segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Transferência como Deslocamento de Afetos Cap.2, Parte 2

Transferência como Deslocamento de Afetos


Ao nos aproximarmos do texto "Transferência e Introjeção" veremos que Ferenczi inicia seus estudos sobre a transferência a partir do estabelecimento do que ele concebe como sendo o mais importante acerca da transferência dentro da obra de Freud. Assim, o que temos é que Ferenczi estabelece como diretrizes fundamentais para se discutir a transferência em psicanálise, duas posições acerca do assunto trabalhadas por Freud ao longo de sua obra. Vale lembrar que estamos em 1909 e que Freud sequer havia escrito seus "Artigos Sobre Técnica.” Nessa perspectiva, Ferenczi dispunha até então para discussão, principalmente, os "Estudos Sobre Histeria", "A Interpretação dos Sonhos”, Psicopatologia da Vida Cotidiana", "O Chiste e Suas Relações com o Inconsciente" e finalmente, "Fragmentos de um Caso de Histeria" (o caso Dora).

As duas posições freudianas acerca da transferência das quais se vale Ferenczi são as seguintes: 1) Uma vez em análise, o neurótico não cessa sua capacidade de produzir sintomas. A análise é capaz de reforçar ainda mais uma especificidade de sintomas (os sintomas de transferência) e por conta disso a transferência fica identificada com a própria constituição de novos sintomas.
 2) A concepção de que as transferências que se produzem em análise são de fato repetições de imagos capazes de reeditarem conflitos entranhados na história libidinal particular de cada sujeito. O que se verifica é a posição que Freud estabelece a partir do caso Dora onde se constata que o analista se presta a substituir, através da presença de sua figura, imagos importantes presentes na história do sujeito.

A partir dessas duas referências ao texto freudiano, Ferenczi parte para começar a tecer considerações capazes de definir o que ele próprio entende por transferência. O primeiro ponto do qual parte é o de afirmar que a transferência constitui-se como mecanismo universal. Isso quer dizer que a transferência não é provocada exclusivamente pela análise ou mesmo que ela seja um acontecimento unicamente próprio aos neuróticos.

"A transferência apresenta-se como um mecanismo psíquico característico da neurose em geral, que se manifesta em todas as circunstâncias da vida e abrange a maior parte das manifestações mórbidas"² . 

Essa definição da transferência como um mecanismo inerente aos movimentos do psiquismo humano e capaz de ser verificado até mesmo nas manifestações mórbidas, mostra que para Ferenczi a discussão da transferência se fará sempre num nível de algo que constitui o próprio psiquismo e que, portanto se verifica em situações que não se reduzem à prática analítica e mesmo a neurose estrito senso. Pensar a transferência como um mecanismo genérico e inerente ao funcionamento do psíquico fez com que Ferenczi, num período mais tardio de sua obra, pudesse se dedicar ao trato de pacientes que não apresentavam como matriz clínica a neurose.
Ferenczi desde cedo postulou a transferência como independente da neurose e pôde se valer disso para o trato do que posteriormente denominou por “pacientes difíceis". Todo o desenvolvimento acerca da transferência e o trato de pacientes que não podiam ser classificados de neuróticos será por nós abordada ao longo dos capítulos três e quatro. Por hora, deixamos indicado o caráter de acontecimento genérico do qual se vale Ferenczi para pensar a transferência. 

Dizer que a transferência é um acontecimento que se verifica até mesmo nos casos mais mórbidos (donde se conclui que se trata de ir além da neurose), não impede a Ferenczi de, junto com Freud, perceber que, na neurose, a transferência mostra-se presente de maneira mais exagerada. Trata-se assim de se postular que os neuróticos sofrem por desperdício. Um desperdício que Ferenczi classificará de desnecessário. Para que se possa entender isso, ele nos convida a pensar naqueles sujeitos que costumam apaixonar-se com frequência e também nos que podem odiar com uma considerável suscetibilidade. A explicação para essa excessiva disponibilidade para investir objetos libidinalmente encontra-se na ideia de que, nessas situações, são transferências que ocorrem, de maneira que, ao operarem, realizam um movimento de "deslocamento da energia afetiva dos complexos de representações inconscientes para as ideias atuais, exagerando sua intensidade afetiva”.³ 

