Início
da discussão sobre a transferência: o caso Anna O.
“Se algum mérito existe em ter dado vida à
psicanálise, a mim não cabe, pois não participei de suas origens. Era ainda estudante e ocupava-me com
meus últimos exames, quando outro médico de viena, o Dr. Joseph Breuer,
empregou pela primeira vez êsse método no tratamento de uma jovem
histérica(1880-1882)” (Freud)
Essa
citação, extraída da primeira das
“Cinco lições de psicanálise”, proferidas por Freud quando da ocasião de sua
viagem aos Estados Unidos (1909),
mostra a importância que ele conferia ao trabalho de Breuer e indica
o valor desa experiência dentro da
história da Psicanálise: trata-se
de um momento inaugural, onde o método terapêutico e a investigação psíquica aí
realizados por Breuer, apontaram para o início do estabelecimento de um campo
que futuramente passou a ser reconhecido, a partir de Freud, como o campo
psicanalítico. Assim, o peso do
reconhecimento que Freud concede a Breuer, se não legitima a experiência desse último como uma experiência
analítica, ao menos lhe confere o registro de uma marca pioneira.
Verdade
seja dita, Freud cinco anos mais tarde, reviu sua posição e , influenciado já
por uma sociedade analítica, decidiu não mais reconhecer a experiência de
Breuer como marco inaugural da psicanálise resolvendo assumir para si próprio
toda a paternidade da psicanálise. O argumento por Freud utilizado é o de que a
ele caberia ter formulado o legítimo método analítico, a saber, o que teria no
trabalho de escuta, a exigência de se estabelecer uma única regra fundamental -
a das associações livres. Assim, Freud apoiado por um grupo de
analistas próximos a ele passa a
compreender “o método analítico de Breuer
como um estágio preliminar da psicanálise, e a psicanálise em si como tendo
tido início quando deixei de usar a técnica hipnótica e introduzi as
associações livres”.
Mesmo
que Freud e os analistas aceitem essa divisão, mesmo que a experiência de
Breuer, se avaliada desde a
perspectiva de um método, possa
ser entendida apenas como uma precussora
de uma psicanálise
propriamente dita, e mesmo que
Breuer não tivesse uma teoria acerca do inconsciente e da sexualidade, não nos
parece ser possível deixar de reconhecer que já alí, exatamente no que diz
respeito ao tratamento de Anna O., havia o trato de questões que se
apresentavam como próprias ao interesse da própria teoria psicanalítica. Na verdade, se Freud pôde criar a
psicanálise, se ele pôde estabelecer paulatinamente uma teoria da sexualidade,
se ele constroi um aparelho psíquico a partir de uma concepção específica do
inconsciente e se ele faz da idéia de resistência, um conceito eminentemente
clínico, tudo isso é feito - ao
menos inicialmente - numa
perspectiva crítica ao trabalho de Breuer. O desenvolvimento desse capítulo procurará deixar essas
considerações satisfatoriamente explicitadas.
Como
nosso objeto de estudo nesse capítulo é a realização de um rastreamento do
conceito de transferência na “primeira tópica” de Freud, acreditamos ser
importante poder apontar para o momento onde ele faz sua aparição inicial
, assinalando desde já que não se trata de realizar uma gênese do
conceito, nem tampouco de aceitar a tarefa de realizar um estudo que se fizesse
nos moldes de um desenvolvimento do conceito de transferência na obra de
Freud. A proposta está muito mais
próxima a uma tentativa de problematizar a questão da transferência em
importantes momentos da obra de Freud.
O primeiro deles, nós acreditamos, é justamente quando ele ainda não interage com sua obra e quando , a
partir do relato do caso Anna O., nos é possível não só entender o que faz
Breuer (ou não faz), onde sua prática encontra seus limites, bem como a crítica da qual parte
Freud para , em se distanciando da experiência de Breuer, fundar a psicanálise
e com ela , o conceito de transferência.
O caso Anna O. , nos interessa na medida em que , em se tratando de uma
experiência pré-analítica, torna-se palco para pensar-se, a posteriori, os
efeitos e implicações do que se pode chamar de transferência. Se Breuer não faz uma teoria da
transferência, por outro lado, seu relato deixa rastros que indicam que a
transferência alí se fez presente, mesmo que de forma embrionária. Nos interessará nesse momento, acompanhando
o texto de Breuer, realizar uma discussão inicial acerca da transferência.
Ao
descrever sua paciente, Breuer reconhece na jovem moça de vinte e um anos de
idade, alguém que dispunha de uma “notável inteligência”, dotes poéticos, e que
era capaz de imaginar as mais
diversas e bizarras fantasias.
