domingo, 23 de agosto de 2015

Transferência: no início, “uma falsa ligação”. Cap.1, Parte II

Transferência: no início, “uma falsa ligação”.  

No ano de 1894, Freud escreve um importante artigo denominado “As Neuropsicoses de Defesa”
13.  O que há de fundamental nesse texto é a hipótese que ele lançará acerca da etiologia da histeria.  Tal hipótese, o fará se distanciar de importantes pensadores acerca da histeria em sua época.  Está-se fazendo menção aqui à Pierre Janet e o próprio Joseph Breuer.  Podemos dizer  com toda certeza que, se por um lado,  o artigo em questão deixa Freud solitário na sua tentativa de entendimento e cura da histeria e , por outro lado,  ele o coloca mais perto de fundar o campo pertinente à psicanálise.
            Se nos dermos ao trabalho de acompanhar Freud em sua trajetória ao longo do artigo em questão, veremos que ele parte de uma apresentação sucinta acerca das posições teóricas sobre a histeria de até então.  Veremos que, tanto para Janet quanto para Breuer, a histeria será sempre um processo de divisão da consciência onde se pode verificar a emergência de organizações psíquicas diferenciadas  e independentes uma da outra.  Se para Janet, o que se dá é um processo de deficiência inata, onde o histérico é incapaz , por conta de sua própria constituição,  de realizar uma síntese do psiquismo, tratando-se portanto de uma hipótese degenerativa, para Breuer, como já tivemos a oportunidade de acompanhar, o problema se verificaria por conta do que ele chamou de “estados hipnóides”.  Nessa perspectiva, Breuer não pensa a divisão da consciência como degenerativa e inata, mas sim como secundária e adquirida, ocorrendo por conta da relação de independência que os “estados hipnóides” mantêm com o resto da consciência.
            Freud trará uma novidade.  Podemos dizer que essa novidade é decisiva e impõe obrigatoriamente uma concepção dinâmica e econômica do  processo histérico completamente distintas das propostas por Janet e Breuer.  Freud propõe, em oposição à ideia de “histeria hipnóide”, a ideia de “histeria de defesa”.  A novidade fica por conta de todas as implicações teóricas trazidas e articuladas pela noção de defesa.
            Ao propor a “histeria de defesa”, Freud trabalha com a hipótese de que o histérico seria assaltado por determinadas representações que se mostrariam incompatíveis com o modelo de sua vida representativa.  O que ocorreria é que, nessas situações, o eu do sujeito se veria diante de determinadas experiências, determinados afetos que trariam em si a qualidade de serem aflitivos, penosos e indesejáveis.  O que ocorre a partir de então, é um processo pelo qual o eu é levado a esquecer tais experiências aflitivas devido a sua incapacidade de suportá-las através do pensamento comum de sua consciência vigente.  O processo pelo qual o eu se esquiva das representações penosas é denominado por Freud de defesa.
            Em que consistiria em termos econômicos e dinâmicos esse processo de defesa?  Freud explica que o que se passa é que “o eu transforma essa representação poderosa numa representação fraca, retirando-lhe o afeto - a soma de excitação- do qual está carregada14.(56) Esse processo, bem entendido , faz com que a representação fraca não opere mais enquanto exigência ao psiquismo, tornando-o livre do peso aflitivo que ela impunha ao eu anteriormente.  No entanto, a quota de afeto antes vinculada à representação penosa acabará por vincular-se a outras representações. É o destino dessa quota de afeto que definirá o tipo de neurose em questão.
              Se a defesa é de cunho histérico, o que se dá é que essa quota de afeto liberada é transformada em inervações de ordem somática.  Eis aí a explicação para os sintomas histéricos. Trata-se sempre de conversões do afeto, antes ligado a representações aflitivas, em sintomas que terão como representação, os órgãos do próprio corpo.  Nesse ponto, Freud vai além de Janet e Breuer, dizendo que na histeria, o que impera é a capacidade para a conversão suscitada a partir de um conflito  entre o que é insuportável para o eu e o que  lhe é psiquicamente compatível.
            A partir da noção de defesa, a neurose obsessiva também ganha seu entendimento.  Quando o sujeito se vê diante de representações insuportáveis e quando a capacidade para a conversão inexiste, o eu se defende também enfraquecendo tais representações penosas, retirando-lhes a quota de afeto.  O que marca a escolha obsessiva é o fato de que o afeto não é convertido somaticamente mas sim deslocado de representação em representação, ficando sempre restrito à ordem psíquica.  As representações que o afeto deslocado investe, tornam-se, por esse processo, representações obsessivas.
            Mas a importante questão a se fazer , nesse ponto, é a seguinte: o que é preciso para que um grupo determinado de representações seja de caráter aflitivo para o eu?  Ou de outra maneira, é possível indagar : para que haja defesa no sentido neurótico, basta que o eu se sinta ameaçado?  O que Freud vai responder é que a defesa neurótica incide sempre, em última instância, sobre representações que sejam de cunho sexual.  A defesa é sempre uma defesa contra a ameaça do sexual.  Vejamos o que diz Freud a esse respeito quando analisa a defesa obsessiva:
            “Em todos os casos que analisei, era a vida sexual do sujeito que havia despertado um afeto aflitivo, precisamente da mesma natureza do ligado à sua obsessão.  Teoricamente não é impossível que esse afeto possa às vezes emergir em outras áreas; resta-me apenas relatar que, até o momento, não deparei com nenhuma outra origem.  Ademais é fácil verificar que é precisamente a vida sexual que traz em si as mais numerosas oportunidades para o surgimento de representações incompatíveis15.
            Com isso temos que a idéia de defesa é o que sustenta a divisão da consciência e é a verdadeira responsável pelas formações sintomáticas tanto histéricas quanto obsessivas.  O sujeito torna-se neurótico porque não suporta sua própria exigência sexual.  Toda a idéia sustentada por Freud é a de que a neurose é uma espécie de substituta  da vida sexual incompatível, ocupando o sujeito e livrando-o do duro fardo de ter que decidir sobre conflitos e exigências da ordem do sexual16.
           