Aqui a ideia trabalhada por Ferenczi é a de que a transferência, em última instância, é o resultado do próprio movimento inconsciente, que, ao tentar realizar-se através da obtenção de representação na consciência, opera o deslocamento de seus afetos de forma a atingir seus objetivos. Dessa forma, transferir é transportar afetos de um determinado grupo de representações inconscientes para um grupo de representações que seja aceito pela consciência. Essa ideia, que será tomada por Ferenczi como a ideia principal acerca do que seja a transferência, já foi por nós trabalhada nessa dissertação através de um subtítulo apresentado no capítulo 1 que indica a transferência "como veículo do desejo inconsciente". Portanto, o que podemos afirmar é que a ideia de que a transferência opera por deslocamento de afetos pertence ao próprio Freud que assim a definiu em um determinado momento de sua obra.
Ao tentar esclarecer um possível mal-entendido entre a utilização do conceito de transferência como identificado ao de deslocamento, Ferenczi lança mão da explicação de que a transferência está contida na concepção mais ampla de deslocamento. Na verdade a única maneira de diferenciá-los com mais precisão é postular que a transferência é um deslocamento que se vale da utilização da própria figura do analista corno referência para o deslocamento. Acompanhemos a tentativa de Ferenczi de diferenciar deslocamento e transferência:

"A transferência é apenas um caso particular da tendência geral dos neuróticos para o deslocamento. Para escapar de certos complexos penosos, portanto recalcados, são impelidos, pelas explicações causais e analogias mais superficiais, a testemunhar sentimentos exagerados (amor, repulsa, atração, ódio) por pessoas e coisas do mundo externo"

Pode-se notar que para Ferenczi, ao situar a transferência como um processo destinado à levar o sujeito a escapar de processos penosos, está-se falando menos de defesa do que de movimento próprio ao sistema inconsciente. É que para ele, a transferência é a maneira da qual o sujeito se vale para poder dar destino à gama de afetos que o acomete. Esses afetos, bem entendido, devem ser concebidos como energia própria ao inconsciente que exigem um destino por parte do sujeito. Esse destino dos afetos, como podemos acompanhar Ferenczi descrever, pertence e depende exclusivamente da capacidade que o sujeito tem para realizar transferências. 

"Se os neuróticos pululam nos movimentos de tendência humanitária ou reformista, entre os propagadores da abstinência (vegetarianos, antialcoólicos, abolicionistas), nas organizações e seitas religiosas, nas conspirações pró ou contra a ordem política, religiosa ou moral, isso se explica pelo deslocamento, nos neuróticos, das tendências egoístas (agressivas e eróticas), recalcadas, censuradas, do inconsciente para um plano onde elas podem ser vividas sem culpa.”

Para enfatizar seu argumento e estabelecer a transferência como um caso particular de deslocamento, onde o que vai interessar, como já dissemos, é o lugar "tomado de empréstimo" pela representação do analista, Ferenczi dirá que "as condições de tratamento psicanalítico são muito propícias ao estabelecimento de tal transferência” porque os afetos recalcados que, através do movimento desejante inconsciente, são levados a se deslocarem em busca de novas representações para investimento, encontrarão com facilidade a representação do analista que se disporá de imediato para acolher os afetos carentes de ancoragem. Essa imagem, que faz do analista um catalisador de afetos, isto é, uma espécie de polo acolhedor para a intensidade desejante de cada sujeito identificará a transferência como um acontecimento capaz de ordenar o curso e vicissitudes que uma análise pode tomar.

Vejamos como Ferenczi introduz, ele próprio, a ideia de que o analista funciona como um catalisador de afetos: “A pessoa do médico atua aí como um catalisador que atrai provisoriamente os afetos liberados pela decomposição; mas cumpre saber que numa análise corretamente conduzida essa combinação mantém-se instável, e uma análise bem administrada deve encaminhar rapidamente o interesse do paciente para as fontes primitivas escondidas, criando uma combinação estável com os complexos até então inconscientes". Portanto a ideia do lugar do analista como catalisador é bem pertinente à concepção da transferência como deslocamento de afetos. A tendência natural de cada sujeito, podemos afirmar com Ferenczi, é a de se deslocar o tempo inteiro. Na verdade, o que Ferenczi faz é levar à sério a postulação freudiana que compreende o sistema inconsciente como o lugar próprio ao movimento desejante e que portanto opera através dos mecanismos de condensação e deslocamento. Conceber o analista como catalisador é dar a chance de se instituir, através da análise, o circuito do desejo do sujeito de maneira que ele possa ter suas ligações libidinais satisfatoriamente alocadas.

