Vimos
que Ferenczi provoca as fantasias e atualiza o circuito do desejo através
da transferência - onde o analista, como
acompanhamos, assume um papel privilegiado na realização das fantasias do
paciente. No entanto, o trabalho
analítico não encontra seu fim antes que se possa, segundo Ferenczi,
realizar-se um trabalho de (re)construção das ligações psíquicas.
O
que se passa é que tanto o ato do analista quanto a experiência de
transferência, servem, na economia do tratamento, para que o analisando possa
ter (re)construída a sua história libidinal.
A
questão da construção em psicanálise assume um papel fundamental a partir de um
certo momento. Sabemos que Freud, em
pelo menos dois de seus importantes casos clínicos publicados, lançou mão de
construções que serviram como intervenções capazes de elucidar material analítico
até então não conhecido. Basta que
recorramos ao caso do homem dos ratos, para ver que, ali, Freud reconhece toda
a gênese de uma neurose obsessiva através da reconstrução da sexualidade
infantil do homem dos ratos, onde o lugar que ocupava o pai do paciente em sua economia
psíquica, revelava o quanto sua posição
era a de alguém que se encontrava identificado ao desejo paterno. A propósito da construção, Freud a estabelece
a partir de fragmentos ditos em análise que remontariam à infância remota do
paciente. É a partir de uma questão
ligada à masturbação e a consequente articulação de uma fantasia de punição que
Freud constrói para seu analisando, toda sua história de identificação
libidinal.
Com
o caso do homem dos lobos, não é diferente.
Freud é levado, a partir de um sonho crucial, a construir com precisão
de detalhes toda uma existência de uma cena primária, capaz de ter sido
responsável por toda a vida neurótica do paciente. Novamente aqui, a construção advém da boca do
analista a partir de um trabalho que organiza os fragmentos ditos em análise.
Em
1937, portanto em um período consideravelmente tardio, Freud dedica um ensaio
para tratar da questão da construção. “Construções em Análise”, um dos seus
últimos textos, filho temporão da técnica analítica em Freud, traz posições
extremamente fecundas para o entendimento da função da construção em análise.
Aqui,
na presente dissertação, procuraremos levantar questões que nos ajudem a
cotejar com o trabalho de Ferenczi no decorrer de sua técnica ativa, mais
principalmente, no que toca à questão das fantasias provocadas.
O
primeiro importante ponto a ser marcado é a própria definição que Freud dá aos
objetivos do trabalho analítico. Vejamos
o que ele diz a esse respeito: “o trabalho da análise visa a induzir o paciente
a abandonar os recalques (empregando a palavra no sentido mais amplo) próprios
a seu primitivo desenvolvimento e a substituí-los por reações de um tipo que
corresponda a uma condição psiquicamente madura. Com esse intuito em vista, ele
deve ser levado a recordar certas experiências e os impulsos afetivos por elas
invocados, as quais presentemente ele esqueceu”.
Para
que o objetivo da análise possa ser vencido, ou seja, para que o recalque dê
lugar a representações até então mantidas inconscientes, o trabalho de análise
deve levar o analisando a poder recordar experiências ligadas à sua vida
infantil e integra-las a impulsos afetivos que estejam em consonância com tais
lembranças. Isto, como foi transcrito acima, está posto com todas as letras por
Freud. A análise, aproximadamente
quarenta anos depois de seu início, continuava a ter, por objetivo último, a
rememoração.
Acontece que, se isso é verdade, por outro
lado, uma série de resignificações dos conceitos e o desenvolvimento da teoria
freudiana como um todo, não nos deixam pensar que Freud fala, nesse texto em questão,
de ‘recalque’, ‘rememoração’, ‘inconsciente’, dentre outros, da mesma forma que
os concebia há quarenta, vinte ou dez anos antes. Certamente que não nos será possível mostrar,
na presente dissertação, todas as nuanças
que levaram a reconsiderações tanto dos conceitos quanto da própria prática
analítica. Nos interessará, no entanto,
percorrer o conceito de construção, tentando perceber sua função dentro do
processo analítico, assim como pensá-lo na perspectiva do texto ferencziano.
De
início, dois pontos merecem ser notados no que diz respeito a essa definição
transcrita acima acerca dos objetivos de uma análise: o primeiro é que Freud
trata aqui o recalcado no que ele designa por “sentido mais amplo”. Com isso, estamos distante de uma ideia de
recalque da primeira tópica que organizava um inconsciente que se constituía
como um sistema fechado de representações.
A segunda observação, que vem em função da primeira, diz respeito à
importância decisiva que Freud dá aos impulsos afetivos ligados ao recalque.