            A descoberta da noção de defesa e por conseguinte a constatação da estreita relação entre neurose e sexualidade levaram , como já dissemos, Freud a distanciar-se de Janet e principalmente de Breuer.  Mesmo nos “Estudos sobre a histeria”17, escritos em conjunto com Breuer, no ano de 1895, Freud já mostra-se afastado dos próprios caminhos terapêuticos trilhados originalmente por Breuer.  No capítulo IV deste livro, intitulado “A psicoterapia da histeria” ele anuncia um novo método de tratamento e investigação das neuroses .  Essa superação se deu não só por dificuldades técnicas encontradas por Freud no manejo do método de Breuer, mas também pelas motivações teóricas acima demonstradas(a relação entre defesa, conflito e sexualidade) que lhe impunham  uma concepção dos sintomas neuróticos, e , por conseguinte, do psiquismo, totalmente novas. 
            No que diz respeito mais especificamente à técnica, o que se impunha a Freud como dificuldade era, em primeiro lugar, o fato de que nem todos os pacientes eram hipnotizáveis.  Por mais que fossem histéricos,  muitos não se submetiam à hipnose.  No entanto, Freud ainda precisava da hipnose para obter o que chamava de “ampliamento da consciência” a fim de chegar às lembranças patogênicas esquecidas.  Era necessário, portanto, que ele procurasse obter tal ampliação, mesmo que fosse através de outros recursos que não  se utilizassem da hipnose.
            O recurso que Freud passa a lançar mão é o da concentração.  Através de uma provocação insistente, a saber, a de que o paciente certamente se lembraria do material demandado, Freud passava a insistir com que o paciente fizesse um esforço e superasse as dificuldades que o deixavam alienado da lembrança patogênica.  Com o pedido de que se deitassem e fechassem os olhos  concentrando-se, Freud passou a ter bons resultados à revelia do método catártico de Breuer. Criava-se assim, um novo método, que ao invés de lançar mão da hipnose, buscava chegar até o material patológico através de um processo de investigação psíquica onde o paciente era levado a associar sempre em busca de conexões relacionadas a seu sintoma. Diz ele:
            “Verifiquei então que, sem nenhuma hipnose, surgiam novas lembranças que recuavam ainda mais no passado e que provavelmente se relacionavam com o nosso tema.  Experiências como essas fizeram-me pensar que seria de fato possível trazer à luz, por mera insistência, os grupos patogênicos de representações que, afinal de contas, por certo estariam presentes.”18(264)
            De imediato uma nova tarefa fez-se presente na operação empreendida por Freud.  O terapeuta , ao insistir em trazer à tona material psíquico desejado, encontrava contra a direção do seu trabalho, a imposição de forças psíquicas que resistiam ao apagamento da amnésia neurótica.  Freud se dava conta de que era preciso que o médico empreendesse todo um esforço no sentido de superar as resistências que eram erguidas contra suas expectativas.  Ora, conclui Freud:  se existem resistências que se opõe ao preenchimento das lacunas de amnésia, essas devem ser movidas pelas mesmas forças que outrora desempenharam um papel fundamental na formação do sintoma histérico e que impediu que a representação patológica tivesse tido acesso à consciência.
            Trata-se do nascimento do conceito de resistência.  A resistência se faz presente lá onde algo precisou operar enquanto recalcamento(defesa).  Ela denuncia a existência de uma impossibilidade de o sujeito ter acesso a certas representações específicas.
            No que diz respeito ao plano teórico, é preciso afirmar que o conceito de resistência nasce intimamente relacionado com a noção de defesa e recalque.    Já vimos como Freud constrói a noção de defesa a partir da ideia de que o eu não suporta certas representações de cunho  aflitivo.  Vimos também que estas representações são sempre de cunho sexual .  Nos “Estudos...”, Freud diz que a defesa faz com que a representação insuportável seja expelida da consciência através do recalcamento.19  No entanto, o fato dessas representações se encontrarem fora da consciência não implica que elas tenham deixado de existir.  Vimos no artigo sobre “As neuropsicoses de defesa” que tais representações se desprendem de seus afetos  e passam a ficar sem importância para a consciência. O que sustenta o argumento de Freud de que seu método de investigação é eficaz é justamente a hipótese de que é possível, através de um trabalho de associação, trazer à tona o material esquecido(enfraquecido) e reintegrá-lo a vida psíquica do sujeito.  Tudo o que é preciso para isso, é fazer com que a resistência à lembrança seja vencida.