A ideia do catalisador, tal como Ferenczi a concebe, faz da representação do analista um polo passageiro, ou se preferirmos, transitório, capaz de atrair para em breve despachar os movimentos afetivos em questão.
 Assim, a transferência não pode ser concebida nem como uma "falsa ligação" ou mesmo como uma resistência. Isto porque a participação da figura do analista é algo previamente esperado na medida em que o sujeito, a partir de seu processo desejante, é capaz de desejar uma representação que se lhe ofereça como possível de ser investida. Para Ferenczi, a transferência desde sempre foi esperada e concebida como algo pertinente à capacidade do sujeito investir seus afetos. A transferência não é resistência simplesmente porque o analista é esperado na cadeia desejante assim como outrora as imagos paternas já o foram. Com o analista como catalisador, não há propriamente uma substituição de imagos passadas, mas a afirmação do desejo inconsciente que escolhe o analista para se presentificar.

Assim, a transferência pode autenticar o lugar do analista com a aparição deste no sonho de um sujeito em análise. Ferenczi foi o primeiro a mostrar que o analista, ao se prestar como resto diurno, não faz nada mais a não ser permitir com que o sujeito ponha em ação seu modelo desejante. Para Ferenczi, o analista como resto diurno, apenas comprova a magnitude e soberania da transferência e com isso possibilita que um sonho seja aproveitável em uma análise. Assim, o analista provavelmente não diria, não sou eu, mas seu pai...", para diferentemente sugerir que "Sim, sou eu, mas também pode ser seu pai, ou alguém diferente...", numa franca afirmação do movimento afetivo que passa a ser positivado como um acontecimento verdadeiro e até mesmo necessário.  Ao afirmar que "O médico é sempre e exclusivamente um desses 'expectros' que fazem ressuscitar no paciente as figuras de sua infância", Ferenczi não faz outra coisa senão testemunhar que o analista serve à cadeia desejante da mesma forma que outras representações outrora já o serviram. Assim para Ferenczi, desde sempre, a experiência analítica encontrou mais sua função na afirmação da vida afetiva do sujeito do que na tentativa desenfreada de se restabelecer a verdade dos investimentos inconscientes. Para Ferenczi, dessa forma, interessa menos o trabalho de vencer resistências, pois não há nada a ser vencido - do que o de estabelecer níveis de vivências afetivas.

Por isso ele cedo pôde afirmar, não sem uma considerável coerência, que “reconhecer a transferência das emoções positivas e negativas é capital na análise.” Nessa perspectiva, o importante é que o sujeito experiencie sua vivencias afetivas, sejam odiosas ou amorosas, da forma mais intensa possível. A transferência se presta assim a funcionar como o testemunho último do que o sujeito deseja e de que seus afetos estão sempre ali presentes, urgindo por novas maneiras de apresentação. Uma leitura cautelosa nos aproximará de um Ferenczi extremamente cuidadoso e à vontade com a teoria freudiana do inconsciente. Pois para ele a transferência põe em curso a própria linguagem do inconsciente na medida em que é próprio desse "deslocamento de afetos", operar de acordo com as regras estabelecidas por Freud em "O Chiste e Sua Relação Com o inconsciente". Trata-se de afirmar que a transferência opera tal qual o inconsciente, que ela se desloca e se institui por sua ligação representacional orientada pela semelhança entre detalhes. São “minúsculos detalhes" capazes de serem captados pelo trabalho do sonho e oferecidos como material próprio para a realização de desejo. Em franca referência à figura de estilo tão difundida posteriormente no meio psicanalítico - a metonímia, Ferenczi faz uso do modelo poético que afirma "a parte pelo todo" para mostrar por onde se sustenta a força e coerência da imposição da transferência. Ele escreve:

"O 'ridículo' aparente de uma transferência estabelecida com base em semelhanças tão ínfimas lembra-me que Freud assinalou como fator deflagrador do prazer numa certa categoria do chiste 'a representação pelo detalhe' (darstellung durch ein kleinstes), ou seja, pelo elemento próprio para sustentar a transferência dos afetos inconscientes".


Sándor Ferenczi



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