Sabe-se pelo próprio Breuer que se tratava de uma bela moça e pode-se
ler nas entrelinhas uma curiosa observação: Anna O. , assim ele a decidiu
chamar, era algúem que “nunca se apaixonara”, e que por conta mesmo disso, poderia se verificar que “a noção
de sexualidade era surpreendentemente não desenvolvida nela”. O curioso em questão, é que poderá se
notar, a partir de uma leitura cuidadosa do caso, que tudo o que faz Anna O. ,
ao longo de sua relação com Breuer, é viver uma situação onde sua entrega e
total confiabilidade ao médico acabam por revelar uma situação de apaixonamento
intenso. Seu quadro histérico, a
sintomatologia em questão, farão com que Freud denuncie mais tarde , a cegueira
de Breuer quanto tudo a que dissessse respeito ao campo do sexual. A sexualidade de Anna O. estava na
superfície, espalmada e disfarçada através de suas horripilantes formações
sintomáticas.
Quanto
a seus sintomas, eles poderiam ser compreendidos como fazendo parte de um
quadro clássico de histeria da época onde eram frequentes paralisias e anestesias dos membros
superiores e inferiores, perturbações de visão, tosse nervosa, repugnância para
ingerir alimentos, dentre outras(nota mostrando onde Breuer fala dos sintomas,
pág.58,59). Além disso, Anna O.
por um considerável tempo não conseguia se expressar na língua alemã - sua
língua de origem-, falava apenas em inglês e com frequência experimentava
estados de “absence”, onde imperavam ausência da personalidade e estados de
confusão.
Esses
estados de “absensces”, bem entendido, eram situações onde se verificavam uma
espécie de divisão da consciência onde Breuer assinalava para a existência
concomitante de dois estados de consciência distintos que costumavam se
alternar, revelando, no caso de Anna O., hora uma atitude serena e comportada,
hora uma situação onde se verificava a emergência de um ataque histérico
propriamente dito.
A
teoria formulada por Breuer e Freud na ocasião, é a da existência de “estados
hipnóides”. Tais “estados” tinham
como característica peculiar o
fato de se constituírem como grupos isolados de representações demasiadamente
investidas capazes de alienarem-se enquanto associações do resto da
consciência, provocando uma dissociação psíquica constitucional. O ataque
histérico, seria a emergência de um estado hipnóide que se encontraria
completamente desconectado da consciência vigente do sujeito. Nas “comunicações preliminares”, Breuer
e Freud explicitam a relação direta entre os “estados hipnóides” e a estrutura
histérica: “...a divisão da consciência, que é tão marcante nos casos clássicos
conhecidos sob a forma de ‘double conscience’, acha-se presente em grau
rudimentar em toda histeria(...)”.(48)
Breuer,
cedo, pôde notar, ao lado dos estados de “absense”, uma inclinação da paciente
a realizar o que ele chamou de “teatro particular”. Com isso ele desde cedo pôde se interessar e apontar para uma capacidade
fantasística de Anna O.,
capacidade essa que fazia com que ela se entregasse à um exercício de “criar
historinhas” onde era capaz de viver
verdadeiros contos de fada. Breuer
se interessou por essas “historinhas”.
Mais que isso ele se deu conta de que elas tinham uma função no estado
psíquico da paciente.
Ter
se interessado pelos devaneios de Anna O., certamente fez de Breuer um médico
diferente. Ele percebeu que toda
vez que a paciente podia narrar, sob hipnose, suas alucinações, suas
construções fantasísticas, ela despertava da hipnose de forma aliviada. Quando à visitava à tarde, ele diz,
Anna já o aguardava sob um estado auto-hipnótico, onde esperava que o Dr.
Breuer pudesse reconhecer nas suas lembranças, todo um sofrimento e aflição que
ela experimentava durante suas “absenses” ao longo do dia. Comprovando a eficácia de sua intervenção,
Breuer escreve: “Era um contraste realmente notável: durante o dia, a paciente
irresponsável, perseguida por alucinações, e à noite a moça com a mente inteiramente lúcida.”(62)
.
Esse
trabalho, o de desencadear a narrativa de histórias (devaneios) a partir de um
estado de hipnose, realizava-se através de um exercício catártico onde a
paciente, ao falar, exprimia sensações as mais diversas como tremores de
horror, gritos, choros, etc. A
“talking cure”, ou “limpeza de chaminé”, denominações advindas da própria
paciente para o método catártico de Breuer, realizava o que era até então
inviável para ela: dar expressão verbal às alucinações e afetos que eram até então vividos unicamente sob a forma de estados de
“absense” .