            O trabalho terapêutico se vê assim modificado.  Para Freud,  o problema da resistência ganhará importância fundamental e a tarefa principal do médico passa a ser superá-la a cada instante de sua aparição.  É preciso seguir o fio da meada que deve conduzir às causas do sintoma e a cada vez que a narrativa do paciente emperrar, ou, a cada vez que seu discurso se mostrar reticente ao avanço proposto pelo tratamento, o terapeuta deve assinalar o momento de resistência e fazer com que o paciente se convença a abandonar sua posição resistente.
            A resistência se apresenta de várias formas.  Ela pode ser um “não querer dizer”, um “não querer saber”, uma recusa à associação  que pode ter como conseqüência até mesmo o silêncio por parte do paciente.  Quanto a isso , comenta Freud: “A persistente resistência do paciente é indicada pelo fato de que as ligações se interrompem, as soluções não aparecem e as imagens são recordadas de forma indistinta e incompleta.20”(274) É preciso fazer notar que a resistência é para Freud, antes de mais nada, o lugar onde a fala do paciente não encontra coerência. É precisamente quando lacunas se fazem presentes no discurso, quando a lógica do pensamento consciente falha que Freud vai circunscrever algo próprio à resistência.
            É importante reconhecer que o texto “A psicoterapia da histeria” é um trabalho eminentemente técnico.  Como tal, a preocupação de Freud se verifica em demonstrar o resultado de seus empreendimentos clínicos junto à histeria, explicitando seu método terapêutico. Vimos que Freud , ao passar do método catártico de Breuer para a criação de um método próprio , acabou por constituir o conceito de resistência como   fundamental para definir a posição que ocupa o terapeuta em sua prática:  como tentamos demonstrar, ele trabalha, principalmente, vencendo resistências.  Com isso, o texto em questão , podemos arriscar  dizer, constitui-se quase que como um tratado sobre a resistência. É em torno desse conceito que giram todas as questões pertinentes ao trato da histeria   e é nessa medida  que ele nos interessa como material de estudo em nossa dissertação.
            Nosso objeto de estudo nesse capítulo  é a transferência na primeira tópica de Freud.  Nesse texto, temos pela primeira vez a emergência da palavra “transferência” dentro da obra freudiana: ela aparece aqui como mais uma resistência que se impõe ao tratamento, um empecilho que deve ser vencido e entendido da mesma maneira que os outros sintomas.  Nesse momento, nosso interesse será acompanhar o pensamento de Freud, mostrando como ele concebe a transferência , como ele a define e como ela se relaciona com a resistência propriamente dita.
            Ao fim do texto, após explicar exaustivamente seu procedimento terapêutico e de insistir sobre a importância fundamental que ganha a resistência na tentativa de cura das neuroses, Freud anuncia três possibilidades de possíveis falhas no empreendimento de seu método.  São elas: a primeira , que não necessariamente significaria uma falha mas sim um limite, diz respeito à possibilidade de o material a ser elucidado ter-se esgotado.  Nesse caso, não haveria mais nada a ser lembrado.  A segunda possibilidade diria respeito ao surgimento de uma resistência que só poderia ser superada posteriormente, devendo aguardar um momento de amadurecimento  do tratamento.  Finalmente, a terceira possibilidade mostra que a relação médico-paciente surge como um obstáculo a ser enfrentado e superado, na medida em que impediria, por determinadas circunstâncias, o prosseguimento do tratamento .  Diz Freud: “Isso acontece quando a relação entre o paciente e o médico é perturbada e constitui o pior obstáculo com que podemos deparar.  No entanto podemos esperar encontrá-lo em qualquer análise relativamente séria21.
            Nesse ponto Freud marca com veemência a necessidade de o médico desempenhar, através de sua figura, um importante papel no processo de derrotar resistências. O médico deve ser habilidoso e cauteloso ao mesmo tempo.  Lembra que as pacientes mulheres podem ter inibições em falar de suas vidas sexuais e que caberia ao terapeuta uma atitude cordial para que o trabalho pudesse seguir seu curso.  No entanto, a possibilidade da relação ser perturbada por desavenças entre médico e paciente levam Freud a formular Três formas de presentificação do obstáculo em questão:
            A primeira, talvez a menos séria, seja quando acontecer de ocorrerem desavenças pessoais. Queixas contra o médico no sentido de acusá-lo de ser negligente com o próprio paciente, é um exemplo citado por Freud.  A solução, dirá Freud, é uma boa conversa onde as coisas seriam revistas e as arestas devidamente acertadas.
            A segunda forma de obstáculo, é quando o paciente se queixa do fato de estar se tornando dependente do médico.  Freud dirá que isso é uma vicissitude própria ao tratamento e que a resistência se apresentará na forma de novos sintomas que estejam em articulação com a queixa em questão.
            A terceira forma de obstáculo, finalmente, é a que nos interessa mais especificamente.  Freud diz com todas as letras que o problema se dá quando o paciente transfere seu complexo representativo, suas aflições afetivas para a figura do médico.  Ele dirá que se trata de algo usual e frequente nas análises.  “a transferência para o médico se dá por meio de uma falsa ligação22.
            Essa “falsa ligação”, é fruto de um deslizamento da representação recalcada que se vê obrigada a investir a figura do médico a fim de receber existência na consciência. Trata-se da aparição de um desejo que se presentifica, através do que Freud chama de “compulsão à associar”,  graças à  existência de um médico que está afetivamente envolvido na vida anímica da paciente e que por isso se presta a ser uma “mesalliance”, uma espécie de elo equivocado no circuito desejante do paciente.
            Para Freud, a transferência, enquanto “falsa ligação” deve ser compreendida como um novo sintoma que “deve ser tratado da mesma forma que os sintomas antigos”.  A tarefa do terapeuta, dirá Freud, é “tornar o obstáculo consciente para o paciente23 
            A transferência se afirma aqui como resistência ao tratamento .  Como toda resistência, nós pudemos acompanhar, seu destino é ser vencida e desvendada.  Caberá ao analista esclarecer esse mal entendido e recuperar para o bojo do tratamento, as representações adequadas, ou seja , aquelas que verdadeiramente se adequariam aos afetos em questão.        
            Nesse sentido, podemos afirmar que a primeira concepção que Freud formula em torno da transferência limita-se a entendê-la enquanto um acontecimento indesejado, uma espécie de imprevisto que obrigatoriamente estaria desviando o tratamento de seu bom caminho.  Se o objetivo do médico era chegar às representações patógenas, à uma espécie de núcleo causal do sintoma, a transferência aparece como um  “convidado”  inoportuno , uma espécie de penetra de festa que , ao roubar a cena, estaria certamente perturbando a busca do material desejado.  A transferência é uma espécie de mal, dirá Freud, um mal que se revelará inexorável e ao terapeuta caberá a função de o quanto antes estabelecer a correta direção das associações.  O destino da transferência, aqui, como o de toda a resistência, é o de ser extirpada tal como se fosse um “corpo estranho”.  

            Interessante observar que , como tentamos mostrar, Freud está atento às questões que envolvem a relação terapeuta-paciente.  Como salientamos, ele se preocupa em descrever algumas vicissitudes dessa relação como altamente perigosas para o bom desenrolar da tarefa terapêutica.  O que nos interessa dizer, é que , por mais que estivesse cônscio acerca de muitos obstáculos que a relação poderia trazer ao tratamento, Freud , no entanto, não entendia como pertinentes à transferência o conjunto dessas relações.  Não, para Freud, a transferência nesse momento, restringia-se a ser tão somente a maneira pela qual a representação da figura do médico, equivocadamente, assumia o lugar de uma outra representação que não estaria sendo dita.  Futuramente, nós veremos, o que era apenas uma designação (transferência como falsa-ligação), tornou-se paulatinamente um conceito fundamental dentro da obra freudiana.  É nosso interesse mostrar que a concepção acerca da transferência tornou-se cada vez mais complexa, passando a possuir, de acordo com o desenvolvimento do pensamento de Freud, uma série de “facetas” da qual a resistência sempre foi uma delas.

Sigmund Freud


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