Transitoriedade e Transferência
No ano de 1901, Freud escreve seu
"Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana”38. Esse cuidadoso
trabalho ganhava sua importância na medida em que para Freud, tornava-se
necessário explorar por todas as vias possíveis o sentido de sua descoberta: o
inconsciente. Praticamente na mesma época em que publicava “A Interpretação dos
Sonhos", Freud se dava ao trabalho de colher intermináveis relatos de
experiências vividas por ele e por seus colaboradores, capaz de elucidar todo o
sentido de sua hipótese, a saber, a que tinha no determinismo psíquico (moções
inconscientes), a motivação para todos os atos que, até então pareciam não ter
qualquer motivação senão a do equívoco por ele próprio.
“Esquecimento de
nomes próprios“, “esquecimentos de palavras estrangeiras", “lapsos da
fala", “lapsos de leitura", “atos falhos”, “atos sintomáticos"
dentre outros, encontravam-se na categoria de serem , segundo Freud, pequenas
psicopatologias, pequenos deslizes presentes no cotidiano de cada um, capazes de
trazerem em seu bojo um mal estar na medida em que algo da ordem da intenção
consciente se via falhado, dando lugar a uma estranheza ocasionada pela
emergência de um material substituto.
Aquele que enunciava algo do qual
absolutamente não esperava – pensemos numa troca de intenções - encontrava-se
em maus lençóis, pois o mal estar era muito mais por algo que deixava-se captar
no ar como uma intenção outra do que propriamente pelo falo de se ter
equivocado impunemente.
Nessa medida, a hipótese de Freud é de que a
força de sustentação para todos esses atos aparentemente equivocados estaria
sendo garantido pelo que fosse da ordem do desejo inconsciente. Os atos falhos
seriam, dessa forma, derivados do inconsciente, ou seja, atos que foram
deformados devido ao trabalho da censura de maneira a funcionarem como uma
formação de compromisso entre o sistema inconsciente e o consciente. Dessa
forma, as psicopatologias da vida cotidiana, não são atos desprovidos de intencionalidade
ou sentido, mas ao contrário, representam, em um determinado plano, desejos
inconscientes que foram inadmissíveis à consciência.
Assim,
os atos falhos, os sonhos e os sintomas são todos maneiras pela qual o
recalcado atualiza-se na consciência. Logo no primeiro capitulo, dedicado ao
“esquecimento de nomes próprios”, Freud opera uma explicação que esclarece o
processo pelo qual se dá o esquecimento do nome. Mais que isso , Freud faz
alusão à existência de leis que garantem a escolha daquilo que se apresenta
como equivoco: "Trata-se dos casos
em que o nome não só é esquecido, como também erroneamente lembrado. Em nosso
afã de recuperar o nome perdido, outros - nomes substitutos - nos vêm à
consciência reconhecemos de imediato que são incorretos, mas eles insistem em
retornar e impõem com grande persistência. O processo que deveria levar à
reprodução do nome perdido foi, por assim dizer, deslocado, e por isso conduziu
a um substituto incorreto. Minha hipótese é que esse deslocamento não esta entregue
a uma escolha psíquica arbitrária, mas segue vias previsíveis que obedecem as
leis"39.
Bem entendido,
as leis a que faz menção Freud, são as leis que regem o sistema primário, a
saber, a condensação e o deslocamento, e toda análise que se fizer das chamadas
psicopatologias da vida cotidiana, levarão ao elucidamento de uma intenção
inconsciente que se faz presente em qualquer situação.
O
psiquismo, num franco processo de defesa, estaria sempre produzindo substitutos
que dessem conta de, ao menos parcialmente, representar aquilo que se mostra
ameaçador ao eu do sujeito. É preciso fazer notar que Freud sempre lança mão da
ideia de deslocamento, para mostrar que esse é o mecanismo pelo qual se opera
toda a capacidade defensiva do aparelho psíquico. É assim que Freud entende
também os processos de esquecimento de certas intenções, que por serem muito
ameaçadoras ao sistema consciente, acabam dando lugar ao esquecimento de outras
intenções que menos ameaçadoras, ainda assim mantém vínculo com o material inconsciente:
“De qualquer modo, depõe em favor da
existência e do poder dessa tendência defensiva o fato de podemos atribuir a
ela a origem de processos como os de nossos exemplos de esquecimento. Como
vimos, muitas coisas são esquecidas por si mesmas; quando isso não é possível,
a tendência defensiva desloca seu alvo e produz ao menos o esquecimento de
alguma outra coisa, algo menos importante que tenha estabelecido um vínculo
associativo com aquilo que é realmente chocante".40
Se
para Freud, ao longo de todo o trabalho em questão, trata-se de mostrar como o
pensamento corrente consciente é assaltado frequentemente por atos que lhe
imprimem uma situação notadamente equivocada, ou seja, denunciar a existência
de atos e intenções falhas que trazem em si a realização de desejos
inconscientes, para Ferenczi, em “Sintomas Transitórios no Decorrer de uma
Psicanálise”41, também o interesse é falar de atos sintomáticos que
interrompem a cadeia normal dos pensamentos, mas com notável diferença:
Ferenczi dá ênfase aos atos que irrompem na situação de análise e que trazem a
mesma sensação de surpresa e a mesma possibilidade de interpretação oferecida
pelos atos falhos trabalhados por Freud.
