26
A linguagem
gestual é, portanto paulatinamente substituída pela linguagem verbal. Essa
última se constituirá a partir do momento em que a criança tiver habilidade
para reproduzir sons e ruídos produzidos pelo mundo externo e puder lançar mão
das palavras em detrimento dos gestos mágicos. Como Ferenczi sugere, a
aquisição da palavra é a mais alta realização do aparelho psíquico
concretizando sua completa adaptação junto ao mundo externo e ao sentido de
realidade. A criança nesse momento se fará entrar no “período dos pensamentos e
palavras mágicas”.
Nos
interessará nesse momento, aprofundarmos um pouco mais a relação entre a
introjeção e a noção ferencziana de auto-simbólico. Em “Ontogênese dos símbolos"27 Ferenczi apresenta toda
a lógica que sustenta seu pensamento acerca do que venha a ser um símbolo. Para
ele, para que se tome a noção de símbolo a partir de um sentido psicanalítico,
não basta que dois termos possam ser comparados entre si , ou que apresentem
relações de semelhanças capazes de interligá-los. Não, para Ferenczi, para que
haja símbolo é necessário que uma marca esteja em relação à outra associada por
razões que estejam sustentadas em uma lógica proveniente dos afetos de cada
sujeito. O símbolo dessa forma implica numa singularidade absoluta onde cada
sujeito será capaz de formular seu universo simbólico de acordo com suas
experiências afetivas, que , em última instância, como já pudemos acompanhar
através da definição do conceito de introjeção, seguirão a lógica do modelo
pulsional auto-erótico de amor. “A
experiência psicanalítica ensina-nos de fato, que a principal condição para que
surja um verdadeiro símbolo não é a natureza intelectual, mas afetiva, embora a
intervenção de uma insuficiência intelectual seja igualmente necessária à sua
formação”.28
O processo
introjetivo é por assim dizer o responsável por toda capacidade singular de
simbolização do universo. O sujeito só será capaz de simbolizar aquilo de que é
capaz de introjetar. Há, nas palavras de Ferenczi, uma verdadeira “sexualização
do universo". A criança será capaz de conhecer os objetos do mundo externo
através de experiências que afetivamente, a remetam a si própria. Só se fará símbolo
aquilo que puder ser identificado às próprias funções prazerosas reconhecidas
na fase auto-erótica. Acompanhemos Ferenczi nesse raciocínio: “Nesse estágio, os menininhos designam
naturalmente todo objeto oblongo pela denominação infantil de seu órgão sexual,
e veem em toda abertura um ânus ou uma boca, em todo líquido, urina e em todas
as substâncias moles, materiais fecais. Um bebê de um ano e meio, quando lhe
mostraram pela primeira vez o Danúbio, exclamou: quanto cuspe!”.29
Nessa
perspectiva de simbolização através da introjeção, o que se verifica é que o
sujeito exerce uma função ativa na constituição do objeto. Aqui, o sujeito não
encontra os objetos prontos, mas os fabrica de acordo com sua lógica afetiva.
Na verdade, a capacidade auto-simbólica trazida pela introjeção é o que vai
fazer com que cada sujeito fabrique seu próprio mundo simbólico e com ele
estabeleça suas relações de troca. Ao comentar exatamente a questão do objeto
no processo de introjeção , Renato Mezan, no artigo “Do auto-erotismo ao
objeto: a simbolização segundo Ferenczi”30, aponta para o fato de
que o objeto não é nem encontrado e nem investido exclusivamente , mas, de
outra forma, ele é formatado de acordo com o processo introjetivo. Vejamos:
“O curioso aqui é que o objeto não aparece
como fonte destas sensações e sentimentos, mas como alvo deles. Poder-se-ia
pensar que o objeto é propriamente constituído por cristalizações e
polarizações desses afetos sobre um determinado suporte, empiricamente dado.
