terça-feira, 5 de abril de 2016

Transferência e Construção Cap.3, Parte X

    Vimos que Ferenczi provoca as fantasias e atualiza o circuito do desejo através da  transferência - onde o analista, como acompanhamos, assume um papel privilegiado na realização das fantasias do paciente.  No entanto, o trabalho analítico não encontra seu fim antes que se possa, segundo Ferenczi, realizar-se um trabalho de (re)construção das ligações psíquicas.
O que se passa é que tanto o ato do analista quanto a experiência de transferência, servem, na economia do tratamento, para que o analisando possa ter (re)construída a sua história libidinal.
A questão da construção em psicanálise assume um papel fundamental a partir de um certo momento.  Sabemos que Freud, em pelo menos dois de seus importantes casos clínicos publicados, lançou mão de construções que serviram como intervenções capazes de elucidar material analítico até então não conhecido.  Basta que recorramos ao caso do homem dos ratos, para ver que, ali, Freud reconhece toda a gênese de uma neurose obsessiva através da reconstrução da sexualidade infantil do homem dos ratos, onde o lugar que ocupava o pai do paciente em sua economia psíquica, revelava o quanto sua posição  era a de alguém que se encontrava identificado ao desejo paterno.  A propósito da construção, Freud a estabelece a partir de fragmentos ditos em análise que remontariam à infância remota do paciente.  É a partir de uma questão ligada à masturbação e a consequente articulação de uma fantasia de punição que Freud constrói para seu analisando, toda sua história de identificação libidinal.
Com o caso do homem dos lobos, não é diferente.  Freud é levado, a partir de um sonho crucial, a construir com precisão de detalhes toda uma existência de uma cena primária, capaz de ter sido responsável por toda a vida neurótica do paciente.  Novamente aqui, a construção advém da boca do analista a partir de um trabalho que organiza os fragmentos ditos em análise.
Em 1937, portanto em um período consideravelmente tardio, Freud dedica um ensaio para tratar da questão da construção. “Construções em Análise”, um dos seus últimos textos, filho temporão da técnica analítica em Freud, traz posições extremamente fecundas para o entendimento da função da construção em análise.
Aqui, na presente dissertação, procuraremos levantar questões que nos ajudem a cotejar com o trabalho de Ferenczi no decorrer de sua técnica ativa, mais principalmente, no que toca à questão das fantasias provocadas.
O primeiro importante ponto a ser marcado é a própria definição que Freud dá aos objetivos do trabalho analítico.  Vejamos o que ele diz a esse respeito: “o trabalho da análise visa a induzir o paciente a abandonar os recalques (empregando a palavra no sentido mais amplo) próprios a seu primitivo desenvolvimento e a substituí-los por reações de um tipo que corresponda a uma condição psiquicamente madura. Com esse intuito em vista, ele deve ser levado a recordar certas experiências e os impulsos afetivos por elas invocados, as quais presentemente ele esqueceu”.
Para que o objetivo da análise possa ser vencido, ou seja, para que o recalque dê lugar a representações até então mantidas inconscientes, o trabalho de análise deve levar o analisando a poder recordar experiências ligadas à sua vida infantil e integra-las a impulsos afetivos que estejam em consonância com tais lembranças. Isto, como foi transcrito acima, está posto com todas as letras por Freud.  A análise, aproximadamente quarenta anos depois de seu início, continuava a ter, por objetivo último, a rememoração.
 Acontece que, se isso é verdade, por outro lado, uma série de resignificações dos conceitos e o desenvolvimento da teoria freudiana como um todo, não nos deixam pensar que Freud fala, nesse texto em questão, de ‘recalque’, ‘rememoração’, ‘inconsciente’, dentre outros, da mesma forma que os concebia há quarenta, vinte ou dez anos antes.  Certamente que não nos será possível mostrar, na presente dissertação,  todas as nuanças que levaram a reconsiderações tanto dos conceitos quanto da própria prática analítica.  Nos interessará, no entanto, percorrer o conceito de construção, tentando perceber sua função dentro do processo analítico, assim como pensá-lo na perspectiva do texto ferencziano.
De início, dois pontos merecem ser notados no que diz respeito a essa definição transcrita acima acerca dos objetivos de uma análise: o primeiro é que Freud trata aqui o recalcado no que ele designa por “sentido mais amplo”.  Com isso, estamos distante de uma ideia de recalque da primeira tópica que organizava um inconsciente que se constituía como um sistema fechado de representações.  A segunda observação, que vem em função da primeira, diz respeito à importância decisiva que Freud dá aos impulsos afetivos ligados ao recalque.