Para
Ferenczi, é como se fosse possível identificar os atos sintomáticos da vida cotidiana,
dentro da própria situação de análise. “É
frequente ver nos pacientes histéricos o trabalho analítico ser bruscamente
interrompido pelo surgimento inopinado de um sintoma sensorial ou motor”42.
O que se deve fazer notar aqui são principalmente dois aspectos: 1) os
sintomas de que fala Ferenczi são sintomas que surgem por ocorrência da própria
análise e, portanto são criações do próprio processo analítico. Da mesma forma
que o analista os vê sendo criados como efeito da análise, ele os vê sendo
desfeitos a partir de intervenções analíticas. Por terem esse caráter de serem passageiros,
isto é, aparecem e desaparecem durante o próprio processo de análise, Ferenczi
dá a eles o valor de serem “transitórios”. 2) Os sintomas “transitórios"
diferente dos atos falhos, não pertencem exclusivamente ao universo da
linguagem verbal significante (chiste, esquecimento e trocas de nomes), mas têm
uma incidência que Ferenczi classifica de orgânica, ainda que para Ferenczi, “se tentarmos descobrir sua significação,
constataremos que o sintoma orgânico é a expressão simbólica do mundo afetivo
ou intelectual inconsciente".43
Renato
Mezan, ao comentar a função transferencial dos sintomas “transitórios” chega a realizar uma comparação destes com os atos sintomáticos trabalhados por Freud em
“Psicopatologia da Vida Cotidiana" para
mostrar como para Ferenczi, os sintomas “transitórios” têm um valor de criação atual provocada e viabilizada
pela transferência. Freud, ao contrário, veria
nos atos sintomáticos, a existência de uma verdade que remontaria a todo o passado recalcado. Diz Mezan:
“Enquanto Freud via os atos sintomáticos
como produções do inconsciente determinadas pela história pregressa do
paciente, Ferenczi vai além e se interroga sobre o papel causativo que a
própria situação analítica, galvanizada pela transferência, poderia ter sobre
tais manifestações”.44
O
próprio Ferenczi alerta de que não se trata da mesma questão que trata Freud acerca dos atos sintomáticos. Isto
porque Freud é capaz de construir,
através da análise desses atos, verdadeiras histórias bem articuladas e
complexas capazes de remeterem a vários níveis de significações junto à
história do sujeito. Para Ferenczi, diferente, a única significação que estaria em jogo seria a significação
transferencial. Os sintomas “transitórios"
não remontariam ao passado mas ao presente da sessão, ao atual trazido
pelo movimento analítico que trabalha incidindo por sobre a massa de afetos
do sujeito.
Nessa
perspectiva, escreve Ferenczi:
“Essas conversões passageiras também se
observam no plano motor, se bem que mais raramente. Não estou pensando aqui nos
atos sintomáticos na acepção de Freud em Psicopatologia da Vida Cotidiana' ,
que são atividades complexas, bem coordenadas, mas nos espasmos musculares isolados,
às vezes dolorosos, ou então nas falhas musculares que lembram as paralisias”.
45
Os
sintomas transitórios são criações da transferência. Se pegarmos um dos exemplos de Ferenczi ao longo de
seu artigo, teremos a chance de perceber
claramente que o sintoma se forma a partir de uma resposta que se dá (em forma de sintoma) à uma
intervenção do analista. Uma paciente vive
em análise uma de suas fantasias recalcadas infantis declarando-se amorosamente ao analista. Situação
franca de amor de transferência que naturalmente
mobiliza o analista a tentar instaurar associações que não levem à concretização de qualquer ato de
amor. A recusa do analista em oferecer-se como objeto de amor faz com que a
paciente responda com a formação de um sintoma
transitório. Sua língua ganha uma espécie de anestesia e sua próxima declaração é afirmar a seguinte
impressão: "É como se minha língua tivesse sido escaldada.”47
Para Ferenczi, o que se deu foi que a partir de uma situação onde a transferência veiculou o surgimento de fantasias
infantis eróticas e o analista pôde negar-se a realiza-las,
a língua serviu de ponte possível para representar toda a decepção da
paciente e vergonha imbuídas de uma intensa carga afetiva que não tinha como
ser vivida de outra maneira.
