Quando
escreve o artigo “A criança Mal acolhida e Sua pulsão de Morte”, Ferenczi dá um
passo importante na compreensão da questão da pulsão de morte enquanto pulsão
com potência destrutiva e sua relação com o processo analítico. Trata-se de
pensar os efeitos impeditivos de tal pulsão ao longo dos desdobramentos de uma
análise. Em última instância, o que se depreende é que o analista tem que saber
se posicionar de tal forma que possa acolher de maneira satisfatória a
incidência do próprio excesso pulsional. Vimos no capítulo 3 o quanto a técnica
ativa foi uma técnica preocupada em tratar essa questão, O que muda desse
momento para o passado da técnica ativa, é que para Ferenczi será preciso
repensar o acolhimento da pulsão de morte em termos de uma prática que não
incida nas mesmas dificuldades trazidas pela técnica ativa.
Ferenczi
trabalha em torno de uma hipótese: as crianças que não foram desejadas por seus
pais, que não receberam amor suficiente, ou, em outras palavras, que não foram
acolhidas confortavelmente na infância são crianças que apresentavam uma forte
vontade de não e que tem uma potência autodestrutiva bastante desenvolvida.
A
análise de casos graves envolvendo problemas corporais sérios como dificuldades
circulatórias, asma e anorexia levaram Ferenczi a postular a hipótese de que o
que imperaria nessas situações seriam tendências inconscientes de
autodestruição. Teria-se nesses episódios a positivação de uma tendência
suicida dos efeitos destrutivos da pulsão de morte. Para Ferenczi esses
pacientes foram crianças não bem-vindas na família, tornando-se por conta
disso, crianças carentes de afeição e compreensão materna: “Todos os indícios
confirmam que essas crianças registram bem os sinais conscientes e
inconscientes de aversão ou de impaciência da mãe, e que sua vontade de viver
viu-se então quebrada”.
Essa
situação teria disposto essas crianças a serem constantemente invadidas por
desejos de morte e de terem suas vidas conduzidas de maneira bastante
dificultada. Incapazes para o trabalho, para o esforço prolongado, esses
pacientes são testemunhas vivas do efeito destrutivo trazido pela falta de amor
e apelo à vida. A compulsão à repetição aqui se presentificaria através dos
insistentes e recorrentes desarranjos psíquicos ao longo da vida cotidiana.
Pensar as questões trazidas por esses tipos de
pacientes fez Ferenczi pensar na relação que se estabeleceu entre
pais-educadores e filhos. Para Ferenczi, é preciso que a análise possa dar a
oportunidade de se chegar a uma resolução mais satisfatória desses eventos. Se
a forte incidência autodestrutiva da pulsão de morte se faz
presente nesses pacientes é porque quando da época de suas educações, aos pais
dessas crianças faltou agirem com tato.
As
crianças “mal acolhidas”, esses pacientes difíceis são na realidade pacientes
traumatizados segundo denominação do próprio Ferenczi. Seu desenvolvimento se
deu de maneira insatisfatória onde predominaram a coação e a falta de
amabilidade por conta dos adultos. Importante observar que a clínica de
Ferenczi se constituirá cada vez mais por esse tipo de pacientes. Pacientes
traumatizados que necessariamente obrigaram Ferenczi a realizar novas
articulações no que tange o manejo da transferência.
Vejamos
Teresa Pinheiro caracteriza com precisão esses pacientes traumatizados: “Dentro dessa mesma concepção de trauma
resta ainda os casos das crianças não desejadas que não possuem, desde o início
de suas vidas, um objeto capaz de preencher as condições de mediador. Nestes
casos não temos um acontecimento (ou mais de um) traumático, mas a própria
chegada ao mundo. Sem o apoio de um mediador, essas crianças são privadas de um
filtro ou de um intermediário que as defenda do mundo externo”.
Assim,
não é difícil de imaginar o que propõe Ferenczi na condução analítica de tais
casos. Ao analista cabe estabelecer intervenções que caminhem na direção de
preencher o vazio deixado pela falta de apelo à vida vivido na infância. Nesses
casos não caberiam injunções e proibições, ou seja, não caberia a imposição de
árduas tarefas, mas sim uma conduta que fizesse com que esses pacientes fossem
reenviados às suas situações mais dramáticas da infância. Uma vez de volta a
essas relações primitivas, esses pacientes teriam a chance de reinventá-las já
que a transferência, segundo Ferenczi, nessas situações serviria para
instaurar, desta vez, uma relação de confiança e amabilidade onde o analista se
serviria de seu tato para reassegurar ao paciente de que ele pode vir a ter uma
vida mais satisfatória.
Aqui,
o analista acolhe aquelas crianças que foram desprezadas. Nada de ordens, nada
exigências e nada de superego. Os pacientes devem ser levados por uma atmosfera
de compreensão e tato capaz de restabelecer a convicção de que a vida, apesar
de tudo, vale a pena ser vivida. Ferenczi estabelece com esses pacientes uma
espécie de análise infantil que tanta instaurar pela primeira vez uma infância
que ficou perdida no passado: “Deve-se
deixar, durante algum tempo, o paciente agir como uma criança, o que não deixa
de assemelhar-se à preparação para o tratamento, que Anna Freud considera
necessária numa análise de criança. Por esse Laissez-Faire permite-se a tais
pacientes desfrutar pela primeira vez a irresponsabilidade da infância, o que
equivale a introduzir impulsos positivos de vida e razões para se continuar
existindo. Somente mais tarde é que se pode abordar, com prudência, essas
exigências de frustrações, que por outro lado, caracterizam as nossas análises.
Mas essa análise, como toda e qualquer outra análise, também deve terminar pela
eliminação das resistências que inevitavelmente desperta, e pela adaptação à
realidade rica em frustrações, mas completada também devemo-lo esperar pela
faculdade de desfrutar a felicidade onde realmente foi oferecida”.
O
que nos parece importante salientar aqui é a emergência da noção de “laissez-faire”
proposta por Ferenczi como sendo o caminho próprio para lidar com pacientes “mal
acolhidos”. Esse “laissez-faire”, nós já o tínhamos abordado quando do período
final da técnica ativa. Aqui, nesse presente momento, o que se passa é que
Ferenczi dispõe de uma certa teoria que valida a própria utilização do
princípio em questão. Pode-se ver Ferenczi anunciar uma espécie de análise
preparatória, precedente à analise regida sob o princípio de frustração, onde o
analista realizaria uma espécie de ligação entre o passado mal vivido e o
presente real. “Laissez faire” é deixar com que o paciente se sinta livre, se
deixe levar por seus pensamentos e suas emoções sem que seja cobrado ou
contestado. Segundo esse princípio, ao se deixar que o paciente dê o livre
curso a seus afetos, o analista adquire assim, uma plataforma consistente para
realizar o trabalho de análise propriamente dito, livrando-se finalmente dos
efeitos autodestrutivos da pulsão de morte.
Daqui
para frente, Ferenczi lançará a hipótese de que as análises deverão ser conduzidas sobre os princípios de relaxamento (através do “laissez-faire”)
e frustração. Nosso próximo passo será investigar a noção de relaxamento e com
ela todo o vigor do que ficou caracterizado como “período da neocartase”.
Carlos Mario Alvarez, Psicanalista. |
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