Se
recorrermos ao texto “comunicações
preliminares”, teremos com clareza a explicitação metapsicológica do que se
passava no método catártico formulado por Breuer . A tese lançada então por Breuer e Freud é a de que a
etiologia da histeria e das neuroses traumáticas estaria diretamente
relacionada com a existência de causas desencadeadoras, consideradas traumas
psíquicos. Um trauma seria
ocasionado por qualquer experiência capaz de despertar afetos aflitivos, que,
devido à sua intensidade e qualidade, permaneceriam no psiquismo sem obterem descarga. Tal afeto traumático permaneceria no
psiquismo como um corpo estranho em atividade. A atividade em questão, seria a própria formação dos
sintomas histéricos.
Partindo
desse achado, a pesquisa de Breuer e Freud acabará por indicar o caminho da
dissolução do sintoma: ele desaparecerá quando, através do método catártico,
for possível trazer à tona com clareza as representações traumáticas e seus
respectivos estados afetivos. O
método catártico consistia em , sob estado de hipnose, induzir o paciente a
descrever as situações envolvidas na problemática dos sintomas histéricos, de maneira insistente até que os afetos
em questão fossem, transformados em palavras. O esssencial, é preciso frisar, é que houvesse a ab-reação
dos afetos implicados na situação traumática.
Assim,
é preciso dizer que o fato de Breuer ter se interessado pelo teatro particular
de Anna O., e com isso, ter , através do método catártico, viabilizado a
ab-reação dos afetos estrangulados, dando um destino às representações que
sustentavam toda a condição sintomática de Anna O., tudo isso fez com que ele
tivesse na economia psíquica de sua paciente um lugar específico que merece
nossa atenção. Podemos inverter
também a proposição e dizer que, por conta de um lugar específico que Breuer
passou a ocupar na economia psíquica de Anna O., por ele ter se oferecido como
possibilidade de ancoramento para uma fala que carecia de um destinatário , ele
estabeleceu uma espécie de situação que o diferenciou dos outros médicos que
dela tentaram tratar. Com isso,
estamos criando condições para lançar algumas considerações iniciais sobre a
transferência.
Desde
o início, Breuer estabeleceu com sua paciente uma relação de proximidade. Todo o aparente nonsense trazido pelos
ataques histéricos de Anna O., pareciam se esmerilhar diante da paciência de
Breuer. Mais que isso, Breuer se
investia de uma certa sapiência sobre os motivos sob os quais repousavam a
insatisfação da Srta. O. . Por exemplo, ele diz com todas as letras que sabia
que ela perdera sua capacidade de articulação verbal devido a algo que ele
(Breuer) teria dito e que provavelmente a teria aborrecido(60). Mesmo sem se dar conta, Breuer fazia
refinadas interpretações que tinham como gancho as nuanças da relação
terapêutica que alí se estabelecia.
As interpretações que tomavam a pessoa de Breuer como centro das
atrações, tornaram-se uma constante no tratamento e podemos afirmar que algo da
ordem do que se conheceu mais tarde como relação trasferencial já se insinuava
no caso Anna O. Em breve, no
desenrolar desse capítulo, estaremos tratando especificamente da idéia de
“relação transferencial “tal como ela se encontra desenvolvida na obra de
Freud.
Breuer
chega a ser exaustivo e parece mesmo utilizar-se disso como um triunfo: ele
mostra o tempo todo que Anna O. o
reconhecia como sendo o único capaz de realizar progressos em seu estado. Nas ocasiões mais dramáticas, quando o
sintoma parecia levar a uma espécie de desestruturação drástica, quando em seus
estados de “absense” a paciente
era obrigada a fazer um trabalho de “recognizing work” para poder identificar
cada pessoa que a ela se dirigia, quando até isso parecia ser uma tarefa da
ordem do impossível, era a Breuer quem ela reconhecia sem qualquer
dificuldade. Ele sempre estava lá,
sempre pronto a ser uma espécie de estofo onde o despenhadeiro ocasionado pelos
ataques histéricos ganhavam seu limite: “...eu era a única pessoa que ela
sempre reconhecia”, exalta um confiante Breuer.
Quando
sua condição sintomática a levava a uma situação desesperadora a ponto da
formação de um quadro anoréxico, quando Anna parecia que ía definhar, lá estava
o presente Breuer, o único capaz de fazer com que ela se alimentasse. Breuer conta que sua paciente fazia
pouca questão de prestigiar seus outros médicos. Ele era o único.
