Transferências como “veículos do desejo
inconsciente”
Se voltarmos nossa atenção para o capítulo VII
de “ A interpretação dos sonhos”24de Freud, lugar onde ele
estabelece sua metapsicologia acerca dos processos oníricos e onde , por
conseguinte, discorre sobre a formulação da hipótese de um aparelho psíquico,
encontraremos a utilização da expressão “transferência(s)” como estando necessariamente vinculada com
processos que ocorrem no interior desse mesmo aparelho psíquico.
Afirmamos de antemão que a
transferência adquire , nesse momento, um novo sentido dentro do pensamento
freudiano . Nossa intenção, a partir de
agora, é elucidar o estatuto que ganha a transferência dentro de “A
interpretação dos sonhos” e a partir de então realizar as articulações
necessárias que permitam situar esse
momento em questão por relação à
constituição do próprio conceito de transferência dentro da obra freudiana.
Para que isso seja feito, torna-se
necessário que se possa situar algumas questões que estão diretamente
relacionadas com a utilização do termo “transferência(s)”. Nesse sentido, nos interessará trabalhar
principalmente o conceito de desejo, mostrando sua articulação e inserção na
teoria dos sonhos, assim como será importante apresentar a hipótese freudiana acerca do aparelho
psíquico , esperando dessa forma, mostrar como se acha inserida a questão da
transferência dentro da perspectiva de “A interpretação dos sonhos”.
Ao tomar-se “A interpretação dos sonhos” de Freud ao
longo de seus sete capítulos, percorrendo-se todo o caminho que o leva a dar aos sonhos um novo recorte
epistemológico, fundando o que hoje se chama campo psicanalítico, pode-se
admitir que se há uma hipótese que passa a sustentar todo seu trabalho, ela é
evidenciada a partir da postulação de que todo sonho é a realização de um desejo(inconsciente) .
Nessa perspectiva, o que se chama de desejo deixa de ser uma noção vaga
ou mesmo popular para ganhar dentro da psicanálise freudiana o estatuto de um
conceito. Conceito fundamental, é
preciso dizer, e com uma especificidade própria que lhe dá a condição de
existir articulado a outros conceitos e, portanto, fundando o próprio campo
psicanalítico.
Pensar o desejo dentro de “A interpretação dos sonhos”, enquanto
conceito que marca toda a perspectiva do que se pode chamar de a primeira
tópica freudiana, necessariamente nos leva a interrogar a respeito do que foi a
criação de um sistema inconsciente por oposição a um sistema pré-consciente\
consciente e por conseguinte, a tentar , minimamente , compreender os
mecanismos básicos que sustentam a dinâmica de funcionamento do aparelho
psíquico.
Assim, nos interessará agora,
apreender um pouco do que Freud estabeleceu a partir de sua concepção do
aparelho psíquico apresentada principalmente nas sessões (a), (b), (c) e (e) do
capítulo VII de “A interpretação dos sonhos”.
Após empreendermos essa breve tarefa, acompanharemos Freud em sua
formulação específica acerca do desejo, mostrando seu caráter fundamental no
processo de causação dos sonhos . Nesse
ponto , estaremos aptos a evidenciar a estreita relação que se estabelece entre
o movimento de desejo (tomando os sonhos como modelo) e a própria idéia de
transferência tal qual ela é concebida , nesse momento, por Freud.
A “primeira tópica” freudiana
apresenta um modelo de aparelho psíquico que se encontra dividido em dois
grandes sistemas: o sistema inconsciente (Ics) e o sistema Pré-consciente\
consciente(Pcs\Cs). De início é preciso
afirmar, junto com Freud que, essa topografia, não diz respeito a uma concepção
física ou anatômica do psiquismo. Ao contrário, tal disposição diz respeito à
uma hipótese topográfica que se sustenta a partir de hipóteses e inferências
tiradas principalmente da observação clínica lato-senso( sintomas histéricos,
lapsos de linguagem, sonhos).
Vejamos como Freud introduz ele
mesmo a sua topografia psíquica:
“ Por conseguinte, retrataremos o aparelho psíquico como um instrumento
composto a cujos componentes damos o nome de ‘instâncias’ ou (em prol de
clareza maior) ‘sistemas’. Pode-se
prever, em seguida, que esses sistemas talvez mantenham entre si uma relação
espacial constante, do mesmo modo que os vários sistemas de lentes de um
telescópio se dispõe uns atrás dos outros
A rigor , não há necessidade da hipótese que os sistemas psíquicos se
disponham numa ordem espacial. Basta que
uma ordem fixa fosse estabelecida pelo fato de, num determinado processo
psíquico, a excitação atravessar os sistemas numa dada seqüência temporal”.25
Para Freud, portanto, trata-se menos
de uma espacialidade física a ser constatada antagonicamente do que de uma
temporalidade quando se trata de evidenciar as mais variadas vicissitudes que
sofrem os representantes psíquicos. A
temporalidade em questão diz respeito às próprias transformações que sofrem
representações e afetos na dinâmica interior do psiquismo.