A compreensão de
Ferenczi é a de que o sintoma transitório surge para aplacar um certo excesso
afetivo que aflorou provocado pela própria vivência proporcionada na atualidade da transferência. “A
escolha da língua como lugar do aparecimento do sintoma também estava aqui
sobredeterminado por diversos fatores, cuja análise me deu acesso às camadas
profundas dos complexos inconscientes”.47
Num
outro exemplo, Ferenczi traz à tona situações de transferência que provocam no
paciente o desejo de agredir o analista. Como isso lhe é inviável, a solução que surge
é o advento de um sintoma transitório capaz de simbolizar algo que ele gostaria
de realizar. Assim Ferenczi diz que o paciente apresenta sensações de dores em
algumas partes de seu corpo, parte essas, onde, na verdade, gostaria de atingir
o próprio analista. "Tinha a
intenção de me agredir; a sensação de um golpe na cabeça representava o desejo
de espancar, uma dor no coração revelava a ideia de apunhalar".48
Com
a perspectiva dos sintomas "transitórios”, Ferenczi torna-se paulatinamente
um analista que se interessa por aquilo que está além do conteúdo das
associações livres. Diferente dos demais analistas de sua época, Ferenczi se
interessa pelas formações simbólicas que o corpo expressa no período relativo
às sessões de análise. Nesse sentido, podemos dizer que Ferenczi não ficava
exclusivamente na expectativa do que deveria vir a ser dito pelo discurso do
paciente, mas que entendia como mensagens dirigidas à ele as formações
sintomáticas transitórias que se valiam de expressões corporais para se
manifestarem. Assim, Ferenczi escutava também as dores de dente de seus
pacientes (esperando que trouxessem associações além da queixa real), escutava
as dores de cabeça que os acometiam durante as sessões e se interessava com
bastante intensidade pelas expressões de cada paciente seu ao longo das
sessões. Um exemplo típico disso se encontra testemunhado num artigo minúsculo
de Ferenczi dedicado a fazer uma observação sobre a maneira de alguns pacientes
deitarem-se no divã. O artigo, denominado "Um Sintoma Transitório: a Posição
do Paciente Durante o Tratamento”49 revela que para Ferenczi, a
escuta analítica deveria funcionar além dos limites do dito. Transcreveremos o
artigo na íntegra: “Em dois casos,
pacientes masculinos denunciaram suas fantasias homossexuais passivas da
seguinte maneira: durante a sessão, em vez de serem estendidos de costas ou de
lado, puseram-se bruscamente de barriga pra baixo”.50
Renato
Mezan faz uso da ideia de auto-simbólico para explicar o advento desses
sintomas “transitórios". Para o autor, toda a vez que a situação de
análise provoca um excesso de excitação, o sujeito se defende auto-simbolicamente,
criando sintomas ligados a seu próprio corpo capaz de simbolizarem o conflito
vivido em transferência. Ao explicar o advento dos sintomas transitórios ele
diz: “O que ocorreu foi, segundo Ferenczi
uma simbolização hic e nunc, cujo sentido envolve fantasias inconscientes
ativadas pela análise e de um do ou de outro absorvidas pela transferência”.51
Segundo
Ferenczi, o surgimento desses sintomas “transitórios" se daria como uma
espécie de um último recurso contra certas tomadas de consciência propiciadas
pelo trabalho de análise. Quanto mais à análise caminhasse para a elucidação de
complexos inconscientes, quanto mais a transferência pudesse atualizar
conflitos afetivos até então recalcados, mais se verificaria o surgimento
desses sintomas "transitórios” que tinham como característica evitar o
advento da palavra “rechaçando a tensão
afetiva para a esfera sensorial.”52
O
que nos parece fundamental de ser observado é que esses sintomas transitórios
apontam para a fina percepção de Ferenczi de que a experiência de transferência
é , em última instância , uma experiência capaz de ser criativa. Os sintomas
“transitórios” atestam para o potencial da transferência de criar sintomas
capazes de se oferecerem como rico material para a intervenção do analista.
Para Ferenczi, quando um sintoma “transitório" surgia, era sinal de que a
transferência havia tomado as rédeas do processo analítico e de que portanto
aquele sintoma ali criado deveria ser uma mensagem endereçada diretamente ao
analista, que, com a possibilidade de um ato interpretativo poderia rapidamente
reverter o sintoma em construções capazes de funcionarem analiticamente.
Assim,
a certeza trazida pelos sintomas “transitórios" é a certeza de que o analista
está no caminho certo. Mais que isso, é a certeza de que a análise sendo capaz
de criar chances de articulação para a fala do sujeito. Um sintoma
“transitório" se faz erguer porque ele é a última tentativa do psiquismo
de se defender de algo que não pode ser dito. Tentativa de defesa esse que com
certeza fracassará, pois é o sucesso da transferência que está em jogo. Se todo
sinto “transitório” é efeito de análise e produzido enquanto mensagem para o
analista, isto significa que dependerá do próprio manejo da transferência,
fazer com que o que é “transitório” possa dar lugar a algo que tenha efeito
interpretativo capaz de trazer introjeções capazes de serem efetivas para o
sujeito no sentido de sua cura analítica.
Por
fim, vejamos o que conclui o próprio Ferenczi acerca da função os sintomas
transitórios: “Das observações de
formação de sintomas transitórios aqui agrupadas, proponho-me a extrair a
seguinte hipótese: tanto nas grandes neuroses como nessas neuroses em ‘miniatura’,
o sintoma só aparece se o psiquismo tiver ameaçado, por uma causa exterior ou
interior, pelo perigo do estabelecimento de um vínculo associativo entre os fragmentos
dos complexos recalcados e a consciência, ou seja, de uma tomada de consciência
que perturbaria o equilíbrio assegurado por um recalcamento anterior.”53
Sándor Ferenczi |