Em certa ocasião, quando teve que ausentar-se durante vários dias, ao
retornar encontrou sua paciente regredida em estado de “absenses”
alucinatórias, vendo figuras assombrosas tais como caveiras e esqueletos. À medida em que as limpezas de chaminé
prosseguiam, os laços entre os dois se tornavam cada vez mais acirrados. Para falar, só se fosse com
Breuer. Para saber se se tratava
de Breuer, a paciente chegava ao ato de apalpá-lo: “...ela jamais começava a
falar antes de haver confirmado plenamente a minha identidade, apalpando-me as
mãos com cuidado”.(65)
Todas
essas indicações, que se mostram presentes do começo ao fim do relato da
experiência de Breuer com Anna O., mostram que o ponto de motivação para que a “talking cure” se
realizasse, estava no fato de que Breuer se investiu e foi investido de um
lugar destacado na economia do processo terapêutico. Trata-se de uma angulação que se fez articular de tal
maneira que se tornou viável para Breuer reconhecer os sintomas de sua paciente
desde uma perspectiva subjetiva. Isto é, podemos afirmar que o que dá condições
para que o trabalho de ab-reação fosse realizado, é justamenteo fato de Breuer
ter viabilizado um endereçamento para a fala de sua paciente. Breuer se descobre como destinatário de
uma fala aparentemente desconexa e encarna com toda propriedade o lugar de
alguém que reconhece um sentido para o que era vivido até então como puro sintoma histérico Esse reconhecimento, impossível não
notar é o que faz Anna O. eleger Breuer como objeto de amor, um amor que
podemos hoje chamar de transferencial.
Sobre o amor transferencial, trataremos mais adiante, mostrando todo o
desenvolvimento que ele ganha a partir da obra freudiana.
O
caso Anna O. tem aí seu limite. Se
podemos falar em um sucesso
terapêutico de Breuer, podemos dizer que ele se encontra no alívio e remissão
temporária dos sintomas. Se Breuer
escuta Anna O., se ele se permite se fazer destinatário para uma fala
histérica, ele dá provas de que não sustenta essa posição. Se podemos dizer que Anna fala para
Breuer, isso vai até onde os sintomas não incluíam Breuer em suas representações. Todo o limite do caso em questão está no fato de Breuer não
dispor de uma teoria da sexualidade e do inconsciente, que lhe indicasse o
valor de todo endereçamento histérico: ele ganha seu entendimento a partir da lógica do desejo
inconsciente.
Sabe-se
através do próprio Freud(nota) que Breuer abandonou o caso de Anna O. por conta
do aparecimento de um sintoma impossível de ser por ele reconhecido e
sustentado. A Pseudociese de Anna
O., amor de transferência fecundado em acting -out histérico, foi para Breuer sua saída de cena. Ele suportou o método catártico. A transferência, não.
Ao
comentar o caso, vinte anos mais tarde, Freud retoma a questão, justamente pela via que nos interessa: ele
dirá que é impossível não reconhecer nos sintomas de Anna O., o caráter sexual
que envolvia representações como “cobra, enrijecimento e paralisia do
braço”. Breuer não teria sabido reconhecer
o caráter sexual dos sintomas. No entanto,
Freud reconhece que o relato da experiência de Breuer com Anna O., com toda sua
intensidade no que tange às questões vividas no que ele reconhece como um
“rapport sugestivo”, testemunhariam uma experiência já ordenada em termos de
uma situação transferencial.,
Assim, tratar-se-ía, segundo as palavras do próprio Freud de algo que serviria “como um perfeito
protótipo do que chamamos hoje de transferência”(21). Tal afirmação freudiana, reforça e aprova nosso intuito de
demonstrar que Breuer, ao conduzir
o tratamento de annaO., mesmo sem o saber, esteve lidando com questões próprias
ao campo da transferência.
Ainda,
ao justificar o limite da experiência de seu colega, Freud conclui que: “Breuer
deve ter descoberto por outros indícios a motivação sexual dessa transferência,
mas a natureza universal deste fenômeno lhe escapou, resultando daí que, como
se tivesse sido surpreendido por um ‘fato inconveniente’, ele tenha
interrompido qualquer investigação subsequente”.(21)
É
preciso afirmar, a partir da própria crítica que Freud dirige à Breuer, que ,
no que diz respeito ao problema da transferência, ela se fará apresentar sempre
como um “fato inconveniente”. Se a
gravidez de Anna O. tornou-se o ponto máximo de desespero de Breuer, se isso
impôs de uma vez por todas o limite entre o que pôde ser tratado por seu método
catártico, também para Freud a transferência, ao menos no início, será tomada
como um corpo estranho e indesejável.
Toda a diferença é que Freud, ao contrário de Breuer, não se recusará a aceitar
o desafio imposto pela transferência.
Ao contrário, sua demarche fará da transferência, um conceito
fundamental e constituinte do campo psicanalítico.
Ana O.
Ana O.
Josef Breuer
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