Nesse
sentido, se acompanhamos o texto mais adiante, veremos que Freud se refere o
tempo todo com muito interesse ao que chama de produção de “derivados dos
impulsos afetivos recalcados”. Junto dos
sonhos e dos atos falhos, interessa ao analista estar atento ao que se verifica
produzir enquanto “impulso afetivo
recalcado”. Nessa direção, Freud chama
atenção também para o insistente trabalho da repetição, a qual ele identifica
como “repetição dos afetos pertencentes ao material recalcado”. Fundamental de ser notado, é que essa
repetição de afetos se verifica sob a forma de ações que incidem fora e dentro
da situação analítica.
Assim,
esse importante texto vai nos indicar exatamente qual o lugar da transferência
na direção da cura: ela vai poder fazer com que incida na situação analítica, o
trabalho da repetição, que, em última instância visa inscrever-se na cadeia de
sentidos do sujeito. Acompanhemos Freud
por ele mesmo: “Nossa experiência demonstrou que a relação de transferência que
se estabelece com o analista, é especificamente calculada para favorecer o
retorno dessas conexões emocionais”.
O
ponto em que Freud quer chegar, tomando por referência a função da
transferência, é exatamente o de responder a uma questão: qual a tarefa do
analista?
Respondendo. O analista, ele não pode recordar
absolutamente nada da história de seu analisando porque ele não a viveu. Por outro lado, Freud constata que o
analisando não pode se recordar de tudo o que lhe seria esperado para o
andamento de sua análise. É nesse ponto
mesmo que Freud indica a tarefa do analista: o analista, ali onde o analisando
não se lembra, ali onde ele não tem acesso, o analista constrói. Constrói a partir da transferência, uma vez
que ela é o campo onde as repetições incidem exigindo presentificação.
Se,
por um lado, o que interessa a Freud, como vimos , é a recordação do paciente
acerca de sua história libidinal, por outro mostramos que todo o trabalho sobre
construções em análise mostra que isso nem sempre é possível. Aparentemente teríamos um impasse: como
atingir a cura analítica se aquilo que haveria de mais essencial, a saber, que
o paciente se recordasse, não pode ser atingido por completo. A resposta de Freud é: o analista
constrói. A partir disso, uma outra
questão: O que torna válida a construção
do analista uma vez que ela parte de um outro que não aquele que enuncia?
A
resposta de Freud é aparentemente simples: o que valida a construção é o
sentimento de convicção alcançado pela experiência analítica. Vejamos o que diz o texto: “O caminho que
parte da construção do analista deveria terminar na recordação do paciente, mas
nem sempre ele conduz tão longe. Com bastante frequência não conseguimos fazer
o paciente recordar o que foi recalcado. Em vez disso, se a análise é
corretamente efetuada, produzimos nele uma convicção segura da verdade da
construção, a qual alcança o mesmo resultado terapêutico”
Com
isso, temos que Freud abandona uma expectativa de rememoração, ou pelo menos
admite níveis distintos para essa rememoração em um processo de análise. O mais importante é, pois, a convicção que se
torna possível através do curso da análise.
Essa convicção, nós a sabemos, é possibilitada pelo grau de verdade da
experiência proporcionado pela atualização dos afetos na transferência.
Se
voltarmos nosso interesse novamente a Ferenczi, veremos que ele já em sua
técnica ativa (1919-1926) experimentava uma prática que tinha como finalidade,
menos uma rememoração inconsciente do que uma criação inconsciente. Podemos dizer criação porque a tônica esteve
sempre na perspectiva de se construir em análise a partir do que a situação de
transferência leva a se experimentar.
Ferenczi abandonou, a partir de sua técnica ativa, todo o interesse em
privilegiar a rememoração. Para ele, a
atualização, no sentido da incidência da repetição freudiana seria o que daria
chances ao processo analítico de promover modificações internas no
sujeito. Para tal, o caminho passava a
ser a possibilidade de se obter um grau de convicção capaz de levar o analisando
a reconhecer, em seu percurso, as nuanças de sua subjetividade.
Assim,
provoca-se onde a princípio só o analista poderia provocar. Provoca-se porque a transferência terá a
chance de catalisar para si, a efervescência de algo que nunca viria à tona
porque não teria recursos (fantasias). A
(re)construção funciona no sentido de uma tomada da palavra pelo analisando,
que vinda do analista num primeiro momento, se fará articular com os atos
falhos , sonhos e reminiscências do
paciente. A construção de um
inconsciente, assinado à dois, leva a crer que, em Ferenczi, ao menos desde a
técnica ativa, o inconsciente é uma espécie de transcendência possibilitado
pela transferência.
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