Assim , o sistema inconsciente é
definido como o lugar próprio das representações recalcadas, lugar onde se
verifica a existência de investimentos que têm como característica uma
mobilidade própria à uma concepção de energia livre , onde a partir de então as
representações são capazes de se organizar desde a lógica das condensações e dos deslocamentos. Regido pelo processo primário, o sistema
inconsciente não conhece a contradição entre os interesses de suas
representações e também não funciona a partir da lógica causa-efeito.
Por hora, nos é suficiente afirmar que o sistema inconsciente, em última
instância, é o lugar de articulação do desejo e que será próprio do desejo exigir
constante representação na consciência.
O inconsciente, Freud o dirá, é incognoscível e só se pode afirmar sua
existência através da verificação de seus efeitos que se fazem notar no sistema
Pré-consciente\consciente.
Esse sistema
Pré-consciente\consciente, por oposição ao sistema inconsciente é o lugar onde
se verifica toda a lógica própria ao que Freud chamou de processo secundário
(energia ligada) . Esse sistema, bem
entendido, é capaz de dar qualidade às representações, através de suas ligações
com as organizações afetivas, podendo também torná-las conscientes. O sistema Pré-consciente\consciente é uma
espécie de “palco” onde se apresentam os efeitos advindos do outro
sistema. Isso porque o inconsciente só
se faz conhecer através do que Freud chamou de “produções do
inconsciente”. Nesse caso, está-se
falando dos sintomas neuróticos, dos lapsos de linguagem, dos sonhos e dos
chistes. As produções do inconsciente devem ser entendidas como formações de
compromisso entre a intensidade energética própria ao movimento desejante e a
possibilidade de representação oferecida pelo sistema
pré-consciente\consciente. Em breve
estaremos em condições de mostrar que a transferência será , nesse momento,
concebida exatamente como um dispositivo que veicula o processo de formação de
compromisso. Para que isso seja
possível, é importante que passemos a compreender o sentido do movimento
desejante próprio ao sistema inconsciente.
Assim, passaremos a acompanhar Freud em sua tentativa de definição do
desejo. A relação do desejo com a lógica
da formação dos sonhos nos servirá ,
aqui, de modelo.
Na sessão (c) do capítulo VII , Freud constata
que “o inconsciente nada tem a oferecer
durante o sono além da força propulsora
para a realização de um desejo”26 Se pudermos nesse momento
acompanhar a preocupação que se faz para Freud, vamos nos deparar com a tarefa
de esclarecer a natureza psíquica dos desejos, recorrendo a uma reflexão a
respeito da hipótese que trata da origem do aparelho psíquico.
Segundo Freud, o aparelho psíquico
teria atingido sua maturidade( ou seja, o aparelho psíquico constituído em dois
sistemas tal como já o definimos acima) após passar por um período de
aperfeiçoamento. Acompanhando seu
pensamento, temos que, de início, tal aparelho funcionava nos moldes de um arco
reflexo, este com a intenção de manter-se livre de estímulos tanto quanto isto
fosse possível. Assim, qualquer
excitação que incidisse sobre o psiquismo deveria fazer-se descarregar
imediatamente através de sua extremidade motora. Com o passar do tempo, são as exigências do
mundo externo que aumentam e tornam-se paulatinamente mais complexas, exigindo
que o aparelho se complexifique também a fim de continuar compatível com sua
função principal, a saber, a de manter o nível de tensão interna o mais baixo
possível.
Freud avança em suas discussões ao
chamar a atenção para o movimento intenso que imprimem ao psíquico as
exigências internas. Associadas ao somático, essas exigências requerem do
aparelho psíquico o dispêndio de uma força constante capaz de responder às exigências
de “modificação interna”. Aqui, o já clássico modelo da fome, leva Freud a
postular que o bebê só se vê saciado ao obter uma “vivência de satisfação” ,
que advinda do mundo externo, põe fim ao estímulo interno. Em termos de
experiência psíquica, essa vivência de satisfação faz com que se inscreva um
traço mnêmico que, associado à percepção
de satisfação , será a partir de então sempre re-investido quando num próximo
momento a experiência de necessidade voltar a fazer exigências. Dessa forma, o
aparelho psíquico lançará sempre mão do que Freud chama de moção psíquica para
restabelecer a situação de satisfação original.