Nesse sentido, se acompanhamos o texto mais adiante, veremos que Freud se refere o tempo todo com muito interesse ao que chama de produção de “derivados dos impulsos afetivos recalcados”.  Junto dos sonhos e dos atos falhos, interessa ao analista estar atento ao que se verifica produzir enquanto “impulso  afetivo recalcado”.  Nessa direção, Freud chama atenção também para o insistente trabalho da repetição, a qual ele identifica como “repetição dos afetos pertencentes ao material recalcado”.  Fundamental de ser notado, é que essa repetição de afetos se verifica sob a forma de ações que incidem fora e dentro da situação analítica.
Assim, esse importante texto vai nos indicar exatamente qual o lugar da transferência na direção da cura: ela vai poder fazer com que incida na situação analítica, o trabalho da repetição, que, em última instância visa inscrever-se na cadeia de sentidos do sujeito.  Acompanhemos Freud por ele mesmo: “Nossa experiência demonstrou que a relação de transferência que se estabelece com o analista, é especificamente calculada para favorecer o retorno dessas conexões emocionais”.
O ponto em que Freud quer chegar, tomando por referência a função da transferência, é exatamente o de responder a uma questão: qual a tarefa do analista?
Respondendo.  O analista, ele não pode recordar absolutamente nada da história de seu analisando porque ele não a viveu.  Por outro lado, Freud constata que o analisando não pode se recordar de tudo o que lhe seria esperado para o andamento de sua análise.  É nesse ponto mesmo que Freud indica a tarefa do analista: o analista, ali onde o analisando não se lembra, ali onde ele não tem acesso, o analista constrói.  Constrói a partir da transferência, uma vez que ela é o campo onde as repetições incidem exigindo presentificação.
Se, por um lado, o que interessa a Freud, como vimos , é a recordação do paciente acerca de sua história libidinal, por outro mostramos que todo o trabalho sobre construções em análise mostra que isso nem sempre é possível.  Aparentemente teríamos um impasse: como atingir a cura analítica se aquilo que haveria de mais essencial, a saber, que o paciente se recordasse, não pode ser atingido por completo.  A resposta de Freud é: o analista constrói.  A partir disso, uma outra questão: O que  torna válida a construção do analista uma vez que ela parte de um outro que não aquele que enuncia?
A resposta de Freud é aparentemente simples: o que valida a construção é o sentimento de convicção alcançado pela experiência analítica.  Vejamos o que diz o texto: “O caminho que parte da construção do analista deveria terminar na recordação do paciente, mas nem sempre ele conduz tão longe. Com bastante frequência não conseguimos fazer o paciente recordar o que foi recalcado. Em vez disso, se a análise é corretamente efetuada, produzimos nele uma convicção segura da verdade da construção, a qual alcança o mesmo resultado terapêutico”
Com isso, temos que Freud abandona uma expectativa de rememoração, ou pelo menos admite níveis distintos para essa rememoração em um processo de análise.  O mais importante é, pois, a convicção que se torna possível através do curso da análise.  Essa convicção, nós a sabemos, é possibilitada pelo grau de verdade da experiência proporcionado pela atualização dos afetos na transferência.
Se voltarmos nosso interesse novamente a Ferenczi, veremos que ele já em sua técnica ativa (1919-1926) experimentava uma prática que tinha como finalidade, menos uma rememoração inconsciente do que uma criação inconsciente.  Podemos dizer criação porque a tônica esteve sempre na perspectiva de se construir em análise a partir do que a situação de transferência leva a se experimentar.  Ferenczi abandonou, a partir de sua técnica ativa, todo o interesse em privilegiar a rememoração.  Para ele, a atualização, no sentido da incidência da repetição freudiana seria o que daria chances ao processo analítico de promover modificações internas no sujeito.  Para tal, o caminho passava a ser a possibilidade de se obter um grau de convicção capaz de levar o analisando a reconhecer, em seu percurso, as nuanças de sua subjetividade.
Assim, provoca-se onde a princípio só o analista poderia provocar.  Provoca-se porque a transferência terá a chance de catalisar para si, a efervescência de algo que nunca viria à tona porque não teria recursos (fantasias).  A (re)construção funciona no sentido de uma tomada da palavra pelo analisando, que vinda do analista num primeiro momento, se fará articular com os atos falhos , sonhos e reminiscências  do paciente.   A construção de um inconsciente, assinado à dois, leva a crer que, em Ferenczi, ao menos desde a técnica ativa, o inconsciente é uma espécie de transcendência possibilitado pela transferência.



Carlos Mario Alvarez, Psicanalista.




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