Creio que esta consequência é de fundamental importância, porque faz do objeto
um elemento propriamente psíquico, cuja relação com aquilo no qual se incrusta
(o suporte) é determinada pelo sujeito segundo uma lógica essencialmente
afetiva”.31
Dessa forma,
o que se consideraria como objetos seriam na verdade os próprios movimentos
afetivos que se valeriam das representações do mundo externo para dar forma e
conteúdo ao psiquismo de cada sujeito. Nessa perspectiva, insiste Mezan: “O objeto ferencziano é uma trança ou bloco
de afetos, que pulsa e age sobre o psiquismo”. 32
Na mesma
direção, temos o pensamento de Teresa Pinheiro, que , em “Ferenczi - do grito à
palavra”33, mostra como de fato, a introjeção é por assim dizer, o
próprio movimento do psiquismo, capaz de regular todas as suas atividades e de
oferecer um modelo coerente para operações que se complexificam tais como o
fantasiar, o representar e o identificar. Nessa perspectiva, a autora segue a
linha de raciocínio que indica ser a introjeção o mecanismo pelo qual o
psiquismo é capaz de produzir sentido. Assim vejamos sua afirmação:
“Ferenczi é incisivo: diz que unicamente através
da introjeção é que um sentido torna-se passível de ser apropriado. Dito de
outra maneira, é a introjeção que, pela inclusão do objeto, começa a povoar de
representações o aparato psíquico. Nesse caso, no entanto, o objeto nada mais é
que o suporte daquilo a que visa a introjeção, ou seja, a apropriação das
representações das quais o objeto é portador”. 34
Para Teresa Pinheiro a hipótese que dá toda a consistência para se entender a introjeção como mecanismo principal na ordenação do psiquismo é a de que se trata aí exatamente de por em funcionamento o próprio aparato da linguagem. Desde a primeira introjeção, possibilitadora da inscrição do diferencial prazer-desprazer, pode-se falar em ordenamento do aparelho psíquico em termos da instauração do próprio campo da sexualidade. Para autora, nesse sentido, a introjeção têm a característica de ser ela própria uma qualidade da pulsão e se torna a responsável pelo próprio processo de continuísmo do aparelho psíquico, garantindo, para sempre, desde seu advento, a própria noção de subjetividade. Acompanhamos novamente:
“Em Ferenczi, o objetivo da introjeção refere-se, sobretudo à subjetividade; trata-se de trazer para a esfera psíquica os sentimentos do objeto, este funcionando apenas como suporte das representações já investidas que traz consigo. Essas representações carregadas de sentido possibilitam ao aparelho psíquico apropriar-se do que Ihe falta: sentido”.35
Para Maria
Torok, no artigo “Maladie du Deuil et Fantasme du Cadavre Exquis”,36 a
questão da introjeção não diria respeito propriamente à inclusão do objeto na
esfera do eu como se poderia pensar mais comumente. Haveria para, uma certa sofistificação
metapsicológica no processo introjetivo que indicaria que o que é introjetado,
na realidade é o conjunto das pulsões e de suas vicissitudes, num processo onde
se verificaria sempre um enriquecimento do eu através da aquisição do que até
então se encontrava na condição de libido inconsciente ou recalcada.
“A introjeção, segundo Ferenczi, reserva ao
objeto – e ao analista por conseguinte – um papel de mediador sobre o
inconsciente. Operando num vai-e-vem “entre o narcísico e o objetal”, entre o
auto e o hetero-erotismo, ela transforma as incitações pulsionais em desejos e
fantasmas de desejo e, assim, os torna aptos a receber um nome e um direito de
cidadania e a se manifestar no jogo objetal”.37
Ao indicar
que a introjeção reserva ao analista o lugar de mediador entre as pulsões e seu
próprio desejo – já que a introjeção é quem viabiliza o estabelecimento do
circuito pulsão-objeto, ou se quisermos, o circuito pulsão-linguagem, Torok
aproxima também, ferenczianamente, nós acreditamos, o conceito de introjeção da
própria noção de transferência. Voltamos dessa forma ao inicio de nossas
considerações acerca da transferência nos primeiros artigos de Ferenczi e,
portanto retomamos a ideia de que o analista deve ser mesmo esse catalisador -
ou mediador, como quer a autora francesa -, capaz de garantir o curso de
existência e afirmação do desejo inconsciente. Levar o analisando a realizar
seu percurso de introjeções, ou seja, permitir com que ele reordene suas
coordenadas simbólicas de acordo com a lógica da sua própria existência afetiva,
é portanto dar à transferência o lugar de veículo para que se estabeleçam
satisfatoriamente as relações entre os dois pólos extremos onde se situam as
pulsões numa extremidade e as representações de objeto na outra extremidade.
Sándor Ferenczi |
Postando assim, em capítulos e partes cada tema, fica muito mais facil de entender.
ResponderExcluirOnde estão as parte 1 e 2 ?
Ola, boa noite carlos.
ResponderExcluirvocÊ tem o texto supracitado "18"“O Desenvolvimento do Sentido de Realidade e Seus Estágios para me enviar?
ou o link para acesso?
segue meu email lutsi2005@gmail.com
grata!
Luciana