Acompanhemos Freud, no momento em
que define com precisão o conceito de desejo em “A interpretação dos sonhos”: “
uma moção dessa espécie é o que chamamos
de desejo; o reaparecimento da percepção é a realização do desejo, e o caminho
mais curto para essa realização é a via
que conduz diretamente da excitação produzida pelo desejo para um completo
investimento da percepção”.27
Nos interessará, nesse momento,
avançar ainda mais na especificidade do conceito de desejo em “A interpretação
dos sonhos” , buscando compreendê-lo cada vez mais em sua estreita ligação com
os sonhos. Veremos que é a partir dessa
relação - desejo\ formação onírica - que
Freud situará a ideia da transferência.
Logo no início da sessão(c),
dedicada à realização de desejos , Freud se faz colocar a seguinte indagação: “
de onde se originam os desejos que se
realizam nos sonhos?” 28 A partir daí ele vai estabelecer quatro
possíveis fontes de origens para o
desejo. A primeira possibilidade, Freud a identifica nas situações em que o
sujeito ao ser acometido por desejos e expectativas durante a vida de vigília,
não pode realiza-las e se vê retomando-as em formas de sonho durante a vida
onírica. Nesses casos, tratam-se de
desejos próprios ao pré-consciente, que retornam nos sonhos, sem mesmo estarem
distorcidos, na perspectiva de serem finalmente realizados. Aqui, podemos incluir também os sonhos das
crianças, que, não tendo ainda desejos
recalcados, sonharão sempre com desejos próprios ao pré-consciente.
A segunda possibilidade que Freud vai indicar como possível fonte de
origem para o desejo, é quando conteúdos representacionais da vida de vigília
não podem ser aceitos pelo sujeito e são
por conta disso suprimidos da consciência.
Nesses casos, os desejos suprimidos são obrigados a recuar do sistema
pré-consciente para o sistema inconsciente, ali passando a associarem-se com
moções inconscientes. Trata-se aqui, do
modelo de ação do recalque.
A terceira possibilidade para as
fontes de origem do desejo nos sonhos é situada exclusivamente no sistema
inconsciente. Nesse caso o desejo nada
tem em comum com a vida de vigília e obedece exclusivamente às leis que operam
o sistema inconsciente. (Como já fizemos
menção, trata-se mais especificamente dos mecanismos de deslocamento e
condensação). Essa possibilidade, que
indicará a função do movimento desejante na formação dos sonhos, nos
interessará mais especificamente quando se tratar de situar o emprego do termo
“transferência(s)”.
Uma quarta e última localização para
as fontes de origem do desejo estaria situada nas experiências somáticas. A necessidade de urinar ou mesmo uma sede
repentina poderiam levar o sujeito a sonhar com as satisfações desejadas e
assim poder manter-se dormindo.
A
questão fundamental que vai se
fazer colocar para Freud é a de saber se essas quatro fontes de origem do
desejo nos sonhos teriam, em igual importância, a capacidade de provocar um
sonho. A resposta, em forma de uma
negativa, é decisiva. Os sonhos podem, é
bem verdade, ter motivações oriundas de desejos não realizados durante a vida
de vigília, serem provocados por desejos suprimidos do pré-consciente, ou mesmo
serem instigados por necessidades fisiológicas.
Mas, o que afirma Freud com exatidão é que, nesses casos, esses desejos
são apenas motivadores que contribuem para o estabelecimento dos sonhos. Freud é enfático e claro ao dizer que o sonho
não é viável se não tiver sustentação a partir de um desejo próprio ao sistema
inconsciente.
Passemos a palavra ao próprio Freud:
“é minha suposição que um desejo
consciente só consegue tornar-se instigador do sonho quando logra despertar um
desejo inconsciente do mesmo teor e dele obter reforço”29. E ainda prossegue Freud, salientando que tudo
se passa num processo de transferências
de intensidades onde o inconsciente se organiza e faz entrada no
pré-consciente\consciente através do que à pouco referíamos como “produções do inconsciente” Acrescenta Freud: “ considero que esses desejos inconscientes estão sempre em estado de
alerta, prontos a qualquer momento para buscar o meio de se expressarem quando
surge a oportunidade de se aliarem a uma moção do consciente e transferirem sua grande intensidade
para a intensidade menor desta última”30.
