domingo, 7 de agosto de 2016

O “Laissez Faire” Cap.4, Parte III

   Quando escreve o artigo “A criança Mal acolhida e Sua pulsão de Morte”, Ferenczi dá um passo importante na compreensão da questão da pulsão de morte enquanto pulsão com potência destrutiva e sua relação com o processo analítico. Trata-se de pensar os efeitos impeditivos de tal pulsão ao longo dos desdobramentos de uma análise. Em última instância, o que se depreende é que o analista tem que saber se posicionar de tal forma que possa acolher de maneira satisfatória a incidência do próprio excesso pulsional. Vimos no capítulo 3 o quanto a técnica ativa foi uma técnica preocupada em tratar essa questão, O que muda desse momento para o passado da técnica ativa, é que para Ferenczi será preciso repensar o acolhimento da pulsão de morte em termos de uma prática que não incida nas mesmas dificuldades trazidas pela técnica ativa.

   Ferenczi trabalha em torno de uma hipótese: as crianças que não foram desejadas por seus pais, que não receberam amor suficiente, ou, em outras palavras, que não foram acolhidas confortavelmente na infância são crianças que apresentavam uma forte vontade de não e que tem uma potência autodestrutiva bastante desenvolvida.

   A análise de casos graves envolvendo problemas corporais sérios como dificuldades circulatórias, asma e anorexia levaram Ferenczi a postular a hipótese de que o que imperaria nessas situações seriam tendências inconscientes de autodestruição. Teria-se nesses episódios a positivação de uma tendência suicida dos efeitos destrutivos da pulsão de morte. Para Ferenczi esses pacientes foram crianças não bem-vindas na família, tornando-se por conta disso, crianças carentes de afeição e compreensão materna: “Todos os indícios confirmam que essas crianças registram bem os sinais conscientes e inconscientes de aversão ou de impaciência da mãe, e que sua vontade de viver viu-se então quebrada”.

   Essa situação teria disposto essas crianças a serem constantemente invadidas por desejos de morte e de terem suas vidas conduzidas de maneira bastante dificultada. Incapazes para o trabalho, para o esforço prolongado, esses pacientes são testemunhas vivas do efeito destrutivo trazido pela falta de amor e apelo à vida. A compulsão à repetição aqui se presentificaria através dos insistentes e recorrentes desarranjos psíquicos ao longo da vida cotidiana.

   Pensar as questões trazidas por esses tipos de pacientes fez Ferenczi pensar na relação que se estabeleceu entre pais-educadores e filhos. Para Ferenczi, é preciso que a análise possa dar a oportunidade de se chegar a uma resolução mais satisfatória desses eventos. Se a forte incidência autodestrutiva da pulsão de morte se faz presente nesses pacientes é porque quando da época de suas educações, aos pais dessas crianças faltou agirem com tato.

   As crianças “mal acolhidas”, esses pacientes difíceis são na realidade pacientes traumatizados segundo denominação do próprio Ferenczi. Seu desenvolvimento se deu de maneira insatisfatória onde predominaram a coação e a falta de amabilidade por conta dos adultos. Importante observar que a clínica de Ferenczi se constituirá cada vez mais por esse tipo de pacientes. Pacientes traumatizados que necessariamente obrigaram Ferenczi a realizar novas articulações no que tange o manejo da transferência.

   Vejamos Teresa Pinheiro caracteriza com precisão esses pacientes traumatizados: “Dentro dessa mesma concepção de trauma resta ainda os casos das crianças não desejadas que não possuem, desde o início de suas vidas, um objeto capaz de preencher as condições de mediador. Nestes casos não temos um acontecimento (ou mais de um) traumático, mas a própria chegada ao mundo. Sem o apoio de um mediador, essas crianças são privadas de um filtro ou de um intermediário que as defenda do mundo externo”.

   Assim, não é difícil de imaginar o que propõe Ferenczi na condução analítica de tais casos. Ao analista cabe estabelecer intervenções que caminhem na direção de preencher o vazio deixado pela falta de apelo à vida vivido na infância. Nesses casos não caberiam injunções e proibições, ou seja, não caberia a imposição de árduas tarefas, mas sim uma conduta que fizesse com que esses pacientes fossem reenviados às suas situações mais dramáticas da infância. Uma vez de volta a essas relações primitivas, esses pacientes teriam a chance de reinventá-las já que a transferência, segundo Ferenczi, nessas situações serviria para instaurar, desta vez, uma relação de confiança e amabilidade onde o analista se serviria de seu tato para reassegurar ao paciente de que ele pode vir a ter uma vida mais satisfatória.

   Aqui, o analista acolhe aquelas crianças que foram desprezadas. Nada de ordens, nada exigências e nada de superego. Os pacientes devem ser levados por uma atmosfera de compreensão e tato capaz de restabelecer a convicção de que a vida, apesar de tudo, vale a pena ser vivida. Ferenczi estabelece com esses pacientes uma espécie de análise infantil que tanta instaurar pela primeira vez uma infância que ficou perdida no passado: “Deve-se deixar, durante algum tempo, o paciente agir como uma criança, o que não deixa de assemelhar-se à preparação para o tratamento, que Anna Freud considera necessária numa análise de criança. Por esse Laissez-Faire permite-se a tais pacientes desfrutar pela primeira vez a irresponsabilidade da infância, o que equivale a introduzir impulsos positivos de vida e razões para se continuar existindo. Somente mais tarde é que se pode abordar, com prudência, essas exigências de frustrações, que por outro lado, caracterizam as nossas análises. Mas essa análise, como toda e qualquer outra análise, também deve terminar pela eliminação das resistências que inevitavelmente desperta, e pela adaptação à realidade rica em frustrações, mas completada também devemo-lo esperar pela faculdade de desfrutar a felicidade onde realmente foi oferecida”.

   O que nos parece importante salientar aqui é a emergência da noção de “laissez-faire” proposta por Ferenczi como sendo o caminho próprio para lidar com pacientes “mal acolhidos”. Esse “laissez-faire”, nós já o tínhamos abordado quando do período final da técnica ativa. Aqui, nesse presente momento, o que se passa é que Ferenczi dispõe de uma certa teoria que valida a própria utilização do princípio em questão. Pode-se ver Ferenczi anunciar uma espécie de análise preparatória, precedente à analise regida sob o princípio de frustração, onde o analista realizaria uma espécie de ligação entre o passado mal vivido e o presente real. “Laissez faire” é deixar com que o paciente se sinta livre, se deixe levar por seus pensamentos e suas emoções sem que seja cobrado ou contestado. Segundo esse princípio, ao se deixar que o paciente dê o livre curso a seus afetos, o analista adquire assim, uma plataforma consistente para realizar o trabalho de análise propriamente dito, livrando-se finalmente dos efeitos autodestrutivos da pulsão de morte.

   Daqui para frente, Ferenczi lançará a hipótese de que as análises deverão ser  conduzidas sobre os princípios de relaxamento (através do “laissez-faire”) e frustração. Nosso próximo passo será investigar a noção de relaxamento e com ela todo o vigor do que ficou caracterizado como “período da neocartase”.


Carlos Mario Alvarez, Psicanalista.



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