Portanto é no momento em que Freud
situa o desejo inconsciente enquanto única fonte possível para provocar a
formação de um sonho que iremos encontrar a postulação de que é justamente a
transferência que vai viabilizar a “transação”
responsável pela formação
onírica. A transferência é o que dá a condição para que o desejo inconsciente
faça sua aparição no sistema pré-consciente\consciente. O movimento desejante, que como vimos, busca
sempre representar-se na consciência, é levado a buscar vínculos com
representações do sistema pré-consciente\consciente a fim do obter condições
para atingir sua meta. Para tal, o que
se opera, através do que chamamos de formação de compromisso, é uma
transferência de intensidades. As
intensidades das moções inconscientes são transferidas para representações que
fazem parte da consciência. Com isso, o
desejo inconsciente é capaz de se fazer representar de maneira que possa burlar
a censura que lhe impede naturalmente acesso à consciência. Através de representações conscientes que
mantenham relações de semelhança, proximidade e similitude com as
representações do desejo inconsciente, a transferência dessas intensidades (do
inconsciente para o pré-consciente\consciente) permite com que o desejo
inconsciente faça “furo” na consciência de maneira que se apresente distorcido,
como no caso das formações oníricas manifestas. Nesse sentido, conclui Freud, “Aí temos o ato da ‘transferência’, que
fornece uma explicação para inúmeros fenômenos notáveis da vida animica”.31
(513)
A transferência não se daria
exclusivamente no processo de formação dos sonhos, mas seria ela própria o meio
pelo qual todas as produções do inconsciente se fariam existir. Em outras palavras, toda formação de compromisso,
própria de toda organização neurótica, seria sempre uma formação viabilizada
pelo advento das transferências de intensidade.
Uma determinada representação que nada tem a temer por relação às
exigências da censura, se presta, no advento do ato falho por exemplo, a
receber o investimento de representações próprias ao sistema inconsciente que,
por outro lado, anseiam em transferirem-se para o sistema
pré-consciente\consciente. Como vimos, o
que se transfere, nesses processos, são as intensidades, as cargas de
investimentos oriundas das representações inconscientes, que, fazem com que o
sujeito do ato falho seja, ao mesmo tempo um sujeito do equívoco (trata-se de
outra representação), assim como um sujeito que se vê afetado(a intensidade foi
transferida) diante de sua própria posição falha.
Ainda no campo próprio aos sonhos,
Freud mostra a especificidade dos restos diurnos. Dirá que eles tomam emprestado a intensidade
do inconsciente no momento em que figuram no sonho e ao mesmo tempo “oferecem ao inconsciente algo indispensável
- ou seja, o ponto de ligação necessário para uma transferência”32
(514) Nesses casos , afirmará Freud na sessão (e) do capítulo VII: “Passa a existir no pré-consciente uma cadeia
de pensamentos desprovida de investimento pré-consciente, mas que recebeu
investimento do desejo inconsciente.”33(539)
A transferência, nós podemos
afirmar, opera através do que se pode definir como “deslocamento de
afetos”. As intensidades, nada mais são
do que cotas de afetos que vão se deslocar do sistema inconsciente para o sistema
pré-consciente\consciente até que se realize uma formação de compromisso capaz
de satisfazer aos interesses de ambos os sistemas. Aqui, a transferência opera enquanto veículo
para que o desejo inconsciente possa se fazer representado na consciência. Ora, se a transferência é ela própria parte
do movimento desejante, então a grande novidade que existe nesse momento é a de
que ela não é aqui concebida enquanto resistência. Pois sabemos que, segundo Freud, ao menos em
sua primeira tópica, o inconsciente não tinha como característica a
resistência. Não, ao contrário, o único
movimento próprio ao sistema inconsciente é o de se organizar para ultrapassar
a censura e se fazer, mesmo que distorcidamente, presente na consciência. A resistência é a função de um ego, que, como
vimos anteriormente, ameaçado pelo trabalho terapêutico, se vê obrigado a
resistir contra o desvelamento do inconsciente.
Assim, transferir é tão somente
veicular o desejo e torná-lo um projeto viável para o sujeito. Nesse caso, a
transferência não é nem empecilho e nem obstáculo. Tampouco tratar-se-ía de algo a ser extirpado
como um corpo estranho. Ao contrário, a
transferência é sempre bem sucedida na medida em que dá ao sujeito a capacidade
de estabelecer-se